Política Doméstica

Os evangélicos norte-americanos e a política (I)

Trump em comício no Ladd-Peebles Stadium, em 21/8/2015, em Mobile (AL). Crédito: Mark Wallheiser/Getty Images

Por Reginaldo Moraes*

Ela vem de longe. Mas uma semente nova foi plantada lá nos anos 1930. E daí uma flor estranha vingou em solo norte-americano, para depois se espalhar pelo mundo. Atravessou por várias fases e reencarnou diversas vezes. Nas últimas décadas do século assumiu uma feição nova e vibrante – gerando um ramo geneticamente modificado do protestantismo, um evangelismo militante, efusivo e extremado em todas as dimensões – além da teológica e da moral. Assim, graças a essa expansão de efeitos, ela veio a constituir a nova direita religiosa, de inspiração neopentecostal, quase sempre, mas nem sempre, alojada no Partido Republicano.

Quando utilizamos a metáfora da flor pode parecer que nos referimos a alguma coisa biológica, orgânica, natural. E assim é, pelo menos em parte. Ela se enraíza e se nutre de um solo rico, fértil em nutrientes. Mas é também o produto, talvez inesperado e complexo, de um conjunto de iniciativas bem pensadas. Um artefato, um engenho.

Pensado em ampla perspectiva, e utilizando ainda a metáfora da planta, o movimento tem a ver com um terreno socioeconômico que se constituiu depois da Segunda Guerra mundial. Decisões do governo federal norte-americano e de grandes corporações remodelaram o país, inaugurando uma nova marcha para o oeste, semi-virgem, e para o sul, nada virgem, mas revigorado pela energia de novos varões da economia e da guerra. Sim, da guerra, porque o complexo industrial militar instalava postos avançados de pesquisa e produção de armas no Texas, no Arizona, na Flórida e no velho sul – o Sunbelt acolhia o GunBelt. E o Bible Belt.

O mapa a seguir indica esse movimento. Quem tiver curiosidade na nova geografia das armas, há um excelente guia: The Rise of the Gunbelt: The Military Remapping of Industrial America, de Ann Markusen, Peter Hall, Scott Campbell e Sabina Deitrick (Oxford University Press;1991).

O país sofria outra transformação, diferente daquela do século XIX. Não se trata mais da migração do campo para a cidade. Mas do núcleo urbano central para o subúrbio. Repare, no gráfico a seguir, a expansão depois da Segunda Guerra.

Capitais, máquinas e dinheiro viajavam da costa leste e do meio-oeste para essas novas plagas. E com elas seguiam as gentes. Protestantes tradicionais e moderados de Ohio e Illinois se deslocavam para Orange County, Califórnia, Seattle, Colorado Springs, ou Austin. Saíam de centros urbanos antigos, estabelecendo-se em subúrbios ajardinados, construídos graças a um monumental programa estatal de financiamento de hipotecas e a outro não menos monumental programa de estradas federais. Um outro livro conta essa estória e mostra a forma pela qual os “retirantes” se acomodavam às circunstâncias e criavam novas formas de socialização, de cultura religiosa e política: Suburban Warriors – The Origins of the New American Right, de Lisa McGirr, Princeton University Press, 2001.

Muitas vezes, alguns analistas associavam a direita religiosa com um público pouco letrado e pobre, a figura do “atraso”, da tradição córnea. Não é uma imagem precisa. A religião extremada – inclusive a mais fundamentalista – é acolhida por um grupo de pessoas crescentemente suburbanas, educadas, modernas, encravadas na indústria high-tech e na cultura da abundância e do supérfluo. Essa combinação de religião dos “velhos tempos” com a tecnologia moderna, do conservadorismo moral com o consumismo da última moda indicam, de certo modo, um fruto da ascensão social e do cataclismo programado.

Nos anos 1950, o país do automóvel ganhava novas pistas e inventava novos hábitos de trabalho, moradia, novos sentimentos e… uma nova visão de mundo. Era da abundância, dos “anos dourados”.

Assim, como dissemos, aos traços orgânicos e “naturais” se somam  componentes intencionais – como esses programas federais de rodovias e residências e, ainda mais, de investimentos do chamado complexo industrial-militar (e acadêmico).

