EUA e Arábia Saudita: tão distante e tão perto?
Trump destaca a vendas de armas EUA-Riad, em encontro com príncipe saudita Mohammed bin Salman em março de 2018 (AP/Evan Vucci)
Por Elcinéia Castro*
Os ataques aéreos à instalação de processamento de Abqaiq, na Arábia Saudita, escancararam o “calcanhar de Aquiles” da economia global – afirmam analistas do Financial Times, em alusão a um mundo que ainda vive em função do petróleo. Segundo Riad, que produz sete milhões de barris diários (mbd) desta commodity, os ataques reduziram a produção da Saudi Aramco em 5,7 mbd. Além disso, registrou-se uma elevação dos preços do barril até 20% na semana passada, como não ocorria desde a Guerra do Golfo em 1991.
Rebeldes que integram a guerra civil instaurada no Iêmen desde 2015, os huthis assumiram a autoria da agressão. O governo saudita alega que o Irã está armando este grupo e afirma que o ataque, feito de modo tão cirúrgico, é resultado dos planos iranianos para desestabilizar o poder econômico saudita, enquanto maior exportador de petróleo do mundo. O objetivo seria enfraquecer a influência saudita no Golfo.
Se congelarmos esse recente episódio em uma fotografia, por um brevíssimo período, e nos debruçarmos sobre dois marcos específicos da relação especial entre Arábia Saudita e Estados Unidos nos últimos anos, novas indagações e talvez respostas ganhem forma em nossas reflexões. O primeiro deles se refere à primeira visita internacional de Donald Trump, enquanto presidente dos Estados Unidos, à Arábia Saudita. O segundo diz respeito ao bloqueio ao Catar. Ambos foram em 2017, primeiro ano da gestão Trump.
‘Visão 2030’ e a era pós-petróleo
Em 2016, o príncipe saudita Mohammed Bin Salman (MBS) lançou o projeto “Visão 2030”. Trata-se de um plano político e econômico voltado para a manutenção do bem-estar econômico e social da Arábia Saudita. Uma de suas prioridades é preparar o Estado para a era pós-petróleo, por meio do desenvolvimento de novas tecnologias voltadas para a exploração de energias alternativas. A ideia é quebrar a chamada “maldição do petróleo”, em que os Estados detentores deste recurso ficam tão dependentes dos lucros, que se anulam e não desenvolvem um leque produtivo capaz de sustentá-los quando não houver mais “diamante negro” para ser explorado.
Estatal saudita de petróleo vítima do recente ataque a uma de suas bases mais importante, a Saudi Aramco foi uma das empresas mais lucrativas do mundo em 2017. E tem sido objeto de muita especulação no mercado financeiro internacional. Isso porque o príncipe MBS, juntamente com o Ministério de Energia, pretende lançar uma oferta pública inicial (IPO, na sigla em inglês) sobre uma parte da companhia.
A concretização desta operação estava prevista pra ocorrer ainda neste ano de 2019. Diante do ataque, Riad adiou seus planos. Segundo o governo saudita, a oferta pública seria uma estratégia para a captação massiva de capital, que transbordaria para outros setores, graças a investimentos governamentais. O centro dinâmico desse processo continuaria sendo o petróleo, mas com o objetivo de desenvolver o leque produtivo do país, em uma percepção em longo prazo.
Com o passar dos anos, as relações entre Estados Unidos e Arábia Saudita se estreitaram cada vez mais, abarcando não apenas o abastecimento energético (petrolífero), como também militar, marinho, geopolítico e agora a produção de energias renováveis. Em 2017, o presidente Donald Trump escolheu a Arábia Saudita como primeiro destino em sua primeira viagem internacional, reafirmando a parceria estratégica das duas nações.
A expectativa saudita e a mudança de tom de Trump
Embora a relação especial dos Estados Unidos com a Arábia Saudita seja de longa data, a viagem de Trump foi um evento inédito na história dos presidentes. A parceria entre os dois países começou com o presidente norte-americano Franklin Roosevelt e com o rei Abdul Aziz (pai do atual rei Salman) a bordo do navio “USS Quincy”, em 14 de fevereiro de 1945. O fato foi, inclusive, relembrado pelo presidente Donald Trump em seu discurso. De lá para cá, a parceria entre os dois países continuou duradoura.
