OCDE: a importância da organização e a frustração brasileira
Print da página do Itamaraty, em 10 de outubro de 2019
Por Karen Fernandez Costa e Jefferson Luís da Silva*
Contrariando as certezas e as afirmações do governo brasileiro, recebemos dias atrás, em 10 de outubro de 2019, a notícia de que o Brasil não fora o candidato escolhido pelos Estados Unidos para ingressar na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Argentina e Romênia foram os países que receberam o apoio estadunidense. A formalização do pedido de ingresso do Brasil na organização ocorreu em maio de 2017. Apesar das controvérsias em torno do tema, a avaliação do governo brasileiro era de que integrar a instituição traria confiança para suas políticas econômicas, contribuindo para a captação de financiamentos e ampliando a entrada de investimentos externos no Brasil. No início do governo Bolsonaro, a questão ganhou proeminência na agenda da política externa brasileira no contexto de uma aproximação assimétrica, unilateral e sem precedentes com o governo estadunidense.
São vários os sinais concretos de tal alinhamento, como a apresentação por parte do Brasil de propostas na ONU contra a Venezuela; a isenção, sem qualquer reciprocidade, de exigência de vistos de cidadãos estadunidenses; e as convergências político-ideológicas entre os governos Bolsonaro e Trump, notáveis, por exemplo, nos discursos de ambos na 74ª Assembleia da ONU. No entanto, especificamente em relação à OCDE, a questão é ainda mais impactante, pois o Brasil, por exigência dos Estados Unidos, renunciou ao status de “país em desenvolvimento” nas negociações de acordos comerciais com os países ricos, na Organização Mundial do Comércio (OMC), em troca do apoio estadunidense ao pleito de ser aceito como membro pleno na OCDE.
Manda quem paga mais
Um pressuposto fundamental para integrar a OCDE é a identificação dos países com os valores da governança democrática e com os princípios da economia de mercado. A organização se percebe como um lócus onde os governos podem comparar experiências políticas, buscar respostas para problemas comuns, identificar práticas e coordenar as políticas e normas nacionais e internacionais. Define-se como um fórum no qual a pressão dos colegas pode agir como um poderoso incentivo para melhorar a política. Busca disseminar e uniformizar normas de políticas econômicas e de relacionamento comercial em diversas áreas temáticas, incluindo políticas de consumo, assuntos tributários, previdência, governança e investimento estrangeiro, além de produzir instrumentos, decisões e recomendações por meio de acordos multilaterais.
Para alcançar os objetivos a que se propõe, a OCDE compartilha informações adquiridas por intermédio do monitoramento contínuo dos países-membros e não membros. A organização funciona com base na análise e coleta de dados, seguidas por discussões entre as Comissões. Sua estrutura é composta pelo Conselho, pelas Comissões e pelo Secretariado. O Conselho conta com um representante de cada país-membro e da Comissão Europeia. Possui poder de decisão, e estas são tomadas por meio do consenso. Reúne-se anualmente e define as diretrizes da organização, assim como as medidas a serem implementadas. Há mais de 200 Comissões Especializadas, integradas por representantes dos países-membros, que monitoram o desempenho dos países. O Secretariado possui cerca de 3000 funcionários que apoiam as atividades das comissões e respondem às prioridades estabelecidas pelo Conselho. Parte das negociações no âmbito da OCDE resultam em acordos de cooperação internacional que culminam em normas e modelos a serem implementados e que serão objeto de fiscalização internacional.
Atualmente com 36 membros e com orçamento, em 2017, de 374 milhões de euros, a Organização é financiada por seus países-membros (Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Coreia, Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, México, Noruega, Nova Zelândia, Países Baixos, Peru, Polônia, Portugal e Reino Unido). As contribuições para o orçamento anual estão baseadas em uma fórmula relacionada com o PIB de cada um. Os EUA Unidos respondem por 20% do orçamento da instituição, constituindo-se seu principal financiador.
Agenda dos ricos
Apesar de países em desenvolvimento como Chile, México e Turquia integrarem a OCDE e de estar em curso um processo de ampliação da organização, sua agenda é historicamente atrelada às demandas e aos objetivos dos países ricos. Sua origem remete aos esforços para implementação do Plano Marshall, quando da reconstrução europeia no Pós-Guerra.
Nos anos 1980, foi um espaço importante de liderança estadunidense na articulação da agenda e das demandas dos países ricos em temas de comércio internacional. Na Rodada Uruguai do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) – da qual se originou a OMC –, o consenso alcançado entre os países da OCDE foi decisivo para a inclusão, em sua agenda, dos “novos temas” (comércio de serviços, investimentos, propriedade intelectual e patentes) contrários aos interesses dos países em desenvolvimento. A resistência à inclusão desses temas foi liderada pelos países em desenvolvimento – principalmente, Argentina, Brasil, Cuba, Egito, Índia, Nicarágua, Nigéria, Peru, Tanzânia e Iugoslávia –, que formaram um bloco de oposição à inclusão deles sem que as questões pendentes (comércio agrícola e têxteis) fossem renegociadas e resolvidas.
