Com plano, Trump deseja fim da política palestina
O presidente Trump, seu genro Jared Kushner e o premiê de Israel, Benjamin Netanyahu
Por Arturo Hartmann*
O presidente Donald Trump revelou, em 28 de janeiro, a segunda parte de seu plano “Paz para a Prosperidade”, a tão esperada proposta política da atual administração dos EUA para a resolução da questão palestino-israelense. Ela complementa a parte econômica do plano, anunciada no final de junho de 2019, na “Oficina de Manama”, na capital do Bahrein. À primeira vista, podemos ver na proposta de Trump, apelidada logo no início de seu mandato como “Acordo do Século”, uma piada trágica.
Na ocasião da Oficina no Bahrein, quando Jared Kushner, (genro e) representante de Trump para o Oriente Médio, apresentou a primeira parte do plano, um comentarista descreveu a incursão do “Príncipe Menino de Nova Jersey” na política externa norte-americana como o “esquete Monty Python das iniciativas de paz israelo-palestinas”. Ainda que carregue uma tragicomicidade, “a Visão” (“The Vision”), autodenominação do plano, sai de um dos mais poderosos salões de poder dos EUA e delineia uma proposta oficial para o destino dos palestinos. Mais especificamente, uma visão para eliminar qualquer horizonte político.
Casuísmo de Trump e Jared
Os Acordos de Paz de Oslo, de 1993, para os quais agora Trump faz sua contribuição, deviam resolver, centralmente, a relação colonial entre palestinos e israelenses, permeada por um conflito de reivindicações de dois movimentos nacionais – o israelense/judaico e o palestino/árabe.
Podemos pensar no confronto colonial com base na imagem do “encontro contrapontual”: um conceito de Edward Said, pelo qual devemos ler um texto da Inglaterra do século XIX, por exemplo, levando em consideração as práticas coloniais do imperialismo. E, do mesmo modo, a resistência nativa a ele. Frantz Fanon a elaborou como uma oposição maniqueísta, na qual o nativo insurrecto está “cansado da lógica que o reduz, da geografia que o segrega, da ontologia que o desumaniza, da epistemologia que o despe de sua essência não regenerável”. Consequentemente, a natureza conflitiva que surge dessa relação é, como afirma Said na página 267 de Cultura e Imperialismo, a da “violência do regime colonial e a contraviolência do nativo”, que se “equilibram uma à outra e respondem uma à outra em uma extraordinária homogeneidade recíproca”.
Trump regeu um plano para se inserir no (des)equilíbrio dessa relação contrapontual de palestinos e israelenses. Sua proposta não ignorou, porém, o mecanismo político-econômico criado pelos Acordos de Oslo (1993), pelo qual atores internacionais sustentam instituições de governança no território da Palestina sem avançar nos temas dos consensos relacionados aos direitos de restituição aos palestinos. O toque especial de Trump/Kushner é que o “Paz para a Prosperidade” elabora, explicitamente, uma grande máquina high-tech de segregação, inserida na clivagem de violência do território, e a ser paga com dinheiro da comunidade internacional.
O custo do plano é de US$ 50 bilhões, não restritos aos Territórios Ocupados, mas estendidos também a Egito, Líbano e Jordânia. Para os palestinos, seriam alocados cerca de US$ 27,8 bilhões.
O mecanismo de “Oslo” foi montado sobre uma dinâmica econômica de dividendos de paz para gerar um apoio público ao processo. A lógica era que a violência viria a ser menos vantajosa, incentivando a troca da luta política por relações econômicas e ação política combinada. O passo final, dentro desse pensamento, seria a inevitável resolução do conflito.
O “Paz para Prosperidade” bebe da lógica econômica de Oslo.
Para Trump, “parceiros internacionais” trabalharão “para eliminar a dependência do setor público palestino em relação a doadores e colocar os palestinos em uma trajetória de sustentabilidade fiscal de longo prazo”. Tudo pago com “capital levantado por meio de um esforço internacional” a ser “colocado em um novo fundo administrado por um banco multilateral de desenvolvimento estabelecido”.
Isso não deixa de ser um arremedo do Ad Hoc Liaison Committee (AHLC), uma das estruturas formais criadas para institucionalizar a ajuda estabelecida como parte das negociações que levaram aos Acordos de Oslo. Segundo Anne Le More, no livro International Assistance to the Palestinians after Oslo (2008), o AHLC veio a ser o fórum onde “doadores e instituições de ajuda podiam definir políticas” para a Palestina, conforme as prioridades apontadas pelo Banco Mundial, que dirigiria os doadores a “canalizarem seus fundos para atividades específicas julgadas necessárias a apoiar a continuação das negociações israelo-palestinas e a implementação dos acordos entre as partes”.
Rejeição árabe
Como explicita o Mapa Conceitual do Plano (ver mapas 1 e 2), essa oferta de um território palestino definitivo mutilado atende aos desejos territoriais de Israel, com a anexação do vale do Jordão e a definição de Jerusalém como a capital indivisível do Estado judeu. Também carrega um objetivo estratégico central da política externa dos EUA: preparar o caminho para que países árabes aliados possam normalizar suas relações com Israel em um novo contexto regional – “a ameaça posta pelo regime radical do Irã”. Isso, segundo o plano, fez o Estado de Israel e seus vizinhos árabes compartilharem “cada vez mais percepções similares de ameaças à sua segurança”.
