Massacre contra “invasão” latina reflete as falas de Trump
por Solange Reis
Três assassinatos em massa nos Estados Unidos chocaram o país e o mundo na última semana. Nada de novo nesse front. Afinal, em uma nação marinada na cultura da violência e das armas, acontecimentos dessa natureza são “business as usual”. Somente até o início de agosto de 2019, foram 255 ocorrências no espaço de 217 dias.
O FBI define assassinato em massa como incidentes envolvendo um atirador ativo com a intenção de matar em áreas populosas, excluindo quando são brigas entre gangues ou por disparos acidentais. Para o Congresso, é quando resulta no mínimo de três mortes em um único evento.
Para Donald Trump, um racista na Casa Branca, massacres assim podem se tornar um problema quando motivados por ódio racial. Faltando um ano para as eleições presidenciais, a questão pode obrigá-lo a caminhar como um elefante trapezista.
Terrorismo doméstico
No primeiro dos três ataques recentes, no dia 29 de julho, quatro pessoas morreram em um festival gastronômico na Califórnia. Como a investigação da polícia identificou uma lista de possíveis alvos feita pelo atirador – prédios federais, partidos, instituições religiosas e tribunais – há grande chance de que este massacre seja classificado como terrorismo doméstico.
Em termos de punição ou abordagem jurídica, não existe diferença entre ser um atentado terrorista doméstico e um assassinato em massa sem motivações políticas. A lei americana não estabelece penalidades específicas para o primeiro exemplo, embora a categorização como terrorismo gere mais instabilidade social e pressão sobre os políticos. Uma coisa é associar um assassinato em massa à psicopatia de um indivíduo com livre acesso a armas; outra é relacioná-lo a um terrorista ao qual o Estado não consegue vetar armamentos.
Pois tal parece ser a situação do segundo massacre, em 3 de agosto. Na cidade de El Paso, no Texas, 22 pessoas morreram e outras tantas ficaram feridas por artilharia de AK-47 em uma loja da Walmart. Os disparos foram feitos por um homem jovem e branco, que confessou ter mirado em “mexicanos”. El Paso fica próxima da fronteira com o México e tem grande presença de imigrantes latinos e descendentes.
Cerca de 19 minutos antes dos tiros, um manifesto que o FBI acredita ser do atirador foi publicado no site 8Chahn. A página serve de plataforma de extrema-direita para apologia a violência e crimes hediondos, tais como assassinatos em massa, estupros, inclusive de menores, e pornografia infantil. “Este ataque é uma resposta à invasão hispânica no Texas”, informa o documento. O manifesto xenófobo aconselha que os Estados Unidos sejam divididos em territórios raciais e avisa que os imigrantes estão substituindo os brancos.
As quatro páginas também contêm uma dose de bizarrice teórica, já que o autor culpa os imigrantes pela deterioração ambiental. Intitulado “Uma Verdade Inconveniente”, em referência a um antigo documentário sobre aquecimento global, o manifesto sugere o genocídio como solução para o crescimento demográfico que consome recursos naturais. Ou seja, o “ecofascista”, como a imprensa se refere ao redator anônimo, recomenda a morte de milhares ou milhões de pessoas em nome da sustentabilidade. Uma espécie de malthusianismo ambiental para dar a César o que não lhe pertence. O falso ativismo ecológico não esconde a verdadeira motivação: ódio racial.
Segundo a Liga Antidifamação (ADL, na sigla em inglês), fundamentalistas de direita foram os principais responsáveis pela grande maioria dos crimes de motivação política em 2018. Para o diretor do FBI, Christopher Wray, já foram feitas tantas prisões por terrorismo doméstico em 2019 quanto no ano passado. A maioria dos casos decorre do que Wray chama de violência supremacista branca.
Um racista no Salão Oval
A forte conotação racista do atentado no Texas coloca a maior autoridade do país no olho do furacão. Logo depois do assassinato coletivo, o presidente Donald Trump veio a público dizer que “Precisamos parar com a glorificação da violência na nossa sociedade. Isso inclui os horríveis e macabros videogames tão comuns”. Um claro exemplo de que hipocrisia e explicações estapafúrdias não são façanhas exclusivas dos atuais governantes no Brasil. Lá, tal como cá, vive-se a era da estupidez desinibida.
O presidente Trump também culpou a internet e as redes sociais. As mesmas que ele próprio utiliza para promover ideias de supremacia branca e incitar à violência. Desde que anunciou sua candidatura à reeleição, em junho deste ano, o republicano disparou – sem perdão do trocadilho – mais de duas mil propagandas racistas no Facebook. Esses anúncios pagos falam em “invasão” de imigrantes ilegais.
Ora, se o líder do país tem a liberdade para promover o ódio racial, não seria ele cúmplice de um ato de terrorismo doméstico com a semelhante motivação? Manifestantes em El Paso acreditam que sim, razão pela qual repudiaram a presença de Trump na cidade após os assassinatos. “Aquela inspiração vem da Casa Branca. O sangue está nas mãos do presidente Trump e do governo por falarem coisas como ‘vamos construir um muro’, ‘este é um lugar infestado de vermes’, ‘são todos estupradores e assassinos’…”, disse Domingo Garcia, presidente da Liga dos Cidadãos Latino-Americanos Unidos (LULAC, na sigla em inglês).
É importante recordar que o racismo na Casa Branca não se restringe ao discurso, transformando-se em políticas públicas. Entre elas, a batalha e a vitória pela verba para a construção do muro na fronteira sul e os centros de detenção de imigrantes, onde crianças são separadas dos pais. A maioria dessas pessoas fica presa sem previsão de liberação, em condições desumanas e risco de morte.
