Relações EUA-Haiti: crise energética e Petrocaribe
* Por João Fernando Finazzi
O intérprete que se propor a analisar a mais recente crise do Haiti terá dificuldades em precisar exatamente sua data de início. Isto porque parece ser razoável supor que ela se desenrola sobre um emaranhado de fios que se romperam, desde o golpe de 1991 pelo menos, e que aparentam terem sido unidos, quando muito, por grosseiros nós tecidos pela “comunidade internacional” em 1994 e em 2004.
Pode-se dizer que o mais novo capítulo dessa longa crise haitiana tem-se aprofundado continuamente a partir de julho de 2018. À época, as ruas passaram a registrar as primeiras grandes mobilizações contra o governo do presidente Jovenel Moïse, após ele anunciar a retirada do subsídio do combustível por conta de acordo estabelecido com o Fundo Monetário Internacional (FMI). A medida provocou o aumento dos preços da gasolina, do diesel e do querosene em torno de 44%.
Firmado entre a Venezuela e vários Estados do Caribe em 2005, o acordo Petrocaribe prevê tarifas preferenciais para os compradores do petróleo venezuelano. Adquiriu grande relevância na mobilização dos protestos a partir do escândalo de corrupção que o envolve, desenrolando-se sobre um quadro de profunda desigualdade no país mais pobre das Américas. Sua importância para a crise também deve ser posta em perspectiva, contudo, diante do problema fundamental da produção e do fornecimento de energia ao Haiti. Isto porque, segundo o Departamento de Comércio dos EUA, em torno de 80% da energia elétrica distribuída no Haiti é produzida com base em combustíveis fósseis importados.
De fato, uma das razões para se identificar nas mobilizações, a partir de fevereiro de 2019, o crescimento da organização dos grupos contrários ao governo de Moïse está nos contínuos impactos que a crise energética tem colocado sobre a capacidade produtiva da indústria haitiana, sobre a circulação cotidiana de pessoas e de mercadorias e sobre o fornecimento de assistência humanitária e de serviços públicos essenciais para a população, como o funcionamento de hospitais.
Em 2006, quando o recém-empossado René Préval assinou a entrada do Haiti no Petrocaribe, o movimento rapidamente encontrou uma série de resistências do governo dos EUA e das gigantes ExxonMobil, Chevron, Esso e Texaco, então responsáveis por cerca de metade das importações de petróleo do Haiti. Ninguém menos do que a embaixadora norte-americana Janet A. Sanderson relatou, em 17 de maio de 2006, uma reunião com o gerente nacional da ExxonMobil no Haiti. Nela, ouviu que nem eles nem a Chevron “estariam dispostos” a comprar o petróleo do governo haitiano.
Desde então, aparenta ser possível reconhecer que a atuação dos EUA contra a Venezuela colocou uma série de pressões sobre o Petrocaribe – responsável, no seu auge, por cobrir cerca de 70% das necessidades haitianas de combustível. Mas, se desde 2006 os EUA e as grandes corporações do petróleo resistem ao acordo Petrocaribe, por que somente agora a crise haitiana se aprofundou?
Nos últimos anos, as sanções norte-americanas, a crise interna, pela qual passam a sociedade e o Estado venezuelanos, e a diminuição de sua produção de petróleo de 2,5 milhões de barris diários em 2007 para 830 mil em 2019 afetaram fortemente sua capacidade de fornecimento internacional e a continuidade do acordo. Esse quadro teve um duro impacto no Haiti. Em meados de junho de 2018, pouco antes do anúncio de Moïse, a estatal venezuelana PDVSA declarou a suspensão por tempo indeterminado do envio de petróleo para 17 países contemplados no Petrocaribe, incluindo o Haiti.
Com isso, o governo haitiano passou de modo crescente a procurar petróleo no “mercado global”, espaço prontamente ocupado pela norte-americana Novum Energy, que se tornou responsável, ainda em 2018, pelo suprimento de 80% do diesel e da gasolina do Haiti. A isso, soma-se uma marcante desvalorização do gourde haitiano frente ao dólar, fator crucial quando se considera a atual dependência de importação de combustíveis fósseis.
Em janeiro de 2019, em um movimento que teve como consequência o aprofundamento da insatisfação de parte da elite empresarial com o governo de Moïse, a Novum Energy manteve na costa haitiana dois de seus três navios, sem descarregar o combustível em Porto Príncipe.