Ao final da gestão do então presidente Barack Obama, porém, a Casa Saud vinha demonstrando descontentamento com algumas ações da política externa norte-americana para o Oriente Médio, a saber: a aproximação de Obama com o Irã (rival regional da Arábia Saudita); a redução do envolvimento dos Estados Unidos na região (resistência à intervenção na Síria); e, por fim, em setembro de 2016, o Congresso norte-americano derrubou o veto do presidente, que impedia os familiares das vítimas dos atentados do 11 de Setembro de processarem o reino, já que a maioria dos terroristas envolvidos era de nacionalidade saudita. Esses atos davam sinais de que a relação especial poderia estar se desgastando.
Diante desse cenário, favorável para o presidente Trump, seu tom islamofóbico parece que foi simplesmente deixado de lado. A partir daquele momento, a intenção era criar uma frente de cooperação entre os Estados sunitas para conter o Irã e sua intervenção na Síria. A justificativa do governo de Donald Trump para esta ação está na contenção do extremismo através do ISIS (Estado Islâmico) e da Al-Qaeda.
Do outro lado, a monarquia da Arábia Saudita permanecia na expectativa sobre como seria seu relacionamento com o novo presidente dos Estados Unidos, já que necessita de seu apoio para enfrentar os iranianos. Assim que a Casa Branca anunciou que a Arábia Saudita seria a parada inicial da primeira viagem internacional de Trump, os jornais locais publicaram matérias e anúncios sobre a notícia, com a foto do presidente dos EUA ao lado do rei Salman e os slogans Saudi First e Together We Prevail. No site oficial do Estado saudita, foi feita a contagem regressiva em árabe e em inglês, contando horas e minutos para a chegada do presidente norte-americano. Foram distribuídos cartazes pelas ruas de Riad com a foto do rei e do presidente juntos, sempre com o slogan Together We Prevail.
Os sauditas organizaram três reuniões abertas para os dois dias que o presidente e sua comitiva estariam no país: 1) Reunião com o rei Salman e com os príncipes seniores; 2) Reunião com os chefes dos Estados-membros do Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico (CCG); e 3) Reunião Árabe Islâmica Americana, organizada pela Arábia Saudita e que contou com a participação de líderes e ministros de 50 países muçulmanos.
Unidos contra o Irã
Depois de explorar brevemente os principais contextos dos Estados Unidos e da Arábia Saudita, compreende-se a acentuada mudança nas percepções e, consequentemente, no discurso de Trump. Ele agradeceu ao rei Salman pelos investimentos em solo norte-americano e por seu empenho em trazer desenvolvimento para a Arábia Saudita e para a região. Também afirmou que o país tem todos os ingredientes para alcançar um sucesso extraordinário. Em momento algum usou a palavra petróleo, ou qualquer termo relacionado ao abastecimento energético, considerando que a matéria-prima saudita ainda é a melhor para exploração e utilização, ou seja, a capacidade produtiva saudita é a mais elevada do mundo.
Usou repetidamente, porém, as palavras segurança, armas, contratos bilionários (o acordo de armas firmado entre os dois países tem o valor de US$ 350 bilhões), extremismo, unidade e Deus. Todas as vezes, em que falou sobre terrorismo e terroristas, fez questão de evidenciar que eles pertencem a um grupo separado dos muçulmanos, que estão à margem da sociedade árabe. Além disso, acusou o Irã de ser responsável pela instabilidade na região, por financiar e por recrutar terroristas.
O acordo de armas de US$ 350 bilhões firmado por Trump com a Arábia Saudita cobrirá um período de dez anos. Deste total, aproximadamente US$ 110 bilhões já estão sendo utilizados desde 2017. Conforme a declaração do Departamento de Estado norte-americano, de 20 de maio de 2017, o pacote de defesa, que compreende armas, equipamentos, serviços de treinamento e apoio à segurança interna e externa saudita servirá de apoio diante das ameaças que o Irã tem trazido à região do Golfo. Ainda segundo este pacto, o reino saudita vai aumentar sua capacidade e garantir mais segurança interna. Ao mesmo, contribuirá com as operações de combate ao terrorismo, diminuindo a responsabilidade das forças militares norte-americanas na região.
