Codiretora da prestigiada Global Governance, Diana Tussie trouxe o processo de consolidação da hegemonia norte-americana, que também passa pela constituição da área de Relações Internacionais, problematizando o atual processo de desinstitucionalização promovido pelo governo Trump.
“Os Estados Unidos consolidaram sua hegemonia construindo instituições”, explicou Tussie, identificando dois saltos em termos de influência e hegemonia no contexto internacional: o primeiro, em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, quando o país se projeta como principal credor internacional, “constituindo a nova ordem internacional global, que envolveu o conflito com a União Soviética, mas também o surgimento das Nações Unidas, dos acordos de Bretton Woods”, entre outras instituições.
O segundo salto veio com a queda do Muro de Berlim, em meio às transformações da globalização, com o Consenso de Washington (1989), o estímulo aos regionalismos econômicos, a criação da Organização Mundial do Comércio (1995) em substituição do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), de 1947.
“Nós que assistimos a este processo de institucionalização crescente, agora, observamos seu inverso”, frisa Tussie, dimensionando o impacto do governo Trump, assim como da entrada da China como credora internacional.
O lugar no Estados Unidos está em questão e isso tem imensas repercussões na ordem do mundo tal como a conhecemos, explica Tussie. Uma ordem que reflete a consolidação da influência norte-americana.
Construção de institucionalidades
O primeiro presidente norte-americano a se projetar como “articulador” no cenário internacional foi Woodrow Wilson, durante a Conferência de Paris (1919), que reuniu os vencedores da Primeira Guerra Mundial. Um ano antes, Wilson havia apresentando seus Quatorze Pontos, o plano para a paz mundial, que serviria de base para a Liga das Nações, garantindo o Nobel da Paz de 1919 ao presidente norte-americano. “Colocado num pedestal, Wilson inaugura a diplomacia presidencial”, aponta.
Tussie observa, entretanto, que a paz “triunfante e elegante” desses senhores “muito bem vestidos” na Conferência de Paris, choca-se com a política externa fortemente agressiva dos Estados Unidos contra os países vizinhos, vide as invasões, ou interferências diretas promovidas contra Vera Cruz (1914), Haiti (1915), República Dominicana (1916), Panamá (1918), Honduras (1924), ou Nicarágua (1926).
A não importância da América Latina, afirma, deve-se ao fato de ela estar “sequestrada” pelos Estados Unidos. “Parte do Ocidente está sequestrado, visto como a região onde os Estados Unidos não toleram intromissões”.
Apesar disso, os Estados Unidos consolidam a imagem de país épico e missionário, salvador e garantidor da ordem internacional em dois contextos traumáticos: o da Primeira e o da Segunda Guerra. As instituições são, neste sentido, “uma marca sacrifical dos Estados Unidos”.
Ela também aponta a adoção, em 1933, da Lei de Reciprocidade nas relações internacionais. “A negociação começa a ter como base a reciprocidade, mas a reciprocidade não é idêntica. Ao negociar com os Estados Unidos, eu não consigo ganhar o mesmo que lhe dou. Esse é outro problema”, explica.
O fato é que os princípios da “reciprocidade e da nação favorecida” servirão de base para a constituição do GATT (1947) que, entre seus 23 países-membros, contava com quatro latino-americanos: Cuba, Chile, Brasil e Uruguai. O GATT será sucedido pela Organização Mundial do Comércio em 1995.
Construção de pensamentos
“Os Estados Unidos são grandes construtores de empreendimentos institucionais e, também, de pensamentos internacionais”, daí os investimentos realizados por aquele país para a construção das relações internacionais, inclusive, silenciando alguns temas e evidenciando outros. “O macartismo expulsou das universidades uma riquíssima tradição norte-americana marxista e não stalinista, que promovia a relação orgânica entre teoria e práxis”, exemplificou.
Ela também problematizou a especialização dos estudos, ou seja, “não se é mais parte do globo, mas de áreas”. O que se passa na América Latina é América Latina; na África, é tema dos africanistas, etc. “A teoria necessita não somente da generalização, mas também do estudo de suas partes, evidenciando as hierarquizações”, no entanto, ocorrem compartimentações e, como somos parte de um “continente sequestrado”, nosso pensamento acaba marginalizado.
Sobre os estudos na área, ela identificou a presença de um pensamento fatalista, “espécie de realismo periférico”, que vê no “bom comportamento” a única possibilidade de negociação nesta ordem global; e, também, de um pensamento mais idealista. Ela também destacou o aporte no campo das relações internacionais dos governos progressistas, ou de esquerda, na América Latina.
Governos ajudados por um verdadeiro “boom das commodities”, em dimensões “não vistas desde Primeira Guerra Mundial”, devido à presença da China no tabuleiro internacional. Em meio a isso, as teorizações conceituais também sofreram mudanças, “a parte mais técnica do comércio internacional foi deixada de lado”; ao mesmo tempo, “instituiu-se relação de regionalismo sob a forma de cooperação”.
Hoje, porém, isso está sendo dissolvido e por diferentes experiências no continente, vide o caso Bolsonaro no Brasil. “Eu me sinto no fim de uma época”, afirmou.
Neste futuro, ainda incerto, a China acena como ator de enorme relevância. “Nova credora internacional, ela vem ampliando o espaço econômico global, o que poderá significar mais independência em termos de ação econômica”. Já em termos de ação política, ponderou, é cedo para afirmações.
A íntegra da conferência Estados Unidos en observación: muros contruidos, muros derrribados en la fabricación de las Relaciones Iternacionales (1h), transmitida pela TV PUC em seu canal do YouTube, pode ser conferida abaixo: