Vietnã, uma lição (involuntária) de Robert McNamara
Por Reginaldo Moraes
Robert McNamara é conhecido pela sua ligação carnal com a guerra do Vietnã, como secretário de Defesa do governo Lyndon Johnson. Uma parte dessa conexão foi retratada no filme The Fog of War (exibido no Brasil como Sob a Névoa da Guerra). No filme, entre outras interessantes passagens, há um pesado e retórico desfile das “11 lições” do próprio McNamara, que acreditava ter algo a ensinar, depois de seu magnífico insucesso. Mais apimentado e menos reverente é The Post: a guerra secreta.
Descobrindo um ângulo novo nesse drama, o jornalista Hamilton Gregory conta uma estória que arrepia – como costuma ocorrer com as narrativas da guerra. Está neste livro: McNamara’s Folly – The Use of Low-IQ Troops in the Vietnam War plus The Induction of Unfit Men, Criminals, and Misfits, Infitiny Publishing, 2015. Um pouco da “racionalidade” do menino-prodígio que levava suas planilhas da Ford para o Pentágono e depois para o Banco Mundial.
A estória de Gregory começa ali por 1960-61, quando o governo americano começou a elevar a presença de suas tropas no Vietnã. E procurava fazê-lo com voluntários. Alguns anúncios postados na mídia apelavam para a imagem dos jovens machos que seriam transformados em homens maduros durante a jornada gloriosa. Para outra parte do público, a mensagem era a promessa de emprego seguro, bons salários e possibilidade de promoções.
Houve até uma boa resposta à iniciativa, mas ainda assim era insuficiente para a escalada. Alguns comentadores, simpáticos à ofensiva, diziam que a guerra era popular – o que seria atestado, diziam eles, pelo fato de os veteranos do Vietnã serem voluntários, e não recrutados compulsoriamente.
Só que esse “dado bruto” precisa ser qualificado pelo contexto da busca. As equipes de aliciamento diziam aos candidatos que eles seriam de qualquer modo recrutados, mais cedo ou mais tarde. E, nesse caso, teriam que ficar dois anos – e seriam enviados ao combate nas selvas. Seria melhor se ingressassem antes disso, porque serviriam por três anos nas chamadas especialidades de não-combate, como a mecânica, cozinha, programação de computadores e assim por diante. Evidentemente, uma coisa era o que diziam (e só diziam, não escreviam). Outra coisa era o que esperava os garotos, uma vez lá na Cochinchina.
O ano da crise foi 1966. Muitos americanos de classe média conseguiam evitar a convocação, de um modo, ou de outro. Por exemplo, os que faziam escola superior em profissões “relevantes para a sociedade”. Ou aqueles que provavam ser arrimo de família. Um conhecido ator de Hollywood, por exemplo, dizia que sua mãe morava com ele, dependia do trabalho dele – um trabalho milionário e uma fantástica mansão em Beverly Hills. O que aconteceria à doce velhinha, se ele fosse ao Vietnã?
Daí vem a ideia. Descobre-se que havia uma enorme reserva de jovens na idade adequada em comunidades pobres, mas muitos deles tinham sido barrados no exame militar de aptidão – o Armed Forces Qualification Test (AFQT). Nos anexos do livro, Gregory reproduz algumas das questões do teste – eram tão banais que, realmente, os que não conseguiam responder pelo menos metade podiam ser taxados de limítrofes, desajustados, ou retardados, se os termos não fossem demasiado duros e ofensivos.
O presidente Lyndon Johnson e seu secretário de Defesa, Robert McNamara, encontraram então a saída mágica: reduziram o padrão mínimo do teste. Massas antes classificadas como “inúteis” passaram a ficar entre os “razoavelmente úteis”, algo assim.
Entre as tropas, estes homens frequentemente eram conhecidos como McNamara Morons – eram os “retardados de McNamara”, “a tropa de retardados” ou, simplesmente, os McNamara Boys.
No final da guerra, o programa de McNamara tinha tomado 354.000 homens abaixo do padrão para o Exército, Força Aérea e Marinha.
De fato, o programa era anterior à crise de abastecimento de 1966. Fora pensado dois anos antes e vendido como um programa “social”, de combate à pobreza e de adestramento e “civilização” de pessoas que eram tidas como menos capazes, para utilizarmos termos suaves. A apresentação inicial, sincera ou não, pouco importa, parecia baseada na compaixão: iria salvar e reabilitar aqueles indivíduos, dando-lhes uma oportunidade de educar-se, adaptar-se, amadurecer, disciplinar…. virar gente, enfim. Um sociólogo que depois se tornaria senador, Daniel Patrick Moynihan, fazia a apologia das virtudes educadoras da farda: “pegue pretos e pobres dos centros degradados das cidades, ou então aqueles branquelos rurais – essa turma que tende à preguiça e ao álcool. Coloque neles um uniforme, instile disciplina. Ensine-os a tomar banho diariamente, escovar os dentes e obedecer ordens”.
Os críticos, é claro, apontavam para o cinismo: o objetivo real era usar os pobres ao invés de confrontar a classe média, que apoiava a guerra mas nela não queria seus meninos. Guerra dos ricos, combate dos pobres, velha fórmula.
O programa encontrava resistência entre os líderes militares – eles sabiam a dor de cabeça que teriam com os recrutados. Porém, diante da falta de braços, renderam-se ao projeto.
Os resultados – como previam os oficiais – não foram nada róseos. Os recrutados “inferiores” metiam os pés pelas mãos e morriam três vezes mais do que os outros. E, claro, graças ao fato de que tinham dificuldade para aprender e executar comandos simples, colocavam seguidamente em risco não apenas a si mesmos, mas toda tropa. Um desastre.
E há os efeitos indesejados do pós-guerra, claro. Como o programa terminou em 1971, mas a prática de recrutamento, com adaptações, seguiu similar, o saldo dos retornados de missões bélicas é o que se pode prever.
Em 2014, quando muitos veteranos do Vietnã já estavam na idade de aposentadoria avançada, um estudo federal calculou que quase 300 mil deles ainda sofriam da chamada desordem de estresse pós-traumático. Tinham súbitos retornos mentais a situações de risco (flashbacks), eram hiperativos e irritadiços, explosivos, tinham problemas de sono. E por aí afora.
Durante as invasões posteriores, como Iraque e Afeganistão, os militares repetiram o erro, aceitando desajustados, incapazes e, pior, pessoas com razoável desempenho criminoso. Os efeitos pós-bélicos ficavam ainda piores. Cumulativos.
As guerras têm sempre estórias de horror como essas. E reproduzem sempre a mesma rima: a guerra é coisa boa, desde que seja para os outros. Uma anedota italiana conta que Mussolini reuniu seus cidadãos na praça e lhes disse: armemo-nos e… parti-vos. Desculpem o ítalo-português, vocês entendem. Há brasileiros de ascendência italiana que sonham reencarnar Mussolini, imitando a ridícula entonação. Sonham invadir um país vizinho e “aplicar uma lição” aos seus governantes. Armemo-nos e parti-vos. No dos outros é refresco.
* Reginaldo Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.
** Artigo originalmente publicado no Jornal da Unicamp, em 18/7/2019.