Polarização política e partidária nos EUA (1936-2016)

Pesquisadora cria metodologia para verificar ideologia partidária

Por Camila Feix Vidal*

Estudos acerca da polarização partidária são recentes, pouco numerosos e empiricamente frágeis. Na maioria dos casos, ou se concentram em uma análise de posicionamentos de congressistas (Mann, 2014; Poole e Rosenthal, 1984 e 1985; e McCarthy et al, 2006); ou refletem um senso comum, em sua maioria, de forma qualitativa e indutiva que inclui desde a relação entre lideranças e a comparação entre elas; bem como a relação do partido com a mídia e eventos específicos (Wolfe in Hunter e Wolfe, 2006; Mann e Ornstein, 2012; Pierson e Hacker, 2005; Mann, 2014; e Fiorina e Abrams, 2008; Prior, 2013). Desse modo, buscou-se neste trabalho uma análise empiricamente mais robusta acerca da suposta ida para os extremos por parte dos dois principais partidos nos Estados Unidos, por meio do uso de uma metodologia diferenciada.

Entende-se que o melhor indicativo da ideologia de um partido em nível nacional seja a sua plataforma nacional: único documento atribuído ao partido e endossado por todos, tácita ou formalmente, onde os posicionamentos políticos e pressupostos ideológicos do partido estão expostos. As plataformas nos permitem, ainda, uma análise comparada historicamente dos posicionamentos e ideologias expostos pelos partidos.

A abordagem metodológica feita nessa pesquisa se assemelha aos moldes das escalas de quantificação desenvolvidas por Feinstein e Schickler (2008), Koster (et al, 2012) e Lange (2007), mas foram construídas com base em quatro categorias distintas: política externa (diplomacia, comércio exterior, exército e defesa,etc.); política econômica (impostos, inflação, regulação do mercado, desemprego, salário mínimo, despesas do governo, iniciativa privada, corporações, sindicatos, entre outros); políticas de Welfare (rede de proteção, que inclui temas como Social Security, Medicare e Medicaid, educação, pobreza, regulação e proteção trabalhista, regulamentação armamentícia, regulamentação do meio ambiente, entre outros) e questões sociais (abrange questões morais como gênero, imigração, questões raciais, família, religião, aborto e homossexualismo).

Nesse sentido, por meio do uso de softwares como NVivo e SPSS, são pontuados posicionamentos explicitados na plataforma de acordo com a presença de indicador liberal (-1), ou conservador (+1).

O conservadorismo estadunidense e o Partido Republicano (PR), ou ainda o Partido Democrata (PD) e o liberalismo, não são termos intercambiáveis. Ainda que o conservadorismo hoje seja diretamente relacionado ao primeiro, e o liberalismo, ao segundo, essa é uma situação relativamente nova, consequência do sorting verificado nas últimas décadas que retirou a convivência de duas facções distintas em um mesmo partido.

A noção de “liberalismo” nos Estados Unidos emerge no meio político e está associada diretamente com as políticas do New Deal (1933 e 1936), enquanto a ideia de “conservadorismo” é construída e moldada por três diferentes grupos de atores (intelectuais, religiosos ativistas e empresários) no período imediatamente posterior, como tentativa de articular uma frente oposta a estas mesmas políticas (Vidal, 2016). O entendimento de liberalismo nos EUA é distinto do entendimento de liberalismo no Brasil, onde é associado ao liberalismo clássico, portanto à Escola Austríaca. Nesse país, o liberalismo é a ideologia política atual mais fortemente vinculada com a esquerda do espectro político, portanto, ao contrário do laissez-faire, defendendo um amplo escopo de atuação federal na construção de um Estado de Bem-Estar Social.

Vale lembrar que, até meados do século XX, o GOP podia ser considerado um partido relativamente progressista. Urbano e atrelado ao norte do país, esse mesmo partido contribuiu de forma direta para o fim da escravidão. O Partido Democrata, ao contrário, aliando-se aos interesses sulistas da oligarquia agrária, opôs-se tanto à abolição da escravatura, quanto aos primeiros movimentos de emancipação racial. A partir da década de 1960, esses papéis seriam revisitados.

De modo mais específico, a política econômica defendida nas plataformas republicanas durante o período estudado demonstra uma relativa predominância de posicionamentos conservadores. Oscila inicialmente até o ano de 1972, no entanto, e, a partir de 1976, há uma tendência à manutenção conservadora. De modo semelhante, no que tange às políticas de Welfare defendidas pelo PR, podemos verificar dois momentos distintos: um primeiro entre 1936 e 1972; e um segundo, entre 1976 e 2016. O primeiro período se caracteriza pela oscilação entre posicionamentos por vezes liberais e, por vezes, conservadores. Já o segundo é predominantemente conservador.

