América Latina

Trump e América Latina: novidade ou mais do mesmo?

Série ‘Relações Brasil-EUA’, parte IV

Por Rafael R. Ioris*

Analisar as relações EUA-América Latina é um exercício que tende a se pautar mais pela constância do que pela inovação. Há cerca de 200 anos que se pode falar em padrões de relacionamento no âmbito hemisférico onde o preconceito, condescendência, intervencionismo ou, na melhor das hipóteses, o paternalismo do colosso do norte para com o restante da região são a regra, com poucas dinâmicas alternativas dignas de menção. Dentro dessa lógica de permanência, como se encaixa o relacionamento dos EUA para com a região latino-americana durante a administração de um dos presidentes mais sui generis da história da ainda maior potência global?

Além do dito acima, talvez o maior eixo estruturante das interações históricas entre EUA e América Latina tenha sido, de fato, o desprezo. Com raras exceções, a região nunca foi foco prioritário da política externa do país. E, no mais das vezes, quando esse interesse aumentou, isso se deu por motivos geopolíticos globais, cujas manifestações em âmbito regional eram tidas como perigosas, quando não mesmo inaceitáveis – vide as intervenções ocorridas ao longo da Guerra Fria e, especialmente, a centralidade assumida pela América Central nas políticas de contenção do governo Reagan (1981-1999).

Durante o governo Clinton (1993-2001), o foco na América Latina retoma a lógica metonímica (da parte pelo todo), que assume, explica e toma toda região sob a lente da realidade mexicana. E, embora vários países regionais tenham tentado se aproximar do então país-chefe da globalização liberal, foi a nação asteca a que mais se aproximara dos EUA, pelo menos de um ponto de vista formal, ao longo dos anos 1990. Com George W. Bush, na virada do século XXI, a região reassume novamente sua irrelevância frente à ênfase dada pelos EUA ao Oriente Médio e à chamada Guerra contra o Terror.

Foi nesta ausência de interesse por parte do governo dos EUA para com a região que a mesma encontraria uma das melhores fases de crescimento econômico, pautado também, e excepcionalmente, por graus de democratização política e inclusão social únicos.

Apesar da profunda mudança de tom permitida pela ascensão de Barack Obama à Presidência norte-americana, a América Latina continuaria, porém, a não ter grande relevância na política externa norte-americana, ainda voltada para Ásia, Europa e Oriente Médio. Trump representa, sem dúvida, algo inusitado dentro desse padrão histórico – mais pelo estilo do que pelo conteúdo em si.

Endurecimento e lógica doméstica regulam política externa regional

Com a chegada do populista de direita nova-iorquino à Casa Branca, o tom agressivo e a lógica da parte pelo todo são fortemente aprofundados – ainda que a maior constância do relacionamento passe, novamente, a ser falta de interesse por parte de um governo onde política externa em geral não tem nenhuma centralidade. Poderíamos mesmo dizer que não há uma política de Estado por parte dos EUA para com a América Latina durante a administração Trump. De modo alternativo, diria que o que existe é uma visão onde a América Latina é subsumida à perspectiva doméstica. De fato, a América Latina como um todo passa a ser vislumbrada do alto do muro fronteiriço com o México.

Ironicamente, de maneira trágica, preconceituosa e demagógica, a América Latina, em sua versão metonimicamente construída por Trump, foi um dos temas-chave de seu primeiro discurso de campanha, em junho de 2015. Foi então que o candidato republicano prometeu dar um basta à dita invasão de bad hombres pela fronteira sul do país. E assim, ao prometer fechar essa porta de entrada supostamente escancarada com um muro enorme e bonito, Trump dava o tom de uma campanha de teor nacionalista (Fazer a América Grande de Novo) concentrada em ativar os sentimentos mais xenófobos, racistas e violentos da base de seu partido. Em verdade, a América Latina de Trump não é muito distante do entendimento do chamado cidadão médio e conservador do país, o que ajuda a entender o apelo e a eficácia da tática eleitoral usada pelo republicano.