Margaret O’Mara conta essa estória em Cities of Knowledge: Cold War Science and the Search for the Next Silicon Valley (Princeton University Press, 2015). Ali se mostra, por exemplo, como o Pentágono estimulava as empresas a descentralizar suas plantas, com a paranoia de um eventual ataque estrangeiro (ou alienígena?).

Kevin M. Kruse, por outro lado, conta como empreendedores de toda natureza responderiam a essa demanda nascente [em One Nation Under God: How Corporate America Invented Christian America, Basic Books; 2016]. E mostra como, em certa medida, a dirigiam e conformavam. Os magnatas que projetavam uma religiosidade pró-mercado eram mais do que “respostas” à demanda. Eram semeadores. Desenvolveremos essa estória mais adiante.

Voltemos por enquanto ao deslocamento e suas consequências.

Darren Dochuk conta que, entre o final dos anos 1930 e o final dos anos 1960, mais de seis milhões de sulistas de cidades pequenas se deslocaram para centros industriais. Não apenas para Detroit, no Manufacture Belt do meio-oeste, mas também para cidades como Los Angeles. Em 1970, cerca de 11 milhões de sulistas viviam fora de seus estados natais [From Bible Belt to Sunbelt: Plain-Folk Religion, Grassroots Politics, and the Rise of Evangelical Conservatism, ed. W. W. Norton, 2010]. Focalizando o exemplo crucial da Califórnia, o autor descreve os desdobramentos dessa mudança demográfica no terreno das igrejas.

Os protestantes moderados, desenraizados, assim que instalados na nova fronteira, buscaram novos vínculos. E novas igrejas. Elas surgem ali onde são demandadas. Com outro perfil. O protestantismo sóbrio e cultivado dos metodistas do leste, por exemplo, dá lugar à proliferação de Assembleias de Deus, de núcleos de Batistas do Sul reformados, de uma enorme variedade de pequenos templos e mega-churches, organizadas quase como um sistema de franquias – franquia espiritual e material, como empreendimentos independentes e associados. Esse novo despertar é mais emotivo e militante, proselitista, animado pelo episódio bíblico de Pentecostes, em que os crentes se embebem do espírito santo, exaltam-se e falam em idiomas que não conhecem. A embriaguez espiritual se traduz, rapidamente, em disposições ideológicas igualmente extremadas, voltadas para exorcizar os grandes demônios que ameaçam a pátria e a civilização: feminismo, comunismo, homossexualismo, a ciência ateia, aquela que não apenas ignora, mas contesta a verdade literal da Bíblia. Um emblema dessa transfiguração – da passagem da fé para a política – poderia ser visto na primeira marcha dos crentes, o Washington for Jesus, de 1980. Eles enviam um recado forte: além de salvar nossas almas e purgar nossos pecados como indivíduos, queremos tomar a praça e purgar os pecados nacionais.

Esse movimento de longa duração, arquitetado e orgânico ao mesmo tempo, vai criando as bases para sua expressão politica (e eleitoral), a nova direita religiosa que nas últimas décadas do século XX pautou facções no congresso e no judiciário. Além, claro, de constituir componente fundamental de presidentes das mais variadas colorações morais – do piedoso Carter ao escroque Nixon. Do canastrão Reagan ao drogadito Bush. E, para concluir, deu sua enorme contribuição à vitória de um gerente de bordel travestido de mito salvador, o fabuloso agente laranja Donald.

Contaremos nas próximas semanas um pouco mais dessa estória, a saga da direita religiosa norte-americana. Não é pesquisa original, é um resumo comentado de uma vasta literatura, de dezenas de livros dedicados ao tema. Quanto comecei a rabiscar estas notas me dei conta de que havia reunido uma centena de títulos – li uns vinte, passei por outros vinte. Ainda há dezenas na minha estante (ou no meu cartão de memória). E a cada dia novas interpretações surgem.

A estória que se conta aqui é deles, os de lá de cima do globo. Mas é muito sugestiva do que ocorre em outras plagas. É útil para compreender um pouco da história recente dos Estados Unidos. Mas, também, para entender como ela se expande para outros países. E como se transfigura quando neles se instala.

 

* Reginaldo Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

** Artigo originalmente publicado no Jornal da Unicamp, em 8/8/2019.

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