O fato é que a articulação, com a liderança estadunidense, dos países da OCDE foi elemento decisivo na consequente divisão, desarticulação e derrota dos países em desenvolvimento nas negociações.
A OCDE também desempenhou papel notável, nos anos 1990, em torno da construção de uma rede global pela defesa da reforma do setor público. A justificativa é que ela estimularia a boa governança, as práticas democráticas e gestões transparentes, eficientes e responsáveis. Neste ponto, não podemos deixar de mencionar o significado e o impacto desta agenda nos países em desenvolvimento e, especialmente, no Brasil.
A crise econômica enfrentada na década de 1980 foi vista como fruto da ineficiência estatal, desconsiderando-se todos os aspectos econômicos e estruturais, domésticos e internacionais que a favoreceram. Demonizado e visto como intrinsecamente ineficiente, o Estado foi alçado ao posto de principal responsável pela crise e pelas mazelas econômicas e sociais enfrentadas naquele momento. Sob o argumento de busca por eficiência na gestão governamental, estabelecia-se uma prescrição geral que pouco atentava para as especificidades dos países, vislumbrava a homogeneização de políticas e incluía invariavelmente a ampla liberalização econômica, as privatizações e a redução do tamanho do Estado como condições sine qua non para superação da crise.
Não há almoço grátis
Evidencia-se, portanto, um perfil de organização em que o espaço para o reconhecimento das especificidades e das demandas dos países em desenvolvimento é absolutamente limitado. Integrá-la como membro pleno não muda por si só o status econômico de um país e, menos ainda, suas características e necessidades. O suposto compromisso, com um padrão específico de políticas econômicas que o pertencimento a ela evidenciaria, atraindo, por conseguinte, investidores e afiançando credibilidade também parece muito frágil – sobretudo, quando descolado das condições domésticas concretas do país em contextos específicos.
Além disso, estamos diante de uma instituição com poder limitado de enforcement. Ainda que haja instrumentos formais e impositivos no âmbito da organização, de acordo com Leslie Pal, um dos principais estudiosos de OCDE, ela constitui fundamentalmente uma rede de troca de ideias e de experiências complementadas pela pesquisa com uma influência que se exerce, principalmente, via instrumentos de política soft. Trata-se, portanto, de um grande fórum de articulação dos países desenvolvidos.
Como aponta Leslie Pal, seus mecanismos formais são: i-) decisões por consenso que comprometem todos os membros; ii-) recomendações, adotadas por consenso, mas com conformidade voluntária; iii-) acordos, envolvendo membros e não membros; iv-) declarações, compromissos políticos não juridicamente vinculativos, cuja aplicação é geralmente monitorada pelos comitês; e v-) arranjos que envolvem somente alguns membros e são feitos na estrutura da OCDE.
Difícil não questionar as reais vantagens de um país em desenvolvimento como o Brasil de ingressar em uma organização fundamentada em teorias e ideias desenvolvidas com base nas necessidades dos países ricos, cuja origem e trajetória remetem ao atendimento de seus interesses e de suas demandas. Para além das idiossincrasias de Trump e Bolsonaro, o que mais preocupa é observar o Brasil abrir mão de um enquadramento específico (país em desenvolvimento) em uma organização (OMC) que, mesmo mergulhada em uma crise, é mais relevante, para um país em desenvolvimento, do que a OCDE. A renúncia ao status de país em desenvolvimento significa não poder usufruir de um tratamento diferenciado em negociações comerciais concretas. Sinaliza um distanciamento do mundo em desenvolvimento e a impossibilidade de estabelecer junto a eles coalizões e enfrentamentos importantes em um sistema internacional absolutamente hierarquizado.
Depois da destacada liderança dos países em desenvolvimento, pelo Brasil, na Rodada de Doha da OMC, estamos diante da espera de um possível reconhecimento, por parte dos Estados Unidos e dos países ricos, que não aponta para qualquer ganho concreto, além do que a demonstração de concordância com uma agenda econômica específica possa gerar. Não precisamos da OCDE para afiançar nossa adesão a esta pauta.
Deve haver quem acredite que a simples formalização da entrada para o “clube dos ricos” nos livrará das mazelas do subdesenvolvimento. O fato é que o distanciamento de parceiros, em condições de desenvolvimento e com demandas semelhantes às nossas, tem consequências concretas e importa muito mais do que o descumprimento da promessa estadunidense de apoio para o nosso ingresso imediato na OCDE. Importa mais do que saber se seremos ou não membro de uma organização distante da realidade dos países em desenvolvimento.
* Sugestões de leitura *
PAL, Leslie A. The OECD and Global Public Management Reform. HRVATSKA JAVNA UPRAVA, god. 9. (2009.), br. 4., str. 1057–1089.
RICUPERO, Rubens. Integration of Developing Countries into the Multilateral Trading System. In: BHAGWATI, J.; HISCH, M. (eds). The Uruguay Round and Beyond. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1999.
* Karen Fernandez Costa é pesquisadora do INCT-INEU e professora do Departamento de Relações Internacionais da UNIFESP. Jefferson Luís da Silva é graduando em Relações Internacionais pela UNIFESP e bolsista de Iniciação Científica PIBIC-Unifesp.