Já eleito, não era de todo claro o que, para além do muro, poderia ser uma possível politica externa para a região. O que era certo é que nenhum de seus principais assessores de política externa, fossem eles Michael Flynn ou H.R. McMaster, tinha qualquer interesse na América Latina. Ou, alternativamente, quando o tinham, como foi o caso do neoconservador John Bolton, isso se dava sob o ângulo de uma lógica redividida da Guerra Fria regional. Este foi o caso no início deste ano quando, estimulado pelo também fundamentalista conservador Ernesto Araújo, Bolton tentou promover uma intervenção militar dos EUA (e do Brasil) na Venezuela.

A falta de importância da América Latina para os desígnios da política externa dos EUA não tenderá a mudar até pelo menos 2021. Isso pode vir a ocorrer somente se algum evento regional for visto como relevante na área de segurança nacional dos EUA. Talvez a turbulência regional dos últimos dias (vide Equador e Chile), caso tenda a continuar, possa ser esse fato novo. Por ora, no entanto, isso não parece provável. Assim, para além disso tudo, o que houve de novo em relação à América Latina sob o governo Trump?

América Latina de Trump vista de um muro

As principais reversões do governo Trump se deram no campo da política migratória para com a região, assim como em relação ao que seria um dos poucos, mas importantes, legados da administração Obama: o rapprochement com Cuba. Aliado à sempre presente questão do tráfico internacional de drogas, a política migratória de Trump se tornou ainda mais agressiva no que se refere à fronteira sul. E, embora durante o governo Obama os EUA tenham registrado números recordes de deportação de imigrantes indocumentados, com Trump, o clima de medo e incerteza nas comunidades latinas adquiriu novos patamares.

A polícia fronteira recebeu novos recursos e foi treinada para agir de maneira mais truculenta. Prisões e separações de familiares atravessando a fronteira, assim como dentro do país, passaram a ser a norma, e crianças tomadas de seus pais foram colocadas em jaulas e centros de detenção em vários estados fronteiriços.

A pressão pela contenção do número de imigrantes, a maioria proveniente do chamado Triângulo do Norte (El Salvador, Honduras e Guatemala), adquiriu centralidade no relacionamento dos EUA para com o México e países centro-americanos, inclusive por parte do Congresso dos EUA. Ainda que o Legislativo tenha agido para conter as prisões de crianças, em linhas gerais, expressa a mesma preocupação para com os fluxos migratórios de países onde a própria política norte-americana desempenha um papel desestabilizador das economias e políticas locais, como Honduras e Guatemala. Da mesma forma, a política criada por Obama de não deportar jovens em condição ilegal que chegaram aos EUA quando crianças, mas que agora estão nas universidades norte-americanas (programa Ação Diferida para Chegadas na Infância, mais conhecido pelo acrônimo em inglês Daca), foi abolida por Trump. O clima geral nos campi universitários é de preocupação e temor.

Com relação à Cuba, Trump cancelou a política de reaproximação implementada por Obama, recolocou algumas restrições comerciais e de cooperação, especialmente na área de tecnologia e investimentos. Por pressão do lobby do setor de turismo, ainda não houve a retomada da proibição de visitas de cidadãos norte-americanos ao país caribenho.

A Colômbia continua a receber atenção especial do governo dos EUA, especialmente no que tange à política antidrogas e à cooperação militar. Como contraponto claro, especialmente durante os últimos 17 meses quando Bolton trabalhou como conselheiro de Segurança Nacional, os governos da Venezuela e da Nicarágua foram hostilizados em pronunciamentos públicos, e o primeiro, alvo de novas restrições econômicas importantes.

Ainda assim, em linhas gerais, o que se vê na quase inexistente política latino-americana do governo Trump é um descompasso, com exceção da questão migratória, entre a retórica dura e as políticas concretas. Na área comercial também houve um retrocesso no interesse e na interação com a região. O cancelamento da participação norte-americana na Parceria Trans-Pacífica (TPP, na sigla em inglês) afetou as expectativas de livre-comércio de países como Chile, Peru e México, embora estes sejam, além da Colômbia, estados com os quais os EUA já possuem acordos bilaterais de comércio importantes.