Racismo como “branding”
Quando indagado sobre seu preconceito, Trump diz ser “a pessoa menos racista que você já encontrou”. Porém, seu histórico de ódio remonta a tempos bem anteriores à presidência, sendo sua autobiografia bastante extensa no quesito.
Em 1973, ele e o pai, Fred Trump, foram processados pelo Departamento de Justiça por tentarem impedir que negros habitassem os prédios construídos por suas empresas. Reagindo com ações legais no valor de US$ 100 milhões contra o governo, pai, filho e suas corporações perderam todas as causas. Mesmo assim, o jovem Donald alardeou que saíra vitorioso das batalhas judiciais. Já era um menino-prodígio nas fake news.
O racismo de cor continuou uma marca do magnata. Segundo um antigo empregado de um de seus cassinos em Nova Jérsei, os funcionários negros eram retirados do salão quando o chefe Donald Trump visitava as instalações.
Como mostra o documentário “Olhos Que Condenam”, da diretora Ava DuVernay, o preconceito com negros e latinos acompanha o republicano há tempos. Em 1989, Trump pressionou pela condenação de cinco jovens acusados injustamente de estupro e agressão contra uma mulher branca, no que viria a ser desmascarado como manipulação da procuradoria. Moradores do bairro pobre do Harlem, quatro dos acusados eram negros e o quinto, latino. À época, Trump pagou um anúncio de página inteira no The New York Times, pedindo pela volta da pena de morte em Nova Iorque. Hoje, mesmo depois de provada a inocência dos condenados, Trump não se diz convencido. “Eles admitiram a culpa. Na visão da Linda Fairstein e de alguns dos promotores, a cidade nunca deveria ter resolvido esse caso (referindo-se ao acordo de indenização aos jovens).”
Barack Obama, seu antecessor e único presidente negro na história do país, também foi vítima do racismo de Trump. Foi este quem incentivou o “birtherism”, uma espécie de movimento que levantava suspeitas sobre Obama ter nascido nos Estados Unidos.
O site supostamente usado pelo atirador de El Paso pode ter servido como fonte para Trump em 2016, quando ele divulgou uma foto difamatória de Hillary Clinton publicada no 8Chan na semana anterior.
Passados quase três anos da vitória sobre Clinton, negar que os Estados Unidos sejam governados por um homem branco racista significa fechar, perigosamente, os olhos para a realidade. Assim que assumiu a presidência, Trump baniu a entrada de muçulmanos de algumas nacionalidades e chamou países africanos de “buraco de merda”. No ano passado, minimizou a violência neonazista na cidade de Charlottesville, dizendo que havia “gente boa dos dois lados”.
Recentemente, o republicano disse que quatro membros do Congresso deveriam voltar para seus países catastróficos. Os tuítes foram direcionados às representantes democratas, Alexandria Ocasio-Cortez (D-NY), Ayanna Pressley (D-MA), Ilhan Omar (D-MN) e Rashida Tlaib (D-MI), todas de minorias raciais. À exceção de Omar, que emigrou da Somália, as demais nasceram nos Estados Unidos.
Ao comentar sobre o terceiro massacre dos últimos dias, o de 4 de agosto, Trump resgatou o argumento dos “dois lados”. Isso porque o assassinato em massa em Dayton, Ohio, sem aparente motivação racial ou política, foi cometido por uma pessoa cujo Twitter tinha mensagens favoráveis aos senadores progressistas, Bernie Sanders e Elizabeth Warren, e de repúdio à prisão de imigrantes irregulares.
“Estou preocupado com a ascensão de qualquer grupo de ódio, não gosto. Qualquer grupo de ódio, seja supremacia branca, seja qualquer outro tipo de supremacia”, disse aos repórteres. “Ele (o atirador) era fã da Antifa, era fã de Bernie Sanders e Elizabeth Warren, nada a ver com Trump,” defendeu-se, antes de novamente acusar a mídia de tendencionismo contra o presidente.
A briga com grande parte da imprensa, marca calculada de sua estratégia de comunicação, ganhou novos ingredientes depois de o The New York Times mudar um título favorável ao presidente. “Trump pede unidade versus racismo”, publicado após os últimos massacres, foi trocado por “Atacando o ódio, mas não as armas”. A troca foi feita por pressão de jornalistas e leitores, a que o jornal aquiesceu.
“Manchetes como esta ignoram todo o contexto das ações de Trump e observações passadas, fazem com que ele, de repente, pareça presidencial,” tuitou Jerry Lanson, professor emérito de jornalismo no Emerson College.
Trump “paz e amor” para latino ver
O motivo racial do atentado em El Paso não será um divisor no racismo estrutural da sociedade, nem na mentalidade racista do presidente. Traz, porém, um componente de cautela nas intenções de reeleição do presidente.
Por enquanto, a economia vai bem; sua popularidade segue baixa. Considerando o mesmo tempo de mandato de seus antecessores, Trump só perde em aprovação para Jimmy Carter. O índice em torno de 42% de aprovação ainda é administrável, mas a perda de votos entre independentes, indecisos e latinos conservadores não é um luxo ao qual o presidente possa se permitir.
O receio da pequena margem para erro explica sua última declaração sobre aumentar o controle na verificação de antecedentes e outras medidas sobre armas. Trump diz entender a resistência da National Rifle Association (NRA), lobby das armas, a qualquer tipo de controle. “Eles acham que você aprova uma coisa, e isso leva a um monte de outra ruins”, disse Trump. O presidente discorda e vê espaço para um consenso bipartidário, pelo qual já estaria trabalhando.
Um racista “paz e amor” não faz sentido e convence somente aos ingênuos. Pois, além de racista, Trump tem muito a perder traindo sua base pró-armas e anti-imigrantes. Lógica, no entanto, é artigo raro no contexto político atual.