Democracia contingenciada e uma república constrangida: notas sobre as visitas do presidente à ‘América’
No Twitter, Bolsonaro publica foto com o ex-presidente Bush, em Dallas
Por Renata Peixoto de Oliveira*
Os primeiros meses do governo do PSL no Brasil trouxeram diversas polêmicas e disputas ao cenário político brasileiro e com repercussão internacional. Obviamente, entre os assuntos mais comentados chamam bastante atenção a relação entre Estados Unidos e Brasil e as possíveis convergências entre os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro.
De início, é preciso perceber a diferença entre os dois, já que, mesmo sendo um outsider, Trump é do Partido Republicano, e o bipartidarismo nos EUA não