Na realidade, este acordo foi apenas renovado, mesmo que em maiores proporções, mas sempre existiu. A diferença é que, desta vez, ambas as partes estão em plena sintonia de interesses, se comparado ao governo Obama. Aliás, no mesmo ano e antes da visita oficial do presidente Trump ao reino saudita, o principal porta-voz da Arábia Saudita em Washington, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, reuniu-se com o republicano para um almoço na Casa Branca. Inicialmente, seria um encontro rápido e formal. Com a extensa pauta (combate ao terrorismo, Irã, conflito no Iêmen, Estado Islâmico e outros temas), o compromisso que seria breve acabou se transformando em horas de uma longa conversa.
Além do grande Acordo de Armas firmado entre os países, houve um grande Fórum fechado ao público na Arábia Saudita, que reuniu executivos e empresários norte-americanos e sauditas. O evento também foi finalizado com diversos acordos bilionários. Vale destacar a carta de intenções assinada pela maior fábrica de produtos militares do mundo, a Lockheed Martin, no valor de US$ 6 bilhões, referentes aos 150 helicópteros Black Hawk posteriormente entregues em território saudita. Na ocasião, a General Electric, outra empresa gigante de serviços e tecnologia, anunciou projetos com a Arábia Saudita avaliados em US$ 15 bilhões.
O presidente Donald Trump queria formar uma nova coalizão no Oriente Médio, vislumbrando se apresentar como líder dos países sunitas. A reunião entre os Estados-membros do Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico foi um sinal claro da intenção de Trump, que quer se distanciar ao máximo das políticas do governo Obama. E, neste cenário, o Estado da Arábia Saudita é um parceiro estratégico de grande relevância, em função de seu peso econômico na região e da religião, com as cidades sagradas e as peregrinações dos fiéis. Essa mudança tão radical no discurso até então xenófobo e islamofóbico do presidente Trump demostra claramente que as questões pragmáticas são capazes de prevalecer até sobre as convicções e percepções mais enraizadas. A demonização do Estado iraniano foi institucionalizada nesta visita e estrategicamente compartilhada entre os países árabes que compõe o Conselho do Golfo.
Reação da Arábia Saudita contra Doha
No mesmo ano, temos o segundo marco: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Egito haviam cortado laços diplomáticos com o Estado do Catar, alegando que esse governo estaria dando suporte ao terrorismo e contribuindo para a instabilidade na região.
O estopim dos conflitos que deu origem às sanções começou com uma suposta gravação, em que o emir teria afirmado que o Irã é uma potência regional e que sua posição deveria ser levada em alta consideração no Oriente Médio. De acordo com os Emirados Árabes Unidos, esta fala foi rastreada durante uma call entre líderes e diplomatas do Catar. A Arábia Saudita foi o primeiro país a se manifestar contrário à notícia, já que é reconhecidamente rival do Irã. A monarquia saudita alega que o bloqueio ao Catar foi necessário, pois o Irã apoia o terrorismo.
De acordo com o jornal The Washington Post, as gravações partiram de e-mails vazados da conta particular do embaixador dos Emirados Árabes Unidos nos EUA, Youself al-Otaiba. O Catar afirma que os Emirados Árabes plantaram a notícia falsa, que a fala do emir foi fabricada e que o portal e a conta do Twitter da agência de notícias do país também tinham sido alvo de ataques cibernéticos realizados por desconhecidos. Mesmo que o Catar tenha negado a veracidade da fala do emir, assim que a notícia se espalhou entre os países do Golfo, houve uma grande revolta entre líderes e ministros, culminando na decisão da Arábia Saudita e de seus aliados de romper relações com o país.
Assim que o bloqueio aéreo, marítimo e terrestre tomou forma, a frente de países árabes apresentou, em 22 de junho, uma proposta ao Estado do Catar. A lista continha 13 pontos que deveriam ser cumpridos e adequados à legislação interna do país, sendo que um deles exigia o rompimento das relações entre Doha e Teerã, assim como o fechamento da rede de comunicação Al-Jazeera. Dias depois, o governo do Catar emitiu uma nota negativa aos 13 pontos, alegando que tem o direito de conduzir sua política externa como lhe apraz e de forma autônoma.
