Denúncia do INF por Trump e a ameaça chinesa
Por Williams Gonçalves*
A decisão do presidente norte-americano, Donald Trump, de denunciar o Tratado de Forças Nucleares de Médio Alcance (INF, de Intermediate-Range Nuclear Forces) assinado com a Rússia não constitui fato isolado. Representa a mais extremada decisão de uma acidentada trajetória no relacionamento dos dois países, que ainda pode ser agravada se Trump honrar a palavra de não renovar o Tratado de Redução de Armas Estratégicas (START III), assinado em 2010.
Os problemas entre Estados Unidos e Rússia tiveram início ainda no governo de Boris Iéltsin, por ocasião do bombardeamento da Iugoslávia pela OTAN em 1999. A isso, somam-se momentos igualmente críticos como a invasão russa da Ucrânia e a anexação da Crimeia em 2014, a interferência russa nas eleições norte-americanas de 2016, o apoio russo a Bashar al-Assad e a Nicolás Maduro, assim como as sanções econômicas norte-americanas aplicadas à economia da Rússia, a ampliação do perímetro da Aliança Atlântica até ponto próximo às fronteiras russas e a ajuda econômica norte-americana à Ucrânia.
Isso equivale a dizer que, desde a chegada de Vladimir Putin ao Kremlin em 1999, as relações de Estados Unidos com Rússia tornaram-se difíceis, em alguns momentos fazendo mesmo lembrar a bipolaridade sistêmica e a Guerra Fria. De um lado, os russos entendendo que os Estados Unidos e a OTAN pretendiam isolar e sufocar a Rússia mediante cooptação dos Estados vizinhos para a aliança militar ocidental; de outro, os norte-americanos declarando-se ameaçados por suposto projeto nacionalista acalentado por Putin de recompor o antigo território e o poder militar da ex-União Soviética.
Essa possibilidade criada com a denúncia do INF de reabrir as portas para uma nova corrida armamentista, apesar de parecer inevitável desfecho do acúmulo de desentendimentos e agradar aos interesses militares de ambos os países, contrasta, contudo, com o bom relacionamento que Trump procurou estabelecer com Putin, no período inicial de seu governo. Bom relacionamento esse, vale lembrar, que provocou a ira dos opositores democratas, que acusavam hackers russos de invadirem computadores do partido com o objetivo de interferir nas eleições presidenciais e favorecer a candidatura de Donald Trump.
Diante dessa mudança de comportamento de Trump, a pergunta que se impõe é a seguinte: o que o fez ter nova percepção da posição da Rússia na relação com os Estados Unidos? Putin não é mais o mesmo, ou foi o próprio Trump que passou a interpretar o processo de maneira diferente, dando agora razão àqueles que antes o criticavam?
Uma estratégia à deriva
Andrew Bacevich, em texto intitulado An Alternative to US World Dominance, dá a essa pergunta resposta curta e objetiva: “os Estados Unidos encontram-se estrategicamente à deriva”. Segundo ele, falta ao Governo Trump uma direção política coerente e consistente. A responsabilidade por tal situação não seria, entretanto, exclusivamente de Trump. Este apenas representaria a apoteose de um desfile de governos fracassados que começou após a Guerra Fria. De acordo com Bacevich, todo poder que os Estados Unidos acumularam naquela época esvaiu-se por entre os dedos dos predecessores de Donald Trump por incapacidade de administrá-lo.
Embora não seja o caso de discutir o que Bacevich considera errado em sua avaliação dos sucessivos governos dos Estados Unidos no período tratado, uma vez que isso implicaria estabelecer um parâmetro acerca do que teria sido o certo, não parece justo atribuir toda responsabilidade da redução do poder relativo dos Estados Unidos à inabilidade política de seus líderes. Se assim fizéssemos, isso nos obrigaria a admitir que o restante do mundo permanecera estático ao longo de todo esse tempo, inteiramente à mercê da capacidade política da elite política norte-americana. Em tal perspectiva, a sorte do mundo dependeria da capacidade, ou da oportunidade, dos governos norte-americanos de praticarem políticas corretas.
Parece-nos que não há lugar para dúvidas em relação às hesitações políticas de Trump, o que dá razão à ideia de Bacevich da deriva estratégica de seu Governo. Parece-nos também que isso não se deve, contudo, exclusivamente a defeitos seus. Deve-se considerar que ele enfrenta situação bastante difícil em seu dever de defender os interesses nacionais do país. Afinal, o sistema internacional passa por uma rara situação. Passa, por assim dizer, pelo que Carl Schmitt denomina no livro O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum a luta por uma nova ordem no mundo. Por outras palavras, isso significa que o sistema internacional passa por uma crise que não se restringe à luta pela hegemonia. Nessa luta está em jogo muito mais do que isso.
A reconfiguração da ordem internacional
A inevitável futura hegemonia chinesa que se aproxima apresenta características que apontam no sentido de uma mudança na estrutura do poder, uma autêntica mudança civilizacional. As relações com os países asiáticos consubstanciadas em acordos e instituições, a aliança com a Rússia e os tentáculos econômico-comerciais lançados sobre a Europa, formados pela The Belt and Road Initiative, suprimindo assim a tradicional separação entre Ásia e Europa e formando um bloco euroasiático, deverão determinar o fim do protagonismo dos Estados Unidos e sua colocação em posição praticamente periférica.
Evocamos o conceito cunhado por Schmitt por entender que, além da mudança do poder hegemônico, está em jogo uma nova divisão espacial do mundo, que corresponderá a uma igualmente nova maneira de denominá-lo. Por isso, também, a reação norte-americana cada vez mais belicosa. Os Estados Unidos somente podem deter a progressão desse processo mediante a guerra. E o único país que age de acordo com a linguagem militar é a Rússia, embora não sejam os russos o inimigo principal. Os chineses mantêm os nervos no lugar e continuam a se comunicar na linguagem exclusivamente econômica.
Em face da denúncia norte-americana do INF, porém, Rússia e China inauguraram nova modalidade de cooperação, unindo a Força Aeroespacial da Rússia e a Força Aérea da China. Em julho último, ambas as forças aéreas passaram a patrulhar a rota desenhada sobre o Mar do Japão e o Mar da China Oriental. Para tanto, os russos usaram a aeronave Tupolov Tu-95MS (que a OTAN denomina “Urso”), uma grande plataforma de mísseis e bombardeiros estratégicos. A China, por sua vez, usa o H-6K, que é uma versão sofisticada do “Urso”, com capacidade de transportar mísseis de cruzeiro lançados a ar (BHADRAKUMAR, M. K. Russia and China Display Strategic Coordination in Asia-Pacific). Ao mesmo tempo, Pequim ameaça os Estados Unidos de retaliação, caso os norte-americanos instalem mísseis de médio alcance na Austrália, no Japão e na Coreia do Sul.
Essa aliança militar de Rússia com China, junto às pressões sobre a Índia para que esta não siga a orientação dos Estados Unidos, cria um ambiente explosivo na região. Em grande medida, a situação político-estratégica da Ásia – e do mundo, por extensão – depende de para qual lado esse país-membro do BRICS, a Índia, vai-se inclinar: se para o lado do núcleo duro do BRICS – China e Rússia –, ou se para o lado dos Estados Unidos, como outro membro do grupo, o Brasil, já decidiu.
* Williams Gonçalves é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) e professor de Relações Internacionais da UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN).