Estados Unidos, mudanças na América Latina e a região andina em crise
Alguns sintomas atuais e mais graves da crise
Por Renata Peixoto de Oliveira
A região andina está convulsionando neste ano de 2019, e isto vem chamando a atenção de especialistas em toda região. No início do ano, tivemos o ápice da crise na Venezuela, com o líder oposicionista Juan Guaidó se autoproclamando presidente interino daquele país.
Passados alguns meses, verificamos a instabilidade política em outros países da região andina. O Peru passa por um impasse institucional desde a renúncia do presidente Pedro Paulo Kuzinski, em 2018; o suicídio do ex-presidente Alan García, em 2019; e as tensas relações entre o Executivo e o Legislativo. O presidente Martín Vizcarra dissolveu o Congresso que, em retaliação, suspendeu-o, nomeando a vice, que declinou para não piorar a crise. Atualmente, o governo tenta controlar a situação para garantir a governabilidade até o final de seu mandato.
Em poucas semanas, presenciamos grandes manifestações em outros dois países da região, o Chile e o Equador. No último caso, tivemos até a decretação de estado de exceção no país, mortxs e feridxs em função dos embates entre manifestantes e polícia na capital Quito. A motivação foi o fim do subsídio aos combustíveis. No caso chileno, mais recente, os protestos que tomaram as ruas e deixaram alguns mortxs, feridxs e detidxs, deu-se pelo aumento dos preços das passagens de metrô. No Chile, foi decretado estado de emergência em todo país, e a situação ainda não está sob controle.
Quais as interpretações e reflexões de fundo possíveis? Como entender a geopolítica regional, com base nas transformações recentes e na dinâmica das nossas relações interamericanas? Que leitura fazer, considerando-se o posicionamento dos EUA, seus interesses na região e a proximidade ou afastamento dos países sul-americanos e, em especial, andinos de Washington?
Eixos geopolítico-estratégicos regionais e sua dança das cadeiras
Com o pós-Guerra Fria e o período de redemocratização, presenciamos que a manutenção da ingerência dos EUA na região se deu por meio do suporte ao avanço das reformas de cunho neoliberal e com a atuação dos organismos internacionais. Prenunciada pelo Levante de Chiapas, no sul do México, em 1994, a crise do neoliberalismo trouxe alguns novos elementos para a presença dos EUA na região, já que, com o vazio de poder instaurado e os controversos impactos da globalização neoliberal, outras possibilidades passaram a ser consideradas.
A partir disso, presenciamos o avanço de uma onda rosa que mostrou que a fase do falso consenso neoliberal havia passado e que já estávamos diante de uma era de dissensos marcada por distintos projetos em disputa: a manutenção do neoliberalismo x a retomada do modelo neodesenvolvimentista.
Assim sendo, a década dos anos 2000 se viu dividida da seguinte forma (Quadro 1):
Quadro 1: Eixos que representavam o dissenso dos anos 2000 na AL
Eixo à direita/ alinhado com Washington |
Eixo à esquerda/antiamericanismo |
|
Neoliberalismo ortodoxo |
Bolivariano/radical/refundador |
Progressista/moderado |
Chile | Bolívia | Brasil |
Colômbia | Venezuela | Uruguai |
Peru | Equador | Argentina |
Paraguai** | Nicarágua | Paraguai (Lugo) |
México | Cuba | |
Honduras |
** O Paraguai é um caso de neoliberalismo tardio e apenas pode ser considerado parte da onda rosa enquanto Fernando Lugo esteve no poder, de 2008 até seu impedimento em 2012. Fonte: elaborado pela autora.
Com a crise e o fim da era progressista, sinalizada pelo avanço de governos de direita na região, notadamente a partir de 2016 com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff no Brasil, percebemos uma nova articulação e dinâmica política regional, conforme Quadro 2 disposto abaixo.
Quadro 2: Reconfiguração neoliberal na AL
Eixo à direita/alinhado com Washington |
Eixo à esquerda/antiamericanismo |
|
Neoliberalismo ortodoxo |
Bolivariano/radical/refundador |
Progressista/moderado |
Chile |
Bolívia (eleições em curso) | México |
Colômbia | Venezuela (em colapso) | Uruguai |
Peru | Nicarágua (em crise) | |
Paraguai | Cuba (em transição) | |
Brasil | ||
Argentina (eleições em curso) | ||
Equador |
Fonte: elaborado pela autora.
Bem, percebemos que o eixo neoliberal concentra a maior parte dos países da região. Além disso, é possível notar a centralidade da região andina nestas movimentações, seja pela permanência de países no eixo neoliberal, como Chile, Colômbia e Peru, seja pela mais grave crise regional, a venezuelana, e também pela mudança do Equador do eixo bolivariano para o eixo neoliberal.
O caso venezuelano é muito emblemático e deve ser tratado como caso especial, talvez o epicentro da crise do progressismo regional, da ingerência dos Estados Unidos e das indefinições destes processos contemporâneos na região.
Ao olharmos atentamente para o eixo neoliberal, por um lado, percebemos seu momento favorável, ao reverter a tendência de governos de esquerda e progressistas na região. Por outro, porém, percebemos que sua dinâmica ainda é bastante problemática. Os países que representam a continuidade neoliberal, Peru e Chile, passam por uma grave crise: no caso do primeiro, de ordem política e institucional e, no caso do segundo, por uma onda de protestos e mobilizações sociais.
Ao analisarmos os países que não faziam parte deste eixo, porque estavam situados mais à esquerda, mas que retornaram ao eixo neoliberal – ou seja, Equador e Argentina –, temos este último em uma grave crise econômica, e o primeiro, passando por protestos e mobilizações contra as políticas neoliberais do governo. E ainda podemos destacar, por exemplo, as incertezas do Brasil, a partir das peripécias do governo Bolsonaro, e os dilemas da Colômbia em função dos malogros com seu processo de paz.
E os Estados Unidos nisso tudo?
Quando se configurou a onda rosa e principalmente em relação aos países do chamado eixo bolivariano, os EUA marcaram posição na região não apenas demonstrando não apoiar a estes governos, mas, sobretudo, buscando desestabilizar os mesmos. Isso foi muito sintomático do que ocorreu com o golpe contra Chávez em 2002 e também em Honduras em 2008 e na Bolívia, neste mesmo ano.
O posicionamento de Washington em relação aos novos governos do Brasil e do Paraguai depois dos impedimentos políticos de seus presidentes de esquerda também evidencia maior proximidade em relação a governos que sejam de direita e favoráveis ao modelo neoliberal. O neoliberalismo é o ponto central neste debate. A adesão ou o rechaço a este modelo determinam as relações com os Estados Unidos. Na crise equatoriana, ainda em curso, o governo Trump demonstrou total apoio a Lenín Moreno.
O ano de 2020 nos dirá muito sobre a sobrevivência política de alguns grupos, sobre a extensão desta crise no seio da reconfiguração neoliberal em nível hemisférico, sobre as eleições que estão ocorrendo em países como Argentina e Bolívia e, principalmente, a respeito do processo de impeachment de Trump e da sucessão presidencial na Casa Branca.
* Renata Peixoto de Oliveira é pesquisadora do INCT-INEU e doutora em Ciência Política pelo DCP-UFMG. Professora do curso de Relações Internacionais e Integração e dos programas PPG-ICAL e PPG-PPD da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA), é líder do grupo CESPI-América do Sul e membro do grupo DALC-ALACIP. É autora do livro Sem Revoluções: os dilemas das democracias neoliberais andinas (ed. Appris, 2019).