Internacional

Novo acordo com o Talibã traz pouca chance de paz

por Solange Reis

O Talibã e o governo americano assinaram um acordo, no dia 29, para tentar encerrar a guerra no Afeganistão. É mais um plano para concluir o longo conflito que envolve uma super potência estrangeira, um governo quase fantoche e um grupo de resistência. As tratativas tiveram a participação de apenas duas dessas partes. Os Estados Unidos e o Talibã negociaram diretamente por um ano, enquanto o governo afegão foi apenas consultado indiretamente, se tanto.

Dois eventos marcaram o esperado compromisso entre a maior força militar do mundo e o grupo liderado por mulás. O primeiro aconteceu em Doha, no Catar, com simbolismo político. Lá reuniram-se Zalmay Khalilzad, chefe da equipe americana, e Abdul Ghani Baradar, cofundador do Talibã e apoiador do fim da guerra. Baradar estava  preso no Paquistão desde 2010 e teria sido solto para participar das negociações, a partir do ano passado.

O segundo evento, de caráter militar, ocorreu entre Mark Esper, secretário de Defesa, e comandantes do Talibã, em Cabul, capital do Afeganistão. A maior dificuldade dos acordos anteriores foi reproduzir no campo de batalha o que se negociava em salas refrigeradas. Não será diferente agora.

Test-drive da não violência

Longe de ser um armistício, o plano estabelece o que as partes deverão cumprir até abril de 2021. O governo americano se comprometeu a retirar doze mil soldados do país. Cinco mil sairão em 135 dias e o restante, em até catorze meses. Os americanos também prometeram trabalhar junto ao governo afegão para liberar seis mil talibãs presos e suspender as sanções que atingem o Talibã, incluindo as da ONU.

Mas as pontas soltas do compromisso já começam a aparecer. Um dia depois do acordo ser anunciado, o presidente afegão negou a intenção de liberar os prisioneiros. Ashraf Ghani disse que isso “não está na alçada dos Estados Unidos para decidir; eles são apenas um facilitador”.

A contrapartida do Talibã é cessar fogo, aceitar dividir o controle do Estado com o governo afegão e não permitir que organizações terroristas, como a Al Qaeda, usem suas bases. Nesse último ponto surge outra barreira. Uma facção talibã, a Haqqani, também está listada como terrorista pelos Estados Unidos. O núcleo do Talibã terá de neutralizar essa subdivisão, ou a Casa Branca terá de revisar a classificação para adequá-la a seus interesses militares.

As negociações avançaram em um ano particularmente violento no conflito que já leva duas décadas. No último trimestre do ano passado, os Talibãs fizeram 8.204 ataques, e os Estados Unidos lançaram 7.423 bombas, números recordes nos registros disponíveis a partir de 2006.

O acordo foi possível após um teste para a suspensão da violência nos sete dias que antecederam à assinatura. Nesse período, ataques do Talibã foram reduzidos em 80%. Os outros 20% ficam numa zona cinza difícil de ser interpretada. Podem ser a tentativa do Talibã de não mostrar anuência completa. Outra possibilidade é a de que o próprio grupo não tenha controle sobre as facções, ainda que domine 70% do território nacional.

Retomada da violência

O test-drive durou o suficiente para a assinatura dos papéis. Menos de uma semana depois de o governo americano anunciar o acerto com o Talibã, um ataque deixou dezenas de mortos e feridos. Tratava-se de um evento com a participação de Abdullah Abdullah, líder da oposição que contesta o resultado eleitoral para presidência. Abdullah, que sobreviveu ao atentado, ameaça ser o Juan Guaidó do Afeganistão ao declarar-se presidente a despeito das apurações. As eleições aconteceram em setembro do ano passado, mas os resultados confirmando a reeleição de Ghani só foram liberados em janeiro de 2020.

O Talibã negou a autoria do atentado, que foi assumida pelo braço afegão do Estado Islâmico. Se a violência em questão não pode ser atribuída aos talibãs, não é o caso de outros 76 ataques. Esse foi o número de investidas assumidas pelo grupo contra forças do governo afegão no decorrer de uma semana após o acordo. Mesmo depois de o presidente Donald Trump dizer que o menor dos incidentes levaria tudo à estaca zero. Apesar da retomada da violência pelo Talibã, não houve nenhum sinal da Casa Branca de que a ameaça de Trump seria cumprida.

Insustentabilidade

Nada ficou determinado para o período após os catorze meses de transição, quando o Talibã e o governo afegão terão de dialogar sem a supervisão ou a intermediação americana. Esse é o desafio que levou muitos políticos, acadêmicos e jornalistas a antecipar o fracasso do novo acordo. Entre republicanos neoconservadores, democratas intervencionistas, intelectuais pró-guerra e a imprensa tradicional, prevalece a opinião de que sair do Afeganistão sem impor uma derrota militar e política ao Talibã é um erro. O argumento a favor da manutenção das tropas insiste que a retirada equivaleria a entregar o Afeganistão a fundamentalistas que destruirão as parcas instituições e perseguirão as minorias, como mulheres e homossexuais.