As questões sociais possuem também dois momentos distintos caracterizados por ápices invertidos: um primeiro momento entre 1936 e 1972, consistentemente liberal; e um segundo, entre 1976 e 2016, conservador. Até a década de 1960, o PR se concentraria em temas relativos ao movimento civil rights, emancipação feminina, imigração e minorias. A partir de 1964, novos tópicos surgem nas plataformas republicanas e se verifica, pela primeira vez, a relação entre religião e espaços públicos. A partir de 1976, nota-se o início da inflexão conservadora. Esse segundo momento se define por uma variedade de temas relativos a questões sociais e uma maior preocupação com aspectos “morais”. Por fim, diferentemente das outras áreas já analisadas, a política externa defendida pelo PR oscila ao longo de todo intervalo analisado. Ainda assim, é possível notar três períodos relativamente distintos.

O primeiro é um momento onde se pode verificar uma maior presença de posicionamentos conservadores – em específico, no que diz respeito às organizações internacionais, a projetos de defesa e à atuação externa. Já o segundo é um período de oscilação que conjuga plataformas tipicamente liberais (1944, 1948, 1968 e 1972), conservadoras (1952 e 1964) e “mistas” – onde as duas filosofias políticas estão apresentadas – (1956 e 1960). A partir de 1976, começaria o último período, que se caracteriza pela ascensão e manutenção de políticas conservadoras. Consoante com os preceitos conservadores, esse intervalo seria caracterizado por uma ênfase na defesa nacional por meio de maiores armamentos, na busca por um papel de liderança na arena internacional, na desvalorização de organizações e de tratados multilaterais, em um caráter mais moralista nas relações internacionais e em uma postura confrontiva caracterizada pela valorização da força e pela desvalorização da diplomacia no que tange às ameaças externas.

Gráfico 1: Médias do Partido Republicano (1936-2016)

Fonte: Elaboração própria.

 

Já a política econômica do PD pode ser dividida em três períodos: um primeiro tipicamente liberal entre 1936 e 1988, de certo modo, um reflexo da própria construção da ideologia liberal nos EUA; um segundo, com posicionamentos tanto conservadores quanto liberais entre 1992 e 2004; e, por fim, a retomada do liberalismo entre 2008 e 2016.

Referente às políticas de Welfare, notam-se três momentos: um primeiro, entre 1936 até 1992, caracterizado por elementos liberais que valorizam um ativo papel do governo federal na construção de um Estado de Bem-Estar Social; um segundo, entre 1996 e 2004, que se define por plataformas mistas e ambíguas (nesse sentido, as plataformas parecem estar pregando uma certa lógica conservadora no discurso, mas, na prática, mantêm os mesmos posicionamentos liberais de manutenção dos programas e serviços federais); e, por fim, um terceiro momento, entre 2008 e 2016, que retoma o liberalismo por meio de constantes menções a F.D. Roosevelt e ao New Deal, bem como a J.F. Kennedy e ao New Frontier.

Assim como no caso da política econômica e das políticas de Welfare, no que se refere às questões sociais, as plataformas democratas podem ser divididas em um primeiro momento, entre 1936 a 1992, que pode ser caracterizado como um período liberal com temas recorrentes, como questão de gênero, imigração e questões raciais; um segundo, entre 1996 e 2004, definindo-se a partir de uma inflexão conservadora, onde seriam incluídos temas como aborto, homossexualismo e posse de armas de fogo; e, por fim, o último período, entre 2008 e 2016, caracterizado pelo retorno ao liberalismo. Diferentemente das políticas domésticas, a política externa do PD se caracteriza por constantes oscilações entre períodos, cujos posicionamentos podem ser definidos como liberais, e outros, onde convivem tanto posicionamentos liberais quanto conservadores.

Gráfico 2: Médias do Partido Democrata (1936-2016)

Fonte: Elaboração própria.

Por fim, conforme podemos observar no Gráfico 3, os resultados nos indicam que há uma polarização partidária no período recente, mas que não se trata de fenômeno singular na história do país. Da mesma forma, percebe-se que há uma ascensão conservadora por parte do Partido Republicano, sobretudo, no que diz respeito a certas categorias de análise, como as questões sociais. De fato, o estudo feito nos indica duas questões importantes.

Em primeiro lugar, podemos perceber que há uma ascensão conservadora por parte do PR que se inicia em 1976 e se mantém relativamente estável, ainda que com uma rápida inflexão liberal no início dos anos 2000. Essa ascensão não é, portanto, exatamente linear e gradativa, mas surge de modo abrupto e convive com momentos decrescentes. E, em segundo lugar, pode-se perceber uma polarização partidária atual evidente, a qual não é, como já se afirmou, inédita na história recente dos EUA.

