O ativismo dos estados brasileiros e norte-americanos na temática ambiental
Governadores brasileiros da região amazônica assinam carta da Força-Tarefa ‘Governors’ Climate & Forests’ (GCF), em NY
Série ‘Relações Brasil-EUA’, parte III
Por Débora Prado*
O aumento do desmatamento e das queimadas registrados neste ano na região Amazônica ocuparam um papel de destaque nas manchetes nacionais e internacionais. O governo brasileiro vem enfrentando pressões para responder à crise ambiental e, ao mesmo tempo, perde um espaço importante na luta pela proteção da floresta e na defesa das mudanças climáticas. Além das pressões sofridas em fóruns multilaterais, o país teve suspensas as doações da Noruega e da Alemanha para o Fundo Amazônia, que desenvolve ações e projetos contra o desmatamento. É neste contexto que os governos estaduais brasileiros têm resistido às posições e políticas adotadas pelo governo federal.
Estados rebeldes?
O estado do Amazonas tem buscado ampliar investimentos com o banco KFW e com outros apoiadores internacionais com interesse em ajudar na proteção da Amazônia, tais como a França. Em entrevista recente, o governador Wilson Lima (PSC) destacou: “Respeitamos essa questão do governo federal, mas a gente vai, na medida do possível, estabelecendo essas parcerias internacionais, entendendo o que é prioridade dentro de nossa política pública”. Já o governo do estado do Pará fechou um acordo com um banco alemão para financiar ações de combate às derrubadas ilegais. Segundo o governador daquele estado, Helder Barbalho (MDB), “se isso será feito por meio de uma articulação federal, não somos contrários a isso. Agora, nós não vamos ficar a reboque disso”. O governador do Mato Grosso, Mauro Mendes (DEM), também recebeu representantes de três países europeus e defendeu a descentralização dos recursos, ao argumentar que a gestão pode ser feita diretamente pelos estados.
Posições contrárias ao governo federal pelos estados também foram observadas durante a realização da Semana Latino-americana e Caribenha sobre Mudança Climática, em agosto deste ano. Apesar do descaso e da total ausência de apoio do governo federal, o estado da Bahia liderou as discussões. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, chegou a ironizar o evento, afirmando que seria seria uma “oportunidade” para a turma “fazer turismo em Salvador” e “comer acarajé”. Esta cidade vem se empenhado neste debate, tendo assumido compromissos importantes com a assinatura do Pacto Global de Prefeitos pelo Clima e Energia. O documento tem por objetivo formar gestores focados na implementação de políticas e ações para redução das emissões e enfrentamento da mudança climática.
Outro importante exemplo deste movimento de resistência estadual foi a coalizão formada pelos estados da Amazônia Legal, por meio do Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal, composto pelos estados do Acre, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. O grupo ocupou um papel de destaque na Cúpula do Clima organizada pela ONU que antecedeu a Assembleia Geral da organização, durante o mês de setembro.
Enquanto o presidente Bolsonaro abria o discurso do país na Assembleia Geral da ONU, criticando o que ele chamou de interferência de interesses estrangeiros na Amazônia com ataques à indígenas e a ONGs destinadas à proteção ambiental, o governador de Pernambuco reafirmava, em encontro paralelo, o compromisso dos estados brasileiros com o Acordo de Paris. Paulo Câmara destacou que “diante dos riscos de retrocesso por parte do nosso governo nacional, os estados brasileiros decidem assumir resolutamente seu papel”. O governador discursou em nome de 11 estados brasileiros e do movimento Governadores pelo Clima. Este movimento tem se mobilizado para garantir a implementação das políticas climáticas e dos compromissos assumidos pelo país no Acordo de Paris. Além de reafirmar os compromissos deste pacto, Câmara destacou que Pernambuco e os demais estados do Nordeste se tornarão neutros em carbono.
Também em paralelo ao discurso do presidente, o governador do Amapá, Waldez Góes, presidente do Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal, encontrou-se com o presidente da França, Emanuel Macron, para discutir maneiras de manter o financiamento de países europeus para programas de proteção ambiental na Amazônia. O encontro foi organizado pela França, pela Colômbia e pelo Chile, sem a participação oficial do Brasil. Waldez, presidente do Consórcio, defendeu a necessidade de participar de todos os fóruns, ao destacar que são os estados que acabam sendo os principais responsabilizados pelos problemas. Além dele, os governadores do Mato Grosso, Mauro Mendes (DEM), Acre, Gladson Camelli (PP), e do Amazonas, Wilson Miranda (PSC), participaram das discussões e acompanharam a Cúpula do Clima. Os governadores do consórcio vêm se movimentando para negociar diretamente com o G7 e com países como Alemanha, França, Reino Unido e Noruega para obter financiamento de projetos de proteção à Amazônia.
