Trump e seus clones: é pior do que você pensa
Por Reginaldo Moraes
Conhecido por seus trabalhos de investigação, David Cay Johnston publicou recentemente um livro imperdível sobre Donald Trump. O que segue não é exatamente uma resenha, ou resumo. É muito mais a reordenação, bem simplificada, de alguns de seus argumentos – algo que seleciono por aquilo que penso ser mais interessante ao leitor brasileiro. Na maior parte do texto, abre-se mão de qualquer originalidade – é Johnston falando. Com a devida penitência por deformações por mim cometidas.
Para quem quiser acesso ao livro, bem mais rico do que este artigo, aí vai a referência: David Cay Johnston – It’s Even Worse Than You Think – What Trump Administration is Doing to America, ed. Simon & Schuster, New York, 2018.
Este exercício narrativo me parece ajudar a entender Trump um pouco mais. E, arrisco, talvez nos ajude também a enquadrar fenômenos similares. Para que percebamos que certas aberrações não são exclusivas de Rio das Pedras, ou do Vale do Ribeira.
No registro de Johnston, podemos ver que Trump é mais do que a antiga orientação neoliberal do Partido Republicano, aquela que vem desde Reagan. Ou da obsessão reacionária e racista que já transbordava com Nixon. É até mais, bem mais, do que o neoconservadorismo alucinado dos Bush. E é mais do que o Tea Party, até ontem tido como o limite da nova direita ianque. Em certa medida, tudo isso virou passado com a emergência do agente laranja enquistado na Casa Branca.
Estamos acostumados com a ideia de que os neoliberais e a nova direita estão empenhados em minguar o Estado em proveito de “soluções de mercado”. Trump é mais do que isso, diz David. Ele não tem como programa produzir um “estado mais enxuto”. Não tem como alvo destruir, ou enfraquecer as políticas de “rede social”, o já minguado Estado de Bem-Estar norte-americano. Ele vai mais longe.
Pode-se dizer que Trump executa a fórmula definida por Steve Bannon: “desconstruir o estado administrativo”. Alguns dos seguidores mais fanáticos de Donald dizem que ele trava luta mortal contra as armadilhas do Deep State, aquilo que nossos correlatos locais chamariam de “o sistema”. Aliás, poderíamos lembrar a frase reveladora de seu clone brega-Brasil: ele não veio para construir algo. Ele veio para dissolver, confundir, deixar tudo tão confuso e desarmado que apenas sua voz e suas ordens ecoem na mente das pessoas.
Por isso, como diz Johnston, Donald não fez nenhum esforço para colocar “bons quadros” na direção do governo federal. Aliás, até hoje sequer completou a nomeação dos chamados cargos de confiança, aqueles que a presidência indica livremente. Onde ele agiu, a estratégia foi esta: colocar formigas atravessando a estrutura do governo. Essa metáfora vem a calhar. As formigas comem o que há, roem os alicerces e, sutilmente, encurralam os eventuais críticos: assediam, ou ameaçam cientistas, promovem o sigilo e a censura, escondem informações e registros públicos, até mesmo os destroem. Assim, o país vai se vendo sem sequer as informações básicas para julgar em que pé estão o meio ambiente, a segurança no trabalho, e assim por diante. Até o censo seria “enxugado” para dizer menos. Meus queridos, respirem, estou falando das iniciativas de Trump, não de suas imitações.
Se, no meio deste drama, conseguirmos manter algum humor, é possível reconhecer que, a seu modo, Trump reduziu pelo menos uma “desigualdade”. Hoje, cidadãos com os parafusos no lugar já não sabem se os têm – estão no mesmo plano dos lunáticos.
As nomeações não realizadas, por desleixo visivelmente proposital, são chocantes: Trump nomeou apenas uns 400 dos quase 600 cargos, cujos nomes precisa indicar para aprovação do Senado. No primeiro ano, indicou apenas 36 dos 188 embaixadores. No caso dos diplomatas, é costume dos presidentes nomear dois de carreira para cada indicação “política”. Trump alterou isso: dois terços dos que indicou são políticos sem qualquer experiência diplomática.
E aquelas figuras que indicou para a gestão superior são as tais formigas desestruturantes. Uma ricaça fanática por escolas privadas para o Departamento de Educação – seu único programa de paixão é promover a escola privada, a gestão das escolas públicas por conselhos empresariais, a injeção de ensino e práticas religiosas. O secretário de Desenvolvimento Urbano e Administração é um cirurgião aposentado, sem experiência administrativa e com ideias excêntricas – segundo seu saber especializado, as pirâmides egípcias não eram túmulos de faraós, eram silos e armazéns. No Tesouro, enfiou um banqueiro, cujo maior feito era promover o despejo de proprietários de casas que não conseguiam pagar as hipotecas. Para a Agência de Proteção Ambiental (EPA), nomeou um advogado que sonhava destruí-la.
Este é o assim chamado governo Trump. Mais próximo de um reality show excêntrico, tendo como diário oficial uma coleção de twitters igualmente excêntricos.
Muitos de nós já estamos nos acostumando a ver esses flagrantes da nova direita como uma espécie de erupção global de ódio e medo, de reacionarismo nostálgico e impermeável ao argumento. Assim é – e essa energia vulcânica tem seu tempo para destruir e, eventualmente, dissipar-se.
Mas as figuras que encarnam fisicamente essa onda mimetizam em grande parte a figura do líder americano. Perto dele, alguns dos reacionários do passado, como Bush, parecem pálidas lembranças do mal e da estupidez. Parecem até adultos normais. Donald tem as reações emocionais daquele adolescente problemático que papai mandou a uma academia militar, onde se “aprendia” a brutalidade do mundo macho.
Temperando o retrato muito pessoal, Johnston nos lembra que existe algo mais grave. Trump é conhecido por negar a realidade, por oferecer “fatos alternativos”. O preocupante, porém, é que muitas pessoas – muitas mesmo – fecham os olhos para essa falta de sentido.
Afinal, Trump tem muitos seguidores. Afinal, esse suposto inimigo do sistema é um fruto legítimo da plutocracia norte-americana. Afinal, registra nosso cronista, ele não é uma doença da América, ele é mais um sintoma. O diagnóstico é, então, muito mais amargo:
“O fato de milhões votarem em uma caricatura de artista, narcisista e destrambelhado, que passou toda sua vida enganando os outros e seguidamente estimulando seus seguidores a cometer crimes violentos contra seus críticos, tudo isso revela mais sobre a América do que sobre Trump”.
Mais uma vez devo lembrar aos leitores – ou deslembrar – que estamos falando de Trump. Talvez os clones sejam ainda piores.
* Reginaldo Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.
** Artigo originalmente publicado no Jornal da Unicamp, em 6/6/2019.