Em 2014, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos já tinham retirado seus embaixadores de Doha em função da aproximação com o Irã. Desta vez, as medidas tomaram outras proporções. Considerando-se que, no Catar, a água é escassa, e a produção agrícola é mínima, a Arábia Saudita é o principal fornecedor de água e comida para o país. E, por causa do bloqueio, o governo saudita simplesmente parou de fornecer água e comida ao Catar. Posteriormente, outros países árabes aderiram ao boicote. A Mauritânia, as Ilhas Maldivas e a Ilha Maurício também anunciaram a ruptura dos laços diplomáticos com o governo do Catar. Jordânia e Djibuti baixaram o nível de suas missões diplomáticas no Catar, enquanto Senegal, Níger e Chade retiraram seus embaixadores do país. A Arábia Saudita exerce grande influência política sobre esses países, por conta da dependência financeira e religiosa estabelecida.
É importante lembrar que o Irã enviou aviões com água e comida diariamente ao Catar a fim de evitar que o país enfrente qualquer tipo de escassez. O Irã é um grande parceiro do Catar, especialmente no que diz respeito à produção de gás natural, que, junto com a Rússia, constituem-se como os três maiores produtores mundiais deste combustível fóssil.
Apoio estratégico dos EUA
Do outro lado, temos os Estados Unidos, que têm participado ativamente da região do Golfo, especialmente com Trump. No dia seguinte ao bloqueio, no início de junho de 2017, o presidente norte-americano se declarou favorável ao bloqueio que a Arábia Saudita e seus aliados impuseram ao Catar, pois reconhecia que as alegações eram pertinentes: apoio ao terrorismo, financiamento da Irmandade Muçulmana e apoio ao Irã. Em seguida, o Departamento de Estado emitiu um parecer, no qual tentava contornar a situação, afirmando que os países árabes deveriam aliviar as sanções. Já o Departamento da Defesa dos EUA afirmou que a decisão dos países árabes sobre o Catar pode ter um efeito positivo na luta contra o terrorismo.
Vale destacar que, em 21 de maio do mesmo ano, o presidente Trump fez sua emblemática visita à Arábia Saudita, conforme descrito acima: lá discursou, dando ênfase à questão da segurança e ao combate ao terrorismo, e propôs o isolamento dos outros países árabes ao Irã. Durante a reunião com os líderes do Conselho do Golfo Pérsico, nesta mesma visita, foi adotada uma frente anti-iraniana.
As ações dizem mais, porém, do que as confusas declarações do presidente Donald Trump, ou do que as reações da Defesa, ou da diplomacia dos EUA. Apesar das declarações favoráveis ao boicote, em 15 de junho de 2018, foi selado um acordo bilionário, referente à venda de caças norte-americanos para o Catar. Na sequência, a Marinha dos Estados Unidos fez diversas operações navais com a Marinha do Catar, local da maior base militar norte-americana na região (base aérea e central de comando para operações militares). Posteriormente, foi assinado um memorando de entendimento sobre o Combate ao Financiamento do Terrorismo entre Estados Unidos e Catar. Tais ações confirmam o compromisso de Washington com seu aliado militar. O maior interesse norte-americano no Oriente Médio atualmente é extinguir o Estado Islâmico, enquanto a nova frente árabe liderada pela Arábia Saudita estaria preocupada com o Irã e com a Irmandade Muçulmana – que ameaçam a hegemonia regional saudita.
Esta nova coalizão no Oriente Médio – liderada fortemente pela Arábia Saudita, mas inspirada e incentivada pelo presidente Donald Trump, traduzindo-se nos interesses dos EUA em se posicionarem nos bastidores como líder dos países sunitas da região – soa contraditória. As vendas bilionárias de aviões e armas, ou seja, os interesses econômicos, ainda parecem ser mais importantes neste contexto para o governo norte-americano. A crise entre as monarquias e repúblicas sunitas demonstra apenas que o discurso de Trump durante sua visita à Arábia Saudita se tornou estratégico aos ouvidos dos líderes presentes, especialmente no que se refere à luta contra o terrorismo e à completa adoção do espírito anti-iraniano – muito mais, porém, como uma justificativa para impedir o avanço de Teerã na região, do que pela realidade dos fatos. Exceto pelo Catar, que, desde sua independência, sempre preferiu caminhar de forma autônoma à monarquia Saud.
Assim, retornamos ao ano de 2019, considerando algumas variáveis, implicações e anseios de dois governos, o norte-americano e o saudita, ávidos por aumentarem seus lucros tão diversos, e a fotografia agora parece ganhar vida.
* Elcinéia Castro é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP), professora de RI (Universidade Anhembi Morumbi) e pesquisadora no Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI-PUC) e no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).