Uma lente sobre os Estados Unidos
Parte da equipe do INCT-INEU no encerramento da Conferência realizada de 25 a 28 nov. 2019
Por Márcio Ferrari*
Uma “situação simétrica e oposta”. Com essa imagem o pesquisador Sebastião Velasco e Cruz descreve a relação que prevaleceu durante muito tempo entre o conhecimento sobre os Estados Unidos, no Brasil, e o conhecimento sobre o Brasil, nos Estados Unidos. “A comunidade acadêmica dos Estados Unidos sempre se preocupou em ter as informações mais avançadas e fidedignas sobre diferentes partes do mundo, por isso há um campo de estudos bem estabelecido sobre a América Latina e comunidades científicas fortes que geram conhecimento e mantêm um foco permanente na região”, afirma o cientista político da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Aqui temos a impressão de grande familiaridade com os Estados Unidos, mas carecíamos de mecanismos para buscar as informações que precisamos para, de fato, conhecer o país. Era esse o desafio que pretendíamos enfrentar, e estamos enfrentando há mais de 10 anos.”
Cruz se refere à atuação do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu), centro de pesquisas interdisciplinar e interinstitucional com sede em São Paulo, do qual é coordenador desde 2017. “Nosso pressuposto é que o governo e a política dos Estados Unidos estão entre as forças mais poderosas do mundo”, afirma Cruz. “Essas forças impactam os indivíduos, as sociedades civis, as corporações e as instituições políticas, assim como a autonomia legal e constitucional que lhes são atribuídas.” O instituto foi criado em 2009 e desde então publicou 71 livros, 182 capítulos de livros, 290 artigos em periódicos brasileiros e internacionais e 14 cadernos, parte deles em parceria com o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec).
“Nossa produção sobre os Estados Unidos contempla um conjunto amplo de temas: política interna, instituições, processos e políticas governamentais, integração e crise na América Latina, e a política dos Estados Unidos para a região, com destaque para os desafios e oportunidades de uma relação complexa com o Brasil”, explica Cruz.
A história do instituto precede sua fundação. Em 2001, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) publicou edital com o objetivo de fomentar a pós-graduação em relações internacionais no país. “Naquele momento, o ministério considerava insuficiente a oferta de conhecimento sobre as estruturas de funcionamento dos Estados Unidos, de que o Brasil necessitava, no quadro de uma economia globalizada”, relata Cruz. Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Unicamp decidiram se reunir para concorrer. Aprovada a proposta, o então denominado programa San Tiago Dantas (1911-1964) – em homenagem ao chanceler do governo de João Goulart (1918-1976) – começou a funcionar em 2003.
Dois anos depois houve novo edital, dessa vez em parceria do MRE com o Ministério da Ciência e Tecnologia, para estimular pesquisas sobre grandes temas de relações internacionais. O objeto de pesquisa escolhido pelos integrantes do programa San Tiago Dantas foi os Estados Unidos – sua política, economia, sociedade e cultura. “Quando o edital dos INCTs foi lançado em 2008 pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], estávamos em uma situação privilegiada, porque a parte dedicada à pesquisa já tinha sido elaborada”, recorda Cruz. O instituto começou a operar no ano seguinte, reunindo especialistas das três universidades e do Cedec, com apoio financeiro do CNPq e da FAPESP.
Hoje mobiliza 80 pesquisadores e congrega 20 instituições. Algumas delas, como as universidades de Brasília (UnB) e a Federal da Paraíba (UFPB), tiveram seus núcleos de pesquisas sobre a temática criados por pesquisadores do INCT-Ineu. “Isso é o mais importante, o processo de expansão da rede nunca se esgota”, avalia Cruz. Em 2010 foi criado um portal na internet, o Observatório Político dos Estados Unidos (Opeu), com o objetivo de ser uma publicação eletrônica especializada, assim como um banco de dados permanente sobre as políticas interna e externa dos Estados Unidos. Segundo o coordenador do INCT-Ineu, o Opeu responde fundamentalmente pela difusão de conhecimento. Responsável pela produção do material informativo – mais de 2.500 clippings de notícias nos primeiros sete anos de operação –, desde 2017 o observatório tem se concentrado na publicação de artigos analíticos e comentários. A equipe do Opeu reuniu inicialmente estudantes de graduação, mestrandos e doutorandos. Muitos deles se tornaram pesquisadores ou professores. Outros exercem o jornalismo e atividades profissionais diversas, na área de relações internacionais. Nesse sentido, o observatório cumpre, subsidiariamente, funções de pesquisa e formação de quadros.
O INCT-Ineu também dispõe de um núcleo de produção audiovisual. A proposta surgiu como desdobramento de um projeto independente que, depois de ter sido aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Estado de Pernambuco, foi acolhido pelo instituto. O resultado foi o lançamento, em 2017, do documentário Em nome da América, de Fernando Weller, sobre a experiência dos Peace Corps em Pernambuco. Por intermédio do programa do governo norte-americano, desenvolvido nas décadas de 1960 e 1970, 6 mil jovens voluntários realizaram trabalho humanitário no Nordeste do Brasil. Weller, que é pesquisador e professor de cinema da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), recebeu apoio do INCT-Ineu para realizar entrevistas e pesquisa documental em fontes primárias nos Estados Unidos.
