Os juízes ultraconservadores de Trump
Por Celly Cook Inatomi*
Opondo-se de forma jocosa ao casamento homossexual, Don R. Willet, reconhecido por conservadores como o juiz mais conservador do Texas, escreveu em seu Twitter que ele poderia “apoiar o reconhecimento do direito constitucional de se casar com um bacon”. Além dos homossexuais e transgêneros, também figuram na sua lista de desavenças as mulheres, para quem ele diz não haver necessidade de políticas especiais, sejam estas voltadas para a igualdade salarial, para melhores condições de trabalho, ou para impedir o assédio sexual. Para completar, Willet é hostil aos direitos civis conquistados nos anos 1960, além de ser contra qualquer regulamentação do armamento.
Don R. Willet foi indicado por Trump para juiz na Corte de Apelações do Quinto Circuito e faz parte do arsenal de juízes federais que vem ajudando o presidente a cumprir uma de suas promessas de campanha: um Judiciário conservador capaz de desafiar decisões históricas da Suprema Corte, como a decisão sobre o aborto (Roe v. Wade, de 1973) e a decisão sobre o casamento homoafetivo (Obergefell v. Hodges, de 2015). Trump, inclusive, parece buscar seus juízes entre aqueles que são hostis não apenas aos direitos das mulheres e LGBTs, mas que compartilham um “desrespeito por qualquer direito individual que não venha de Deus, ou do cano de uma arma”.
A efetivação de um Judiciário conservador vem contando, inclusive, com os esforços de organizações de direita, como Heritage Foundation, Alliance Defending Freedom, Judicial Crisis Network e, principalmente, Federalist Society, uma organização jurídica conservadora que tem funcionado como uma verdadeira recrutadora de juízes para Trump. O que vemos, portanto, é que, assim como Willet, diversas outras indicações de juízes que foram confirmadas pelo Senado apresentam perfis muito semelhantes, com certo histórico de frases, opiniões e comportamentos polêmicos, e que cumprem alguns requisitos básicos: são contra o aborto, contra os direitos de LGBTs, favoráveis às armas e às políticas restritivas de imigração, entre outros.
Mix de táticas para garantir agenda conservadora
Até o momento, o Senado confirmou 43 dos 46 (93%) indicados por Trump para as Cortes de Apelação, e 99 dos 141 indicados (70%) para as Cortes Distritais. Na Suprema Corte, por seu turno, Trump já nomeou dois juízes, obtendo uma maioria conservadora. O número de juízes confirmados e a rapidez nos processos de confirmação tem dado a Trump o trunfo de dizer que está mudando o perfil do Judiciário nos Estados Unidos e também tem assustado democratas, organizações e associações defensoras de minorias, que temem amargar décadas do legado judicial de Trump. Contudo, são diversas as análises sobre qual é a tática central de Trump com relação ao Judiciário e sobre quais os seus impactos efetivos.
Alguns vêm apontando que a tática central recai sobre as cortes federais de apelação, uma vez que elas dão a última palavra em 80% dos casos julgados nos Estados Unidos. O enquadramento majoritário das cortes federais com os conservadores será possível, porém, apenas se Trump conseguir um segundo mandato e mantiver o Senado sob liderança republicana. Isso porque, até o momento, Trump conseguiu colocar seus juízes conservadores em cortes que já eram de maioria conservadora, não revertendo de fato cortes de maiorias liberais, e nem dando fim à constatação de que são as cortes federais que geralmente barram os interesses conservadores de reversão de algumas decisões históricas.
Esse fato, portanto, acabaria indicando a existência de outra tática que vem sendo implementada: uma mobilização judicial intensiva dos conservadores nos diferentes estados em temas como aborto e casamento homoafetivo, para que, uma vez barrados nas cortes federais (ao menos até o momento), possam levar seus casos até a Suprema Corte, agora com maioria conservadora. Com isso, a tática central seria uma mudança ainda mais profunda na Suprema Corte e, por isso, as expectativas macabras em torno da vida da juíza Ruth Ginsburg, para que, em seu lugar, seja colocado mais um juiz não apenas republicano, mas ultraconservador.
Escolhas de Trump minam diversidade no perfil dos juízes
Um grupo de cientistas políticos vem mostrando, porém, que a tática de emparelhar a Suprema Corte com juízes conservadores pode não resultar nos impactos esperados por seus apoiadores. Ao analisar os casos de reversão, ou de anulação, de decisões de cortes inferiores por parte da Suprema Corte entre 2010 e 2015, verifica-se que a Suprema Corte anulou, ou reverteu, quase a mesma porcentagem de decisões vindas de cortes federais liberais e conservadoras. Há, claramente, portanto, outros fatores a serem investigados na tomada de decisão destes juízes, além de seu viés ideológico e de sua correspondência com tendências de maiorias ideológicas de cortes menores.
Independentemente de qual seja a tática central de Trump, alguns fatores devem ser enfatizados e já estão sendo abordados por alguns artigos de opinião e trabalhos acadêmicos. O primeiro fator que vem sendo debatido é a questão da diversidade dos juízes escolhidos por Trump, mostrando que ele colocou fim a uma linha progressiva de respeito à diversidade nas escolhas judiciais, tanto entre presidentes republicanos quanto entre presidentes democratas. Trump quebrou essa tendência, indicando para as cortes federais de apelação 71% de homens brancos e, para as cortes distritais, cerca de 69% de homens brancos. Isso sem falar na nomeação e confirmação de Brett Kavanaugh para a Suprema Corte, que esteve envolvido em denúncias de abuso sexual. A questão da diversidade é um problema sério, ao passo que uma possível e futura maioria dos membros do Judiciário não expressa, de modo algum, a diversidade étnica, racial, religiosa e de gênero da própria sociedade americana, causando um grande descompasso entre um Judiciário ultraconservador e uma sociedade pluralizada.