O engajamento dos estados não foi bem recebido pelo governo federal. Havia a expectativa de que Waldez discursasse no encontro, mas o discurso foi barrado por Brasília sob a interferência do Itamaraty. O governador participou do encontro, então, na condição de ouvinte. Segundo veículos da imprensa brasileira, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, protestou contra o fato de um representante de governo estadual ser convidado para representar a Amazônia, enquanto o governo federal não estaria presente. Questionado, o governador confirmou ter recebido o convite para participar e falar enquanto autoridade regional, mas que, depois, a Colômbia se posicionou contrária à fala. O Itamaraty negou interferência para impedir a fala do governador. Ao contrário do governo federal, Waldez mantém contato direto com o presidente francês, tendo recebido inclusive felicitações do embaixador da França no Brasil por sua articulação no consórcio.
Paradiplomacia, protodiplomacia e federalismo: um debate necessário
A atuação internacional de governos subnacionais não é algo recente, e a busca por financiamento e investimentos internacionais tem sido um mecanismo tradicional implementado por estes atores. Além das motivações econômicas voltadas para investimentos, mercados, modernização para produção e financiamento, os atores subnacionais brasileiros vêm atuando majoritariamente em ações de cooperação transfronteiriça, estabelecimento de acordos de irmanamentos entre cidades, além da criação de redes e de organizações internacionais focadas na implementação e maior projeção dos interesses destas regiões.
Tradicionalmente, a literatura acadêmica denomina estas atividades como “paradiplomáticas” por designarem atividades cooperativas e colaborativas aos governos nacionais e, como “protodiplomáticas”, as ações que buscam uma separação e a independência das regiões.
Em uma área cinzenta que ainda carece de maior aprofundamento analítico e conceitual, encontram-se, porém, as ações estaduais que geram tensionamentos e constrangimentos ao governo nacional colocando em xeque a interpretação de que a condução da política externa é restrita aos Estados.
Nos Estados Unidos, a atuação dos estados na temática ambiental tem se caracterizado por este tipo de atividade. Na contramão da postura do presidente Trump na temática ambiental, parte dos estados norte-americanos vem se comprometendo com a implementação do Acordo de Paris, por meio da participação de movimentos tais como o We are still in e da criação de redes internacionais de estados para a implementação de políticas climáticas, entre elas a US Climate Alliance. A Califórnia vem liderando este movimento, tendo se articulado em fóruns internacionais para discutir o tema, além de travar embates com o governo Trump no âmbito do Judiciário. A briga mais recente envolve o processo aberto pela Califórnia e por outros 23 estados que entraram com uma ação para impedir o governo Trump de bloquear a autoridade do estado da Califórnia de estabelecer limites de poluição para carros e caminhões leves.
O movimento de governadores brasileiros na temática ambiental possui algumas semelhanças com o ativismo estadual de governadores norte-americanos. Ao contrário da posição negacionista do governo federal, os governadores brasileiros buscaram recuperar os financiamentos internacionais para a proteção da Amazônia, recorrendo a uma negociação direta com outros países e reassumindo compromissos importantes vinculados ao Acordo de Paris em encontro organizado pela ONU.
Neste contexto, cabe levantarmos um questionamento: o ativismo brasileiro tende a se tornar o mesmo daquele identificado nos Estados Unidos?
Primeiramente, é importante considerar que o modelo federalista adotado pelos dois países é distinto. O modelo federalista norte-americano não define claramente o papel de cada ente federativo para a atuação na política externa, o que desperta interpretações distintas na literatura constitucionalista norte-americana. Há, historicamente, tensionamentos entre estados que buscam maior independência junto ao governo nacional. A Suprema Corte tem assumido o papel de regular e definir ad hoc, se a ação dos estados ou do governo pode ser considerada inconstitucional. A história da fundação do país e do desenho institucional adotado acaba apontando para um tipo de federalismo ora cooperativo ora conflituoso no relacionamento entre estados e governo federal que acaba refletindo na condução da política externa.