Trump exigiu que o Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA, na sigla em inglês) fosse renegociado, mas o novo pacto (USMCA, ou Acordo Estados Unidos, México e Canadá), com raras exceções, não altera muito a lógica de integração econômica (mas não social e legal) já existente. Por fim, o novo governo mexicano, sob o comando do esquerdista López Obrador, apesar de sua retórica de campanha nacionalista, tem-se mostrado mais acomodacionista às exigências de Trump do que se poderia esperar, assim como a maioria dos países da região. Houve também pressão crescente dos EUA sobre diversos países quanto à crescente presença chinesa na região. Apesar de uma retórica claramente imperialista, que trata a região como área de influência natural norte-americana, é difícil imaginar que os EUA consigam reassumir seu papel de investidor e consumidor primordial junto à maioria dos países latino-americanos.

Expectativas frustradas de uma parceria assimétrica

No que se refere ao Brasil, apesar dos bravados quanto a um relacionamento especial de ambas as partes – pelo menos desde a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência –, até o momento o que se viu é muito pouco. A guinada pró-EUA buscada pela lógica pré-iluminista do chanceler Ernesto Araújo (que entende Trump como o defensor-mor de uma suposta cristandade ocidental em xeque pela conspiração globalista) não foi capaz de recentrar os interesses dos EUA para com a região, Brasil em especial, assim como não foi capaz de obter nenhuma concessão dos EUA. Por enquanto, fica a promessa vazia do apoio ao pedido brasileiro de entrada na OCDE e das concessões comerciais unilaterais feitas por Bolsonaro em março quando de sua visita a Washington, D.C.

O governo brasileiro acaba de suspender a nomeação de Eduardo Bolsonaro, aumentando a indefinição de um nome para ocupar o que já é um dos maiores períodos sem que o país tenha um chefe em sua principal embaixada. Embora haja semelhanças de estilo e mesmo de agenda, o fato é que durante o que, aparentemente, poderia ter sido um relacionamento mais próximo, apesar da retórica grandiloquente da atual administração do Itamaraty e da mídia brasileira, parcos resultados podem ser apontados até agora da interação Trump-Bolsonaro. Não há expectativa de que esta realidade seja alterada mesmo com a nomeação de Todd Chapman por parte de Trump como embaixador dos EUA no Brasil.

Assim, conforme apontado anteriormente, a política norte-americana para a América Latina sob Trump tem sido definida pelo prisma da realidade doméstica. Ainda que esta dinâmica sempre tenha estado presente na formulação da política externa dos EUA, com Trump, tal fenômeno adquiriu níveis historicamente elevados. A campanha presidencial nos EUA já está em pleno vapor. E, se a América Latina foi vista de cima do muro fronteiriço em 2016, essa lógica tenderá a continuar e até mesmo se aprofundar na eleição de 2020.

Assim, de pouco importante por si mesma, a região poderá passar a ser simplesmente ignorada como um todo. Não se trata, necessariamente, de algo ruim para uma parte do mundo que, por tempo demais, foi (e de certa forma continua sendo) vista como um natural quintal norte-americano.

Ecoando a realidade do início dos anos 2000, tais dinâmicas poderiam servir como estímulo para a retomada de projetos de cooperação regional e mesmo da consolidação de iniciativas de inclusão social e política na região. Para tanto, teríamos de retomar também a agenda, e mesmo a lógica, dos governos de então – algo que, na atual conjuntura, definida pela reimplementação do neoliberalismo, em quase toda região, é tragicamente impensável. Pelo menos por enquanto.

 

* Rafael R. Ioris é membro do INCT-INEU e professor de História Latino-Americana e Política Comparada da Universidade de Denver. É autor do livro Qual Desenvolvimento? Os Debates, Sentidos e Lições da Era Desenvolvimentista (Paco Editorial, 2017) e pesquisador da História do Relacionamento EUA-América Latina.

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