Obesidade e baixa escolaridade reduzem oferta de recrutas nos EUA
por Solange Reis
Para comemorar o último 4 de Julho, Dia da Independência, o presidente Donald Trump organizou uma grande parada militar. Houve desfile de tanques, acrobacia aérea e um chamamento à pátria. “Para os jovens americanos de todo o nosso país, agora é a sua chance de se juntar ao nosso Exército e assumir um compromisso verdadeiramente grandioso na vida.”, disse o republicano no Memorial Lincoln, em Washington.
O apelo não foi apenas retórico, nem motivado somente por patriotismo. Trump tenta ajudar os militares a suprir uma crescente deficiência de oferta. Muitos da Geração Z não desejam se alistar e, mesmo que esse não fosse o caso, a grande maioria não seria aceita pelas instituições militares. Parte da garotada está fora do peso, fora da lei e fora da escola.
Recrutamento na pobreza
Quando a Guerra do Vietnã chegou ao fim, em 1973, o serviço militar deixou de ser obrigatório nos Estados Unidos. Desde então, o alistamento acontece de forma voluntária. O país sempre pode contar com a subcontratação de mercenários, uma escolha bastante comum nos últimos vinte anos. Essa alternativa, porém, tem seus limites e ônus, fazendo com que o Pentágono não possa abrir mão de recursos endógenos.
Em 2017, o contingente total contava com 1,3 milhão de soldados na ativa e 865 mil na reserva. Mais de 200 mil estão distribuídos por 70 países, sendo fundamentais para sustentar o poder americano no mundo. Manter o fluxo dessa mão-de-obra é vital, mas a tarefa vem tornando-se mais desafiadora.
Como a maior potência militar do mundo precisa de um contingente de grandes proporções, os recrutadores estimulam a juventude a se voluntariar. Um órgão importante nessa tarefa é o Corpo de Formação de Oficiais de Reserva Júnior (JROTC, na sigla em inglês), responsável por planejar e executar muitas das estratégias de convencimento atualmente em prática.
Recrutadores militares fazem campanhas nos distritos escolares de baixa renda, promovendo o alistamento como um trampolim para o “American way of life”. Em 2017, 20% dos jovens que aderiram ao serviço militar vinham de bairros com média de renda anual familiar em torno de US$ 40 mil. Considerando o país inteiro, a média sobe para cerca de US$ 60 mil.
Uma vez admitido, o jovem poderá ficar elegível a receber um incentivo de US$ 6 mil. Além disso, servir às Forças Armadas, ainda que em caráter provisório e com uma dispensa honrosa, significa o caminho para a universidade ou a cidadania, o que não aconteceria de outra forma. Os incentivos e a progressão de carreira variam entre Exército, Marinha, Aeronáutica e os Marines, mas todos os quatro braços das Forças Armadas se empenham em atrair a massa jovem.
Uma Nação Fora de Forma
A maioria dos jovens é inapta para o alistamento, o que o próprio Pentágono considera uma silenciosa ameaça à segurança nacional. Os principais motivos da inadequação são a fragilidade da saúde, incluindo obesidade e doenças mentais, a baixa escolaridade e o histórico de criminalidade. Segundo um relatório do Departamento de Defesa, de 2017, 71% dos americanos entre 17 e 24 anos apresentam uma ou mais dessas características. Em números mais claros, 24 milhões entre 34 milhões de pessoas não seriam aceitas para o alistamento hoje, mesmo que quisessem começar a vida militar.
Para o major-general Mark Brilakis, que atualmente comanda 46 mil soldados, a situação é muito mais grave do que apontam as estatísticas. Caso fosse aplicada a devida filtragem, diz o militar, o número de habilitados não chegaria a um milhão.
Existem duas forma de melhorar esses percentuais. A primeira é adaptar os critérios à realidade, mas isso equivale a tapar o sol com a peneira. Pois a perda de qualidade nas capacidades de defesa, sobretudo para a infantaria e demais unidades terrestres, seria inevitável e incontestável.
A alternativa é desenvolver campanhas e políticas públicas voltadas para a saúde, a educação, a inserção social e a redução da pobreza. Todas essas medidas, porém, demandam tempo, planejamento, execução e, acima de tudo, uma vontade política que parece inexistir no atual quadro político e cultural do país.
O desinteresse dos jovens pela vida militar é outro desafio. De acordo com uma pesquisa do Pentágono, de 2017, somente 14% dos indivíduos entre 16 e 24 anos desejam se alistar. Diante disso, no mesmo ano, os recrutadores passaram a atuar até em campeonatos de videogames, jogos que exploram principalmente o universo lúdico-digital das guerras.