No Brasil, a Constituição Brasileira de 1988 mantém a impossibilidade de os entes subnacionais celebrarem tratados internacionais e esclarece que cabe ao Estado o poder e a atuação na política externa. Desta maneira, os entes federados brasileiros possuem competência apenas para celebrar acordos de natureza financeira. A impossibilidade de celebração de acordos no Brasil não impede, contudo, a ação dos governos subnacionais por intermédio do estabelecimento de “acordos informais”. Há o debate sobre a possibilidade de uma nova regulamentação destas atividades, mas sempre buscando resguardar a competência exclusiva da União no âmbito externo. A centralidade do Estado brasileiro na condução das relações internacionais não é questionada pelos estados, ao contrário do que observamos no caso norte-americano.
Durante a reunião pelo Clima organizada pela ONU, o governador do Amapá, enquanto representante do consórcio da Amazônia, buscou destacar que os estados são uma autarquia e que possuem vida jurídica para estabelecer acordos com organizações internacionais. Ao mencionar a relação com os países doadores do Fundo Amazônia, como a França, Waldez disse que “os mais de 100 anos de relação de amizade e cooperação que o Brasil tem com a França estão acima de qualquer entrevero de chefe de Estado”. A busca por acordos de natureza financeira, como prevê a Constituição Federal, parece ser o principal foco dos governadores brasileiros. Mas há importantes atritos hoje com o governo federal, se considerarmos que os estados ocuparam um espaço importante nos encontros organizados pela ONU em Nova York, tanto nas reuniões paralelas, reafirmando seus compromissos com as políticas climáticas, quanto nas negociações bilaterais com França, Alemanha e com o estado da Califórnia.
Esta postura pode apontar para um rompimento histórico da atuação dos governos subnacionais brasileiros, na busca por maior protagonismo e por uma atuação direta na política externa. Dificilmente, porém, esta liderança alcançará o mesmo grau de ativismo observado nos estados norte-americanos que se utilizam das brechas constitucionais para conduzirem uma política externa mais autônoma. A ação dos estados brasileiros possui limites constitucionais bem definidos e não se desenvolverá sem uma forte reação do governo nacional. Exemplo disto ocorreu neste mês de setembro.
* Sugestões de leitura *
DUCHACEK, Ivo. Perforated Sovereignties: Towards a Typology of New Actors in International Relations. In: MICHELMANN, Hans J.; SOLDATOS, Panayotis. (eds.). Federalism and International Relations: The Role of Subnation Units, New York: Oxford University Press, 1990. p.1-34.
FRY, Earl H. The Expanding Role of State and Local Government in US Foreign Affairs. New York: Council on Foreign Relation Press, 1998.
LESSA, José Vicente da Silva. A paradiplomacia e os aspectos legais dos compromissos internacionais celebrados por governos não-centrais. Brasília, Distrito Federal: Ministério das Relações Exteriores, 2002.
MICHELMANN, Hans J.; SOLDATOS, Panayotis. (eds.). Federalism and International Relations: The Role of Subnation Units. New York: Oxford University Press, 1990.
PRADO, Débora Figueiredo Mendonça. A atuação Internacional dos governos subnacionais: construções conceituais, limites e contribuições para o caso brasileiro. Carta Internacional, v. 13, n. 3, 2018.
PRAZERES, Tatiana Lacerda. Por uma atuação constitucionalmente viável das unidades federadas brasileiras ante os processos de integração regional. In: VIGEVANI, Tullo; WANDERLEY, Luiz Eduardo; BARRETO, Maria Inês; MARIANO, Marcelo Passini (orgs.). A dimensão subnacional e as relações internacionais. São Paulo: Editora PUC/Editora UNESP/CEDEC/FAPESP, 2004.
SANTOS, Clara Maria Faria. O reconhecimento dos municípios como sujeitos de Direito Internacional Público. In: Gestão pública e inserção internacional das cidades. 2º Relatório Científico. São Paulo: CEDEC, UNESP, PUC/SP, FGV/SP, 2007. p. 464-512.
VIGEVANI, Tullo. Problemas para a atividade internacional das unidades subnacionais: estados e municípios brasileiros. Rev. Bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 21, n. 62, p. 127-139, out. 2006.
* Débora Prado é pesquisadora do INCT-INEU, professora no curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e coordenadora do Grupo de Estudos e pesquisas sobre Gênero e Relações Internacionais (GENERI).