O Talibã surgiu nos anos 90 a partir dos mujahidins que combateram a ocupação soviética do Afeganistão e que, para isso, contaram com o apoio da CIA. O grupo chegou a controlar 90% do país entre 1996 e 2001, ano da invasão dos Estados Unidos para localizar Osama bin Laden. Outro objetivo era derrubar o Talibã. Dois meses após a entrada das forças americanas, foi formado um governo de transição sem o Talibã e sob a proteção do Pentágono. Desde então, sucessivos governos eleitos a duras penas sobreviveram apenas devido a essa presença militar. A saída das tropas estrangeiras significará, provavelmente, a queda do governo e a retomada do controle oficial pelos talibãs.

Outra linha de pensamento nos Estados Unidos considera vital trabalhar com essa possibilidade. Para muitas figuras públicas e analistas de política internacional, a tentativa de fazer do Afeganistão uma democracia no modelo ocidental é natimorta. O país tem particularidades históricas, sociais e culturais que não podem ser ignoradas. Assim, a guerra para a criação de instituições ocidentalizadas não se justifica. Os gastos militares deveriam ser revertidos para a ajuda no desenvolvimento econômico, independentemente do grupo no poder.

Da maneira como o acordo foi desenhado, a ala “antiguerra” não vê motivo para comemorá-lo. Embora haja mérito na iniciativa de Trump — sair do Afeganistão sempre foi um desejo do republicano — a retirada dos soldados terá bem menos impacto do que se imagina. Para Adam Wunische, do think tank Quincy Institute for Responsible Statecraft, ao mandar para casa cinco mil dos treze mil soldados, Trump retorna ao nível de contingente que encontrou quando foi eleito. E, ao condicionar a saída dos demais ao cumprimento das condições por parte do Talibã, o presidente transfere o poder de decisão ao inimigo. Além disso, o pesquisador aponta os indícios de que a missão dos Estados Unidos no país mudaria de treinamento dos militares afegãos para combate ao terrorismo. Parte de suas tropas permaneceriam indefinidamente.

Novo Vietnã sem os protestos

Dezenove anos, 2 trilhões de dólares e quase 2.500 soldados mortos foram os custos para Washington. Nesse saldo não estão incluídas as mortes de mercenários a serviço de empresas terceirizadas nem de soldados de países aliados. Pelo lado do Afeganistão, a tragédia é muito maior. Foram mais de 140 mil mortos até agora, incluindo 43 mil civis, 60 mil militares ou policiais e 42 mil insurgentes.

Na quinta-feira (5), o Tribunal Penal Internacional (TPI) permitiu que seu procurador-geral abra investigações para apurar crimes de guerra cometidos no Afeganistão, incluindo por militares americanos e agentes da CIA. É a primeira vez que o TPI, do qual os Estados Unidos não são membros, considera levar o país ao banco de réus. Foi justamente por ser a nação que mais faz guerra que ela não aderiu ao Tribunal. O secretário de Estado Mike Pompeo reagiu com fúria à notícia sobre a investigação. “Uma ação sensacionalista de uma instituição política irresponsável, mascarada de órgão legal”, disparou Pompeo. “É ainda mais imprudente que essa decisão venha poucos dias depois de os Estados Unidos terem assinado um acordo histórico de paz no Afeganistão — a melhor hipótese de paz numa geração”, continuou.

Muitos comparam a situação desse conflito com a longa guerra do Vietnã. Naquele caso, os Estados Unidos não podiam admitir a derrota militar e retirar as tropas sem incorrer em grande custo político. A forte oposição popular à guerra em sua fase final, no entanto, foi um fator determinante para o encerramento. Na situação atual, esse componente não existe, pois a guerra do Afeganistão foi esquecida pela opinião pública. Quase seis em cada dez americanos acham que é hora de sair, mas a desaprovação não gera protestos nas ruas nem pressão sobre o governo.

George W. Bush quis a guerra e a criou. Barack Obama criticou a guerra, mas a potencializou. Donald Trump promete sair dela, mas roda como um pião florescente. Muito espetáculo sem sair demasiado do mesmo lugar. Sobra a certeza de que os Estados Unidos não foram capazes de derrubar um grupo tribal e seus associados. Assim como a União Soviética não pôde derrotar os mujahidins nos anos 1980, o que fortalece o senso comum de que o Afeganistão é um “cemitério de impérios”. O império soviético ruiu logo em seguida; já não estava bem das pernas. Não é o caso do americano, que precisa de uma saída “à francesa” para não manchar sua reputação de mega potência militar.

 

*Doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). 

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