Dentre as forças, o Exército é a que enfrenta mais problemas para atrair candidatos. Segundo o Departamento de Defesa, o Exército não conseguiu bater a meta de recrutamento de 2018, ficando 8% abaixo dos 76.500 almejados. Mesmo com a instituição oferecendo vários tipos de incentivos. Entre eles, empréstimos educacionais, programas de educação continuada e promoção acelerada. As bonificações aumentam se o indivíduo optar pelas forças especiais de combate.
Há dez anos, muitos generais da reserva já haviam identificado o déficit, razão pela qual criaram uma organização sem fins lucrativos chamada Mission Readiness (Prontidão para a Missão, em tradução livre). Formada por 750 generais e almirantes da reserva, a ONG tem como missão garantir “que as crianças fiquem na escola, em boa forma e longe de problemas”.
Em 2009, o grupo preparou um relatório intitulado “Prontos, Comprometidos e Inaptos para Servir” (em tradução livre), que apontava para as particularidades da situação e a ameaça que esta representa para a segurança do país. Nove anos depois, o quadro não havia sido revertido, como constatado no relatório “Sem Saúde e Despreparados”.
Obesidade
O critério campeão de cortes é a obesidade. Cerca de 27% dos americanos em idade de alistamento militar estão obesos. Isso inviabiliza a candidatura de 2 em cada 10. O problema atinge com mais intensidade os estados sulistas, principais zona de recrutamento.
A questão da obesidade já tinha sido identificada pelo presidente Dwight Eisenhower, que criou o President’s Council on Youth Fitness (Conselho do Presidente para Condicionamento Físico da Juventude), em 1956. O órgão ganhou status de gabinete, com lideranças apontadas por todos os presidentes, exceto Donald Trump. As orientações do Conselho servem, por exemplo, como guia para diretrizes escolares.
Trump também não deu continuidade ao programa “Let’s Move”, da ex-primeira dama Michelle Obama. Criado em 2010, o projeto visava reduzir a obesidade de crianças e adolescentes por meio de conscientização dos pais, mudança na dieta escolar, incentivo a exercícios físicos e, em última instância, revolucionar a cultural alimentar do país.
Baixa escolaridade
Para servir às Forças Armadas, as pessoas devem ter diploma de high school, equivalente ao ensino médio. Esse nível de formação permite que tenham as habilidades cognitivas básicas e a compreensão da realidade necessária para o acompanhamento dos programas militares.
Estatísticas recentes apontam que, nesse aspecto, o país vive o quadro mais dramático desde o fim do alistamento militar obrigatório há 46 anos. O problema está relacionado à evasão escolar, a qual os especialistas acreditam ser, na média, superior a 20%. Em certas cidades, como Albany, no Oregon, o índice chega a quase 49%.
O Exército abre um número limitado de vagas para quem não tem a formação exigida, desde que a pessoa seja certificada pelo GED (Desenvolvimento de Educação Geral, em tradução livre), um teste que comprova os conhecimentos equivalentes aos que teriam sido adquiridos no ensino médio. Mesmo nesses casos, dificilmente os candidatos passam no Teste de Qualificação das Forças Armadas (AFQT, na sigla em inglês), que mede habilidades básicas em matemática e leitura.
Histórico criminal
Todas as Forças Armadas são rígidas quanto a condenações por crime, o que elimina um em cada dez jovens adultos. O uso de drogas, mesmo das mais leves, é outra barreira de contenção – um terço dos potenciais candidatos reconhecem ter usado maconha nos últimos doze meses (estatística de 2016). Ofensas sexuais, condenações recorrentes por excesso de bebida e outras infrações aumentam a lista eliminatória.
Crise existencial da nação “excepcional”
Quando o presidente do país que tem os militares como modelo de heroísmo – enaltecidos por ídolos de Hollywood, desde John Wayne até Bradley Cooper – precisa convencer os jovens de que servir à pátria é o compromisso mais grandioso de suas vidas, é sinal de que o sistema não consegue mais construir o imaginário popular para um Estado em status de guerra interminável.
O fato de haver organizações como a Mission Readiness, e relatórios do Departamento de Defesa e artigos de think tanks e jornais, como “The Looming National Security Crisis: Young Americans Unable to Serve in the Military”, da Heritage Foundation, indicam que gastos dispendiosos com publicidade não resolvem o drama.
A nação “excepcional” torna-se cada dia mais normal. Como em tantas outras, fica evidente que os Estados Unidos passam por uma crise estrutural de renda, educação e saúde, um inimigo muito mais duro de vencer do que Estados tradicionais ou grupos atípicos. Tal cenário coloca em dúvida a sua capacidade de seguir como “líder do mundo livre”, “garantidor da segurança global” e “hegemon”, seja ele benigno ou maligno.