Sociedade

O movimento antiguerra nos EUA de Trump

por Solange Reis*

 

Um recente editorial do jornal The New York Times abordou um problema que muitos americanos sequer percebem como tal: aparato militar excessivo e suas guerras duradouras. Na pátria “líder do mundo livre”, o militarismo ultrapassou a política de segurança e atingiu camadas do imaginário sociocultural.

Questioná-lo significa desconstruir um forte elemento da identidade nacional, o mito do militar corajoso e patriótico cujo papel altruísta é proteger seu país e o mundo dos supostos inimigos da democracia e da civilização ocidental.

A superioridade militar é uma ferramenta de coerção – mais dura e direta do que as sanções econômicas – de uma nação que se diz indispensável para um modelo de sistema internacional que funciona sob a sua hegemonia.

Congressistas das duas alas políticas aprovam orçamentos vultosos para o Pentágono avançar os interesses do país no exterior. Quando o assunto é a segurança nacional e o intervencionismo militar, prevalece o bipartidarismo, e os tais freios e contrapesos institucionais desaparecem ante um Congresso submisso ao Executivo e aos interesses setoriais.

Jornais, blogs, sites de política externa americana e redes sociais reproduzem o que parece ser o início de um movimento intelectual pela diplomacia; o movimento antiguerra cresce e tenta quebrar os cristais da tradição intervencionista. É pensado e difundido para desfazer a estado permanente de guerra, cujo resultado seria percebido pelos restrainers como a perda de poder e da legitimidade dos Estados Unidos no mundo, bem como o endividamento irreversível. O militarismo, como pilar da liderança americana, estaria por erodir não apenas outros sustentáculos da hegemonia, mas a própria segurança do Estado nacional.

Muitos de seus proponentes são progressistas; outros, ultraconservadores. Eventualmente, atuam juntos, como no recém-lançado “Quincy Institute for Responsible Statecraft”, financiado pelos magnatas George Soros (liberal-democrata) e Charles Koch (libertário-conservador).

Embora a restrição militar não seja um tema inédito, o debate atual pretende reverter a velocidade da Blob[1] (Mancha), apelido do aparato ideológico intervencionista que influencia políticos e parte da opinião pública.

A mensagem central é a de que o país passou ao ponto perigoso de poder autofágico. O overstretching militar desenvolvido para dar aos Estados Unidos uma capacidade de influência assimétrica no mundo já teria começado a destruir outros pilares de poder. Por exemplo, a legitimidade de sua liderança e a sustentabilidade de sua economia.

Por um Estado realista

Lançado em fins de 2019, o think tank “Quincy Institute for Responsible Statecraft” (QI) é formado por pessoas com variados graus de influência, áreas de atuação e ideologias.

Opondo-se aos internacionalistas – estes associados ao neoconservadorismo e ao liberalismo internacional – os restrainers pregam a redução da presença militar americana no mundo, sob a alegação de que as guerras duradouras não beneficiam o país.

O instituto nasceu com US$ 1,3 bilhão em caixa. Juntos, as Open Society Foundations, do financista George Soros, e a Koch Foundation, do empresário do petróleo, Charles Koch, doaram um total de US$ 500 milhões. O restante foi angariado entre outros bilionários e instituições. Seu lançamento recebeu muita atenção da mídia, a favor e contra, a começar pela improvável parceria entre opostos para uma filantropia de resultados políticos.

Argumentos antiguerra

Grosso modo, a política externa americana pós-Segunda Guerra sempre apontou para duas direções: realismo e idealismo. Durante os anos da Guerra Fria, prevaleceu o realismo, no sentido de que as intervenções militares não aconteciam com base em princípios morais, mas no interesse nacional. O inimigo evidente era o comunismo, cujo avanço devia ser contido pelo bem da ordem econômica capitalista. Liberdades individuais, direitos humanos e democracia, embora embasassem retóricas oficiais, não justificavam uma guerra.

Durante o breve período de unipolaridade, entre a queda da União Soviética e o fim do mandato de Obama, o idealismo se sobrepôs como orientação. Os inimigos não liberais, quer fossem simétricos ou assimétricos, não deviam ser apenas contidos, mas destruídos. O nation-building abroad comportava qualquer recurso, de bloqueios aéreos à derrubada de regimes, passando pela colocação de tropas em solo estrangeiro.

Os restrainers argumentam que tal modelo mais recente de política externa e de segurança, além de defasado e ilógico na multipolaridade, tornou-se prejudicial. Os anos de neoconservadorismo e liberalismo internacional desviaram o país de seus interesses nacionais, pois o complexo industrial-militar crescente aprofunda o grau de endividamento externo; o desgaste político de guerras, conflitos e sanções impedem soluções diplomáticas mais baratas e eficazes; a instabilidade gerada com as guerras afeta a legitimidade do poder americano.

Trump venceu os neoconservadores nas primárias republicanas e derrotou no Colégio Eleitoral a intervencionista liberal, Hillary Clinton. Apesar disso, talvez também por sua própria incoerência, não venceu a máquina da guerra. As guerras intermináveis são uma engrenagem colocada em funcionamento, independentemente da existência de inimigos. Na ausência real destes, a máquina de guerra os desenvolve criativamente.

Os gastos com guerras depois de 11 de setembro chegam a US$ 6 trilhões, e devem crescer, com a constatação por parte dos formuladores de política externa de que a China precisa ser contida em sua região, a fim de que se mantenha a superioridade americana. Mas os restrainers querem saber para que serve a hegemonia.

A estratégia dos restrainers será desenvolver a ideia de que a guerra infinita é o resultado de um processo não democrático. Ou seja, com abordagem similar à de Trump no que diz respeito a “drenar o pântano”, o movimento antiguerra tentará levantar o debate sobre o caráter elitista da promoção da guerra e da superioridade militar americana que custa vidas e recursos. O resultado desse desvio moral e prático é um mundo mais inseguro e os Estados Unidos internamente fragilizados.

Para os restrainers, o fato de Trump não se encaixar em nenhuma escola de política externa é um problema e uma oportunidade. O Quincy Institute não aposta nele como veículo de transformação, mas considera que sua eleição foi uma ducha de água fria para os internacionalistas, pelo fato de o presidente questionar alguns dos pilares da ordem internacional liberal.

Trump é o presidente que ousa indagá-la menos disfarçadamente. Sua eleição e seu governo seriam mais um sinal do esgotamento de um modelo de nação no qual os Estados Unidos se transformaram ao colocar a hegemonia política e a superioridade militar como interesses nacionais. Ao elegê-lo, parte da população optou pelo desembarque oportuno do mundo.

 

[1] Termo atribuído por Ben Rhodes, ex-conselheiro de Barack Obama, sobre o aparato de pensadores, jornalistas, e políticos que difundem o intervencionismo como princípio da política externa dos Estados Unidos.

 

Este artigo é um resumo do trabalho apresentado na Conferência Brasileira de Estudos Políticos sobre os Estados Unidos, em novembro de 2019.

 

*Doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). 

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