Energia e Meio Ambiente

Quanto vale a Groenlândia para Trump? 

por Solange Reis

 

A Groenlândia não está à venda, mas Donald Trump mostrou interesse em comprar esse território remoto e gelado. Uma aquisição que seria feita não pelo magnata do ramo imobiliário, mas pelo presidente do país que construiu sua hegemonia liberal como contraponto ao imperialismo territorial europeu.

Em meados de agosto, a imprensa americana divulgou que Trump tem sondado seus assessores e conselheiros sobre essa possibilidade. Embora a mídia doméstica e internacional não tenha levado o caso tanto a sério, o assunto gerou incômodo entre o governo americano e dinamarquês. Pois, ainda que tenha autonomia para decidir sobre seu destino, a Groenlândia é um território da Dinamarca.

Para entender a realpolitk do presidente que se elegeu com um discurso isolacionista, é preciso pensar pela lente da geopolítica mundial e da competição entre grandes potências. Recursos minerais, posicionamento estratégico e a expansão da China e da Rússia explicam o que, a princípio, soa como outro delírio de um novato político na Casa Branca.

Uma terra sobre gelo

A Groenlândia foi colônia da Dinamarca entre 1814 e 1953, integrando-se ao país desde então. Ganhou autonomia entre 2008 e 2009, passando a cuidar dos assuntos de política doméstica, áreas costeiras, sistema legal e segurança interna. Ao governo dinamarquês cabe a responsabilidade pela defesa e as relações externas, bem como por 50% do orçamento.

Os quase 2.200 milhões de quilômetros quadrados comportam pouco mais de 56 mil moradores, constituindo o território menos populoso do mundo. Três quartos do solo é composto por uma camada de gelo de até 3 quilômetros de profundidade, o que dificulta enormemente o transporte local. Para circular entre as 17 cidades ou delas para um dos 58 assentamentos, é preciso usar barcos ou aviões. Com apenas 1% de terra arável, sobram a pesca e a mineração como atividades econômicas.

Diante de condições tão inóspitas e baixo potencial de crescimento, por que a Groenlândia interessa a Trump? A resposta está na geopolítica e na volta da competição entre potências.

Importância geoestratégica

Durante a ocupação nazista, a Dinamarca cedeu temporariamente a Groenlândia aos Estados Unidos, que construíram uma base militar na ilha. A concessão terminou após a guerra, mas a base existe até hoje sob controle americano.

Trump não é o primeiro presidente americano a colocar a Groenlândia no radar patrimonial da Casa Branca. Andrew Johnson tentou o mesmo, em 1860, e, em 1946, Harry Truman ofereceu US$ 100 milhões pela ilha, de onde pretendia monitorar a União Soviética. A Dinamarca recusou a oferta, mas aceitou manter a base aérea de Thule e outras instalações militares.

Localizada a cerca de mil e trezentos quilômetros do Polo Norte, Thule é a base americana mais ao norte do planeta. Sua posição geográfica é muito relevante para os alertas do sistema de defesa contra mísseis e para a navegação militar no Atlântico Norte.

Tornou-se mais importante com a mudança climática, já que o degelo no Oceano Ártico precipitou planos internacionais de exploração de hidrocarbonetos e das rotas de navegação na região. Aproximadamente 25% das reservas não comprovadas de petróleo e gás no mundo podem estar depositadas no Ártico, o que faz da Groenlândia uma área de grande atrativo.

Pelo direito internacional, poucos países podem participar do novo “eldorado” fóssil. Mais precisamente, os chamados países Árticos são Rússia, Estados Unidos, Canadá, Noruega, Suécia, Islândia, Finlândia e Dinamarca.

Por enquanto, a Rússia está na frente. Possui tecnologia de exploração e conhecimento de logística em águas congeladas, além de menos entrave político. O Kremlin vê no Ártico a possibilidade de comercializar gás liquefeito (GNL) para a Europa e o resto do mundo. Atualmente, o fato de suas reservas de gás exploráveis serem em território continental não favorece a mobilidade de GNL.

Com o potencial de exploração de recursos minerais no Ártico, veio o aumento da securitização da região. Desde 2007, o Kremlin aumentou seu posicionamento militar na área, pensando principalmente na defesa de seus ativos. Isso tem tudo para desencadear o que o teórico de relações internacionais, John Herz, chamou de “Dilema da Segurança”. No sistema internacional anárquico, um Estado conta apenas consigo para sua própria segurança. Para isso, desenvolve poder bélico. O movimento pensado para defesa gera nos demais Estados a percepção de ameaça; estes passam a se armar, desencadeando um círculo vicioso.