O segundo fator que podemos citar é a questão do ultraconservadorismo dos juízes indicados por Trump. São juízes que defendem não apenas ideais republicanos, mas que se utilizam, quando não de interpretações originalistas da Constituição, na linha de Antonin Scalia, de uma “rebeldia” judicial em nome da “verdade” constitucional. Não se dobram, assim, à jurisprudência estabelecida pela Suprema Corte, uma vez que não reconhecem legitimidade em suas decisões, sobretudo, a partir dos anos 1960. Essa rebeldia tem uma de suas origens na resistência de organizações religiosas de direita, que assinaram, em 2009, um manifesto contra a Suprema Corte, especialmente em função do aborto e do casamento homoafetivo. Nesse manifesto, chamado de Manhattan Declaration, eles chamam todos a uma desobediência civil em massa contra a “supremacia judicial”. E a rebeldia pode estar sendo incentivada, inclusive, pelos ataques constantes do próprio Trump a decisões judiciais que lhe desagradam, acusando o Judiciário de atuar para além de sua própria esfera.
Juízes ultraconservadores têm feito as mesmas críticas – e vão além. Apontam que, a partir do movimento pelos direitos civis, os Estados Unidos passaram a ficar refém de um Poder Judiciário agigantado, que vem ultrapassando suas atribuições, e de um Legislativo que atuou de forma flagrantemente inconstitucional, uma vez que votou leis que atingem a liberdade individual, inclusive a “liberdade individual de discriminar”. Como aponta o historiador Christopher Schmidt, trata-se de um movimento mais amplo de transformar questões ultraconservadoras, incluindo até mesmo argumentos racistas, em linguagem constitucional palatável para o debate de argumentos jurídicos dentro dos tribunais**.
Polarização e politização aguda do Judiciário
E, por fim, outra questão consequente das duas primeiras é sobre o impacto da extrema polarização política sobre o Judiciário, no que desaparecem quaisquer resquícios de preocupação com a atuação imparcial dos juízes independentemente de sua indicação republicana, ou democrata. A sensação ao ler os artigos falando sobre as indicações de Trump é de uma verdadeira batalha ideológica, em que o Judiciário se insere no seio da luta política pelos direitos dentro do país. Desaparece por completo a preocupação com a imparcialidade e se escancara de vez o papel político dos juízes. Não que isso não ocorresse com presidências anteriores, mas o caráter fortemente ideológico e combativo dos juízes colocados no poder acentua cada vez mais o papel político exercido pelas cortes.
O papel político das cortes – avalizado, sobretudo, pelo comportamento individual dos juízes – não é uma novidade para os cientistas políticos norte-americanos, que vêm desenvolvendo teses acerca do tema pelo menos desde os anos 1940, com o behaviorismo judicial***. A separação entre juízes conservadores e liberais já é uma praxe nos estudos dos votos da Suprema Corte e de outras instâncias do Judiciário. Qual é a novidade do momento agora? A novidade vem sendo trabalhada não propriamente pelos cientistas políticos, mas por historiadores jurídicos, que vêm mostrando que valores ultrarreacionários de determinados juízes têm se traduzido em linguagem de direitos constitucionais, inclusive discursos e práticas de segregação racial. Esse tipo de ativismo judicial, que se esconde atrás de uma linguagem constitucional do originalismo dos Pais Fundadores, pode minar, de fato, ao longo das décadas que se seguem, as bases democráticas e até mesmo republicanas americanas, uma vez que as torções jurídicas têm ocorrido, e alguns têm defendido o retorno de uma união entre religião e Estado.
Estudiosos apontam que os americanos vão amargar durante décadas os resultados das indicações ultraconservadoras de Trump, e as associações de direitos civis terão de ficar atentas e batalhar judicialmente para que leis e decisões históricas não sejam revertidas. E terão de ter os olhos voltados para diversos processos, de modo que possam ficar atentos às decisões que vêm sendo tomadas nas cortes de Trump, ao mesmo tempo em que devem ficar de olho nas próximas eleições para presidente, bem como na próxima composição do Senado.
** Ver os trabalhos de Christopher W. Schmidt: Schmidt, Christopher W. “Litigating Against The Civil Rights Movement”. University of Colorado Law Review, v. 86, 2015, p. 1173-1220; “Beyond Backlash: Conservatism and the Civil Rights Movement”, American Journal of Legal History, 56, 2016, p. 179-194; “Popular Constitutionalism On the Right: Lessons From the Tea Party”, Denver University Law Review, v. 88, p. 523-557; “Conceptions of Law in the Civil Rights Movement”, UC Irvine Law Review, v. 1, 2011, p. 641-676.
*** Ver, sobretudo, os trabalhos de Glendon A. Schubert.
* Celly Cook Inatomi é doutora em Ciência Política pela Unicamp, pesquisadora colaboradora do INCT-INEU e coordenadora do Grupo de Estudos sobre Mobilização do Direito no IFCH/Unicamp.