O período caracterizado pelo fim da década de 1970 e início dos anos 1980 já sinalizava um importante distanciamento ideológico. Nesse sentido, houve uma maior aproximação nos anos seguintes em função tanto de uma inflexão liberal por parte do PR quanto de uma inflexão conservadora por parte do PD e, por fim, um distanciamento progressivo entre os dois partidos a partir de 2008.

Gráfico 3: Médias conjuntas dos Partidos Democrata e Republicano (1936-2016)

Fonte: Elaboração própria.

O que se quer dizer com isso é que a polarização partidária atual pode ser entendida como resultado tanto de uma ascensão conservadora por parte do PR de forma relativamente inédita a partir da década de 1980, quanto um retorno ao padrão liberal do PD interrompido de forma abrupta na década de 1990. É importante mencionar ainda que muito dessa percepção polarizada se dá pelas questões sociais. Estes temas foram os grandes contribuintes para esse distanciamento e, em específico, para a maior média republicana no âmbito conservador. Ainda que de forma muito incipiente e possivelmente com lacunas explicativas, o trabalho aqui feito buscou elucidar, mesmo que timidamente, um fenômeno importante nos EUA e mesmo na Ciência Política: o atual distanciamento dos partidos do centro do espectro político contradizendo um importante cânone de uma das mais importantes correntes teóricas.

O que os estudos recentes e a análise aqui realizada nos mostram é uma atual oposição entre partidos com base em visões de mundo e, consequentemente, de posicionamentos políticos. Longe de se caracterizarem por um discurso centrista, ou pouco comprometido, supostamente com o intuito de angariar a maioria do eleitorado, os partidos estadunidenses atualmente se definem por posicionamentos opostos e firmes, caracterizando-se por um confronto ideológico em todas as áreas analisadas. Resta saber se esse processo é um que beneficia a democracia, ao representar a sociedade com todas as suas idiossincrasias ou, ao contrário, é um que prejudica a democracia, por contemplar extremos nem sempre característicos da sociedade como um todo.

 

Referências

FEINSTEIN, Brian; SCHICKLER, Eric. Platforms and Partners: The Civil Rights Realignment Reconsidered. Studies in American Political Development, n. 22, Spring 2008, p.1-31.

FIORINA, Morris P.; ABRAMS, Samuel J. Political Polarization in the American Public. Annual Review of Political Science. 2008. http://www.acsu.buffalo.edu/~jcampbel/documents/AnnualReviewFiorina.pdf

HUNTER, James D.; WOLFE, Alan. Is There a Culture War? Washington: Brookings Institution Press, 2006.

KOSTER, Willem de; ACHTERBERG, Peter; VAN DER WALL, Jeron. The New Right and the Welfare State. International Political Science Review, v. 34, 2012.

LANGE, Sarah. A New Winning Formula? The Programmatic Appeal of the Radical Right. Party Politics, v. 13, n.4, 2007.

MANN, James. Politics is more Broken than Ever. The Atlantic, 2014.

MANN, Thomas E.; ORNSTEIN, Norman J. It’s Even Worse Than It Looks. New York: Basic Books, 2012.

POOLE, Keith; ROSENTHAL, Howard. The Polarization of American Politics. The Journal of Politics, v. 46, n.4, p. 1061-79. Nov. 1984.

______. A Spatial Model for Legislative Roll Call Analysis. American Journal of Political Science, v. 29, n.2, p. 357-84. May 1985.

MCCARTY, Nolan; POOLE, Keith T.; ROSENTHAL, Howard. Polarized America. London: The MIT Press, 2006.

PIERSON, Paul; HACKER, Jacob. Off Center: The Republican Revolution and the Erosion of American Democracy. New Haven: Yale University Press, 2005.

PRIOR, Markus. Media and Political Polarization. Annual Review of Political Science. Fevereiro, 2013.

VIDAL, Camila Feix. Polarização Partidária e Ascensão Conservadora: Uma análise das plataformas nacionais Republicanas e Democratas nos Estados Unidos (1936-2012). Tese de Doutorado: UFRGS, 2016.

 

* Camila Feix Vidal é graduada em Relações Internacionais pela Florida International University (FIU); mestra e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e profa adjunta do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Áreas de pesquisa: Política estadunidense, Política externa dos EUA para a América Latina (ingerências diretas e indiretas) e Teorias das Relações Internacionais. E-mail: camilafeixvidal@gmail.com e camila.vidal@ufsc.br.

** Baseado na tese de Doutorado da autora, este Informe é uma versão reduzida do paper preparado para a Conferência Brasileira de Estudos Políticos sobre os Estados Unidos, promovida pelo INCT-INEU e realizada de 25 a 28 de novembro de 2019, em São Paulo.

 

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