Segundo a corporação norte-americana, o diesel e a gasolina (suficientes para suprir cerca de metade das necessidades energéticas do país por um mês) não foram descarregados por conta da falta de pagamento de uma dívida do Bureau de Monétisation des Programmes d’Aide au Développement (BMPAD), órgão do Estado haitiano criado em 2007 responsável pela importação do combustível e pelo repasse para os distribuidores locais. Com isso, parte do setor privado haitiano passou a reivindicar com mais empenho a flexibilização da obrigatoriedade da importação do combustível via BMPAD.
Em novembro de 2017, uma comissão especial do Senado haitiano divulgou seu primeiro relatório, indicando casos de corrupção no Petrocaribe. O texto acusava vários empresários e ministros da cúpula do atual governo e de gestões anteriores desde 2006, incluindo as administrações dos ex-presidentes René Préval e Michel Martelly. No entanto, por alguma razão, essa divulgação não foi o suficiente para gerar grandes protestos nas ruas naquele momento. De todo modo, é possível dizer que a mobilização da pauta da corrupção tem ofuscado em analistas e intérpretes a apreensão de movimentos fundamentais do mais recente capítulo da crise política e social no país.
Hoje, as forças políticas formalmente organizadas já falam abertamente na retirada imediata de Jovenel Moïse, eleito em 2016, durante a intervenção da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), com somente 9,5% de votos de todo eleitorado. Diversas organizações patronais, sindicais e camponesas, como Câmara de Comércio e Indústria do Haiti, Câmara de Comércio Americana, Câmara de Comércio e Indústria Franco-Haitiana, Sindicato dos Transportes, entre outras, lançaram em 10 de novembro, no Hotel Marriott, o projeto Entente Politique de Transition. Nele, defendem a formação de um “governo de transição”, tendo como base o respeito não à Constituição Haitiana, mas ao “espírito das leis, costumes e tradições da República”.
De fato, chama atenção a posição da Câmara de Comércio Americana. Nos EUA, alinham-se a ela os grupos que lá encontram sua expressão no jornal The New York Times. Duas semanas após destacar em matéria de capa que, no Haiti, “there is no hope“, o jornal se coloca claramente em editorial de 4 de novembro:
“It is clear from the current meltdown that Haiti needs more than another election or a ‘dialogue’ among elected leaders to tinker with malfunctioning institutions […] What is clear is that something has to change, and the country needs outside help […] Yet it is demonstrably in the interest of the United States and the rest of the Western Hemisphere to help their poorest neighbor get back on its feet […] There must be enough expertise and imagination available in Haiti and among international and nongovernmental organizations to formulate a plan and to help form a coalition government, and there must be long-term international assistance to get them going.”
É preciso também dar o devido peso à declaração do ex-subsecretário-geral para Operações de Paz da ONU e ex-chefe da Minustah Edmond Mulet durante conferência na República Dominicana no final de novembro. Durante o evento, que contou com a presença do presidente chileno, Sebastián Piñera, Mulet sugeriu que o Comando Sul dos EUA deveria intervir urgentemente no Haiti para prover assistência humanitária alimentar.
Alguns poucos sinais indicam que o governo Trump (preocupado com outras questões) tem mantido certo apoio ao governo Moïse, que tem recorrentemente pedido ajuda aos EUA. Entre eles, estão a declaração no dia 20 de novembro da embaixadora dos EUA na ONU, Kelly Craft, de reconhecimento ao governo e apoio às instituições do Estado Haitiano, assim como a visita do subsecretário de Estado para Assuntos Políticos, David Hale, no início de dezembro.
O desenvolvimento da organização das forças políticas no Haiti ao longo de 2019 e que culminou no projeto Entente Politique de Transition pode vir a indicar que lá a mobilização difere, ao menos no ponto em que hoje se encontra, de várias outras revoltas que atualmente ocorrem ao redor do mundo. Estas, com algumas exceções, aparentam ainda não contar com lideranças políticas que possam tomar decisões capazes de imprimir uma direção e um sentido claros às ações sociais.
No entanto, é imprescindível considerar a forma como os EUA vão reagir a essa crise haitiana: como se posicionam seus principais atores?
De todo modo, não seria arriscado pensar que aqueles que querem a retirada de Moïse tenham retirado da gaveta o plano de 2004. Afinal, ao que se diz, a “estabilização do Haiti foi um sucesso”.
* João Fernando Finazzi é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). É bolsista do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e pesquisador do Grupo de Estudos em Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP).
** Recebido em 17 dez. 2019.