Essa abordagem demanda que o problema palestino seja removido como um fato político para os povos da região e também que o projeto colonial de Israel não seja mais uma ilegalidade do ponto de vista da lei internacional. Para isso, é necessária a imposição de uma engenharia político-legal. O “Paz para a Prosperidade” busca resolver ambos.
O promotor do plano encoraja os países árabes a começarem “a normalizar suas relações com o Estado de Israel e negociar acordos de paz duradouros”. O plano basicamente advoga por eles, ao afirmar que foram impedidos de expandir interesses comuns de cooperação econômica com Israel, devido ao problema palestino. “Países árabes na região foram mantidos cativos por esse conflito e reconheceram que ele representa um risco financeiro não-contido a eles se permanecer não solucionado”, completa o texto.
De fato, países árabes, como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Omã, pareciam estar no barco do “Paz para a Prosperidade”. Os sauditas declararam que apreciavam “os esforços da administração do presidente Trump para desenvolver um amplo plano de paz entre os lados palestino e israelense” e que encorajam “o começo de negociações diretas entre os lados palestino e israelense, sob os auspícios dos EUA”.
A reação posterior ao lançamento do plano foi, no entanto, de rejeição oficial unânime por parte da Liga Árabe, organização de 22 membros, da qual os países citados fazem parte. Votada no dia 1º de fevereiro, a resolução da Liga Árabe dizia que o plano de Trump “não satisfazia o mínimo dos direitos do povo palestino”, decidindo que os membros não vão cooperar com os EUA na implementação do plano.
Perdas palestinas
De qualquer forma, ignorando esse primeiro golpe sobre a proposta, a depender da “Visão”, o Estado Palestino poderá vir a existir somente se fizer parte do clube de combate ao regime radical do Irã e seus proxies na região. A ironia é que a Palestina entraria nesse clube sem um exército. Uma das condições para o Estado existir é ser “totalmente desmilitarizado, e assim permanecer”, e não desenvolver ”capacidades militares ou paramilitares dentro ou fora do Estado da Palestina”. Israel manteria as responsabilidades de segurança “pelas passagens de fronteira para o Estado da Palestina”.
Sem exército, mas com fortes sistemas de segurança internos. A exigência disso está no Apêndice B, “Critérios de Segurança”, que obriga o Estado palestino a ter um sistema de contraterrorismo que englobe “todos os elementos de contraterrorismo: de detecção inicial de atividades ilegais a encarceramento de longa duração para perpetradores”. E, nesse sistema, devem existir “oficiais de Inteligência para detectar atividade terrorista potencial, forças de contraterrorismo especialmente treinadas para vasculhar locais e prender perpetradores […], procuradores e juízes para emitir mandados e conduzir julgamentos …”.
O fiador desses “Critérios de Segurança” para o Estado palestino seria, vejam só, seu próprio algoz.
Israel seria o avalista da intenção e da capacidade para lutar contra o terrorismo. Se não atender “a todos ou a qualquer um” dos Critérios de Segurança, “o Estado de Israel terá o direito de reverter o processo desenhado”, retomando sua presença “em todo ou em partes do Estado da Palestina”. É uma forma de reelaborar a doutrina de Sharon que deu base à “Operação Escudo Defensivo”, em 2002, de reocupação dos centros urbanos dos Territórios Ocupados durante a Segunda Intifada – agora, porém, pela caneta do “mediador” de paz.
A palavra-chave do plano é mesmo “segurança”. Mas, para sermos justos com Trump, ele não inventou o conceito, apenas o elevou a uma nova potência. A “segurança” moldou a relação entre palestinos e israelenses nos Acordos de Oslo sob a chave “Terra por Paz”. Resumidamente, a cessão gradativa de terras por Israel aos palestinos dar-se-ia à medida que os palestinos garantissem que a violência contra Israel parasse. Traduzindo: Israel interromperia seu esforço colonial, se os palestinos interrompessem seus esforços de resistir a ele. Hoje, em perspectiva, sabemos que a continuação de um levou à não interrupção do outro.
No fim, o “Paz para a Prosperidade” não é uma nova tentativa de um acordo na linguagem de negociações das últimas três décadas, mas um contrato de leasing de algo similar a um Estado dentro de enclaves de território sem contiguidade, com os fiadores, Israel e EUA, podendo encerrá-lo a qualquer momento. Em uma de suas cláusulas, o plano exige, inclusive, que, para ter o Estado, os palestinos devem cumprir “todos os outros termos e condições dessa Visão”.