Os Estados Unidos correm atrasados por conta de divergências entre grupos domésticos. Os ambientalistas, o setor de energia renovável e, em geral, os democratas são contra a exploração de recursos de energia no Ártico. Já os republicanos e as indústrias petrolíferas tentam desatar os nós regulamentares para iniciar a atividade na região. As primeiras tentativas autorizadas para a Royal Dutch Shell, no entanto, mostraram-se economicamente inviáveis.

Outro problema é a defasagem tecnológica, como no caso da frota de navios quebra-gelo. Os americanos possuem um único e velho navio do tipo, contra 41 dos russos, sendo um destes com capacidade nuclear. Os russos estão em vias de construir mais dois nucleares. Em termos de tecnologia de geolocalização no Ártico, a Rússia também lidera a maratona.

A China, por sua vez, se denomina um país “quase ártico”. Com dois navios quebra-gelo e um terceiro nuclear em construção, o governo chinês não deixa dúvidas de que aposta na importância estratégica da região.

Em 2018, a construtora China Communication Construction Company tentou participar de uma licitação para construir novos aeroportos na Groenlândia. O interesse chinês fez com que o então secretário da Defesa, Jim Mattis, alertasse sua contraparte dinamarquesa, Claus Hjort Frederiksen, de que os investimentos teriam implicações na segurança. Logo depois, a Dinamarca anunciou que ajudaria com fundos e empréstimos a juros baixos, no total de US$ 240 milhões, para erguer os aeroportos. A estatal chinesa retirou a proposta.

Toda essa corrida aponta dois sinais claros. Primeiro, a competição territorial em um mundo multipolar não é um tema dos livros de História, mas um fato atual. Em segundo lugar, o negacionismo climático serve apenas para inflamar incautos eleitores. Quando se trata de geopolítica e estratégia militar, a mudança climática é tratada com muita seriedade.

Minerais raros

Outra motivação de Trump é o fato de a Groenlândia conter quase 30% das reservas de minerais raros no mundo, essenciais para a indústria de tecnologia da informação, carros elétricos, energia renovável, equipamentos militares e muito mais.

Os Estados Unidos também possuem reservas desses minerais, mas negligenciaram a produção doméstica em troca de importações bem mais baratas. Para fugir do custo da mão de obra mais bem remunerada, dos custos com segurança de trabalho e das regulamentações, as mineradoras se voltaram para o mercado externo de produção e refino. Mais especificamente, para a China.

Pouco a pouco, os chineses passaram a controlar praticamente toda a produção e o refino mundial. Hoje, o nível de dependência americana em relação à China chega a 80%, razão pela qual os minerais raros foram poupados da guerra tarifária de Trump.

Correndo como retardatário, os Estados Unidos estão construindo três usinas de processamento de minerais raros. A primeira será inaugurada em alguns meses e outras duas, em 2022. O objetivo do governo americano é diversificar a geografia das usinas de processamento para fora da China.

O desafio é competir com os baixos custos da produção chinesa, que dificultam o nascimento ou a retomada do setor em outros países. Como, por exemplo, Estados Unidos, Brasil, Rússia, Índia, Vietnã, Austrália, entre outros. E, naturalmente, o território da Groenlândia.

Como a China domina a tecnologia de extração e refino, os chineses já partiram para a aquisição acionária no exterior. A Shenghe Resources, maior mineradora chinesa de metais raros, é a principal acionista da Greenland Minerals, empresa australiana que explora duas minas na Groenlândia.

Aumentar a exploração na ilha poderia significar mais receita para o território, ajudando a resolver os problemas de elevada emigração, estagnação econômica, déficit fiscal e a dependência da Dinamarca. Porém, devido à preocupação ambiental, o governo local limitou a exploração a apenas dois minerais em duas minas. Os Estados Unidos miram no que está preservado para barrar o avanço da China e abocanhar uma parte.

Segue o show

Para a primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, a discussão é “absurda”. “A Groenlândia não está à venda. A Groenlândia não é dinamarquesa. A Groenlândia pertence à Groenlândia. Sinceramente, espero que isso não seja um assunto sério”, disse Frederiksen.

O não da primeira-ministra foi suficiente para Trump chamá-la de “desagradável” e, em seguida, cancelar a visita que faria duas semanas depois à Dinamarca. Uma publicação sua no Twitter, com a fotomontagem da Trump Tower na Groenlândia e uma frase prometendo não construí-la no território, caiu mal para os habitantes do território e para o premiê Kim Kielsen. A eventual decisão sobre a venda estaria, em tese, na mão dos moradores e líderes locais.

O presidente faria melhor se buscasse a saída da diplomacia, mas a prudência realista talvez fique para um eventual segundo mandato. Por enquanto, o presidente segue na estratégia de criar cortinas de fumaça, polêmicas e provas de arrogância para saciar sua base eleitoral peculiar.

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