Para o cientista político Tullo Vigevani, professor aposentado da Unesp e coordenador do instituto nos seus sete primeiros anos de existência, o INCT-Ineu inova ao estimular “a incorporação de diferentes pesquisas sobre os Estados Unidos”, tornando-se um “grupo de difusão em caráter nacional que se ocupa sistematicamente desse tema”. A construção da política de comércio exterior do país, por exemplo, é um dos tópicos que foi esquadrinhado pela equipe do instituto. O livro Poder e comércio – A política comercial dos Estados Unidos, escrito por Vigevani, Filipe Mendonça e Thiago Lima, foi considerado a melhor obra científica de 2019, pela Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).
Think tanks
O conhecimento acumulado nesse período orientou a organização e os temas da Conferência Brasileira de Estudos Políticos sobre os Estados Unidos, promovida no final do ano passado na PUC-SP. Em quatro dias, foram realizados encontros de seis grupos temáticos, cada um deles com três sessões de debates, três mesas-redondas e palestras com sete convidados estrangeiros – o ex-ministro chileno Luis Maira e os cientistas políticos Diana Tussie, argentina, e Inderjeet Parmar, britânico, Jayesh Rathod, norte-americano, Monica Hirst, brasileira radicada na Argentina, David Sogge, holandês, e Raúl Rodriguez, cubano. A história e a atuação dos think tanks, tema da apresentação de Parmar, por exemplo, vêm sendo investigadas por pesquisadores do INCT-Ineu desde sua fundação. Embora desde o século XIX exerçam influência quase direta na política norte-americana, até recentemente o tópico era pouco explorado na academia. “No instituto, a temática originou pesquisas bastante detalhadas da história do pensamento dessas instituições e sua influência, com orientações ideológicas diversas, na definição de políticas públicas”, explica Cruz. Conforme Vigevani, tais centros de estudos têm sido fundamentais para definir as relações externas dos Estados Unidos, em diferentes governos dos últimos 60 anos.
Entre os pesquisadores que participaram da conferência de novembro, revelou-se unânime a sensação de perplexidade quanto aos rumos da política norte-americana neste século. O período começou com uma situação internacional em que – graças ao fim da União Soviética, em 1991 –, os Estados Unidos surgiam como superpotência solitária, dotada de poder incontrastável. Avaliam que a realidade atual, contudo, é diferente: o poder americano se vê ameaçado em várias regiões e em diversas esferas em que ele se expressa.
“Evidenciou-se, então, o que alguns analistas vinham assinalando há tempos: a situação esboçada no imediato pós-Guerra Fria era transitória”, diz Cruz. “Cedo ou tarde, a Rússia, potência derrotada, se reorganizaria e voltaria a reivindicar seu lugar. E o reordenamento em curso propiciaria a constituição de um novo polo de expansão na economia mundial, em torno da China, com implicações geopolíticas dramáticas, posto que não integrado à ‘comunidade de segurança’ edificada pela superpotência depois da Segunda Guerra Mundial”, avalia o coordenador do instituto.
“Esperava-se, após os atentados de 2001, que a guerra no Iraque terminasse rapidamente, mas ficou claro que os Estados Unidos enfrentaram reações para as quais não estavam política e militarmente preparados, surpreendendo até os teóricos de relações internacionais”, observa Cruz, ao lembrar que a situação se agravou com a crise econômico-financeira de 2008 e as tensões geopolíticas com a Rússia. “Nós, pesquisadores do INCT-Ineu, constatamos que estávamos certos na suposição de que o mundo não se encontra na alvorada de uma nova era de estabilidade, mas passa por momento de transição, em que a instabilidade da situação econômica e política é um dado essencial”, observa. Nesse contexto, diz Vigevani, a América Latina segue tendo importância para os Estados Unidos, ideologicamente ou comercialmente, de acordo com os interesses da “metrópole”. Em sua avaliação, “a tendência ao unilateralismo do presidente norte-americano atual é a diferença mais relevante entre os governos de Barack Obama [2009-2017] e Donald Trump”.
Maira, que começou a articular pesquisas sobre os Estados Unidos no México, onde se exilou durante o regime do ditador Augusto Pinochet (1915-2006) nos anos 1970, enumera os sintomas da crise que os Estados Unidos vêm enfrentando, e Trump pretendeu remediar com medidas que considera “unilaterais e isolacionistas”. O primeiro deles é a perda de legitimidade do sistema eleitoral, que ocorreu a partir da contradição numérica do pleito de 2001, culminando na eleição de George W. Bush, agravada por situação semelhante na vitória de Trump sobre Hillary Clinton. O segundo sintoma da crise é a intervenção crescente da Suprema Corte nos mecanismos financeiros de campanha. E há o aumento do sectarismo na polarização entre democratas e republicanos, a multiplicação da violência pela disseminação do uso de armas de fogo, o enorme crescimento da desigualdade social e, por fim, a redefinição ideológica, com o remanejamento de forças políticas.
Projeto
INCT para Estudos sobre os Estados Unidos (nº 14/50935-9); Modalidade Projeto Temático; Acordo CNPq-INCTs; Pesquisador responsável Sebastião Carlos Velasco e Cruz (Unicamp); Investimento R$ 2.849.536,80.
* Matéria originalmente publicada em Pesquisa FAPESP, edição 288, fev. 2020.