O que é novo é Trump definir o que, por consenso, não caberia a ele definir. Não há notícia de um governo propondo um plano de retomada do processo com a definição dos temas centrais do confronto colonial entre palestinos e israelenses. Oslo estava predicado em procedimentos de construção de confiança, de modo que as partes travassem contato em questões de segurança, assuntos de comércio, ou temas civis. Apenas em um momento posterior é que se entraria nas negociações de um Acerto Final, que se debruçaria no status de Jerusalém, em um horizonte para os refugiados e na definição de fronteiras. Essa etapa envolveria, assim, debater o que seria feito com os assentamentos israelenses em Território Ocupado.
Ganhos israelenses
Sobre os assentamentos ilegais, o documento Trump/Kushner diz que “o Estado de Israel e os EUA não acreditam que o Estado de Israel seja legalmente obrigado a prover aos palestinos 100% do território pré-1967 (uma crença consistente com a Resolução 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas)”. Assim, Israel não precisaria “desenraizar qualquer assentamento” e incorporaria “a grande maioria dos assentamentos israelenses em um território contíguo israelense”. Além disso, “os enclaves israelenses localizados dentro de território palestino contíguo irão se tornar parte do Estado de Israel”.
O mesmo ocorre com o vale do Jordão, “crítico para a segurança de Israel”, que permanecerá “sob a soberania israelense”. A falta de terras e de recursos pode afetar de forma negativa a economia palestina. Em 2016, o Banco Mundial alertava para a difícil “situação fiscal da Autoridade Palestina”, devido à queda do crescimento econômico e da arrecadação de receitas. Isso ocorria, entre outras coisas, “pelas restrições de movimento e acesso”.
O Banco calculava que a inabilidade de os palestinos explorarem oportunidades na Área C – em grande parte, uma região fértil para agricultura palestina e ocupada militarmente por Israel que inclui o vale do Jordão – eliminava um potencial de ganho de até US$ 3,5 bilhões por ano no PIB, além de um potencial de receita de até US$ 800 milhões por ano.
Já em relação a Jerusalém, Kushner delineou uma solução que os detratores do Muro construído por Israel sempre acusaram ser esse o objetivo de sua construção: a de anexar território de forma ilegal. O “Paz para a Prosperidade” diz, literalmente, que “a barreira física deve permanecer no lugar e servir como a fronteira entre as capitais das duas partes”. Desse modo, Jerusalém se torna a capital indivisível de Israel, sem ter de prestar contas de um status ilegal. Já aos palestinos restam as “áreas a leste e norte da existente barreira de segurança, incluindo Kfar Aqab, a parte oriental de Shuafat e Abus Dis”.
Na questão dos palestinos refugiados, a solução pode ser executada entre três opções: “absorção no Estado da Palestina”, “integração local em países receptores”, onde hoje têm residência, e, por último, aceitação de cinco mil refugiados a cada ano, por um período de no máximo dez anos, chegando a uma cota total de 50 mil, em países da Organização de Cooperação Islâmica. A iniciativa já tem um furo, pois a OCI declarou que rejeita o plano.
Adiciona-se a esses pontos a prudente sugestão de eliminar qualquer normativa que assombre Israel, EUA e seu “processo de paz”. A resolução do tema dos refugiados para a “Visão” oferecerá um “completo fim e a liberação de qualquer reivindicação relacionada ao status de refugiado e de imigração. Não deve haver direito de retorno, ou qualquer absorção de refugiados palestinos para o Estado de Israel”.
Despertar de ‘selvagens imaginações’
O que o atual presidente dos EUA advoga em seu plano é reformular aspectos das dinâmicas econômicas do processo para consolidar as conquistas coloniais. Trump e Kushner manifestam um desprezo pelos palestinos e um desdém pela lei internacional.
Nunca é demais uma pequena reminiscência histórica para nos dar um senso de como tal decisão pode alimentar imaginações políticas. Em julho de 1937, ou seja, 83 anos atrás, os britânicos, então governantes da Palestina por um sistema de Mandato, lançavam o Relatório Peel – uma investigação sobre os distúrbios políticos da época, especialmente para acessar o início da Revolta Árabe de 1936, que descobriram ter explodido pela perda de terras e do aumento demográfico de colonos judeus europeus. O relatório também trazia uma proposta de particionar o território da Palestina em um Estado judeu e um Estado árabe.
A reação de David Ben-Gurion, líder do movimento sionista na época, ao plano de 1937 foi registrada em seu diário: “Está nos sendo dada uma oportunidade que nós jamais ousamos sonhar nas nossas mais selvagens imaginações. Isso é mais do que um Estado, governo ou soberania – é a consolidação nacional de uma terra natal independente”.
O ponto mais importante para Ben-Gurion, ao qual ele se agarrava como uma vitória política, era a recomendação da transferência dos palestinos para dar lugar a esse lar nacional judeu de “selvagens imaginações”, algo que seria realizado cerca de dez anos depois, entre 1947 e 1949, quando as forças sionistas (pré e pós-Estado) expulsaram cerca de 700 mil palestinos, na época ¾ do total. É improvável que o plano de Trump seja implementado como política oficial, mas pode fazer acordar “selvagens imaginações” de políticos contemporâneos.
* Arturo Hartmann é doutorando em Relações Internacionais no programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), membro do Grupo de Estudos sobre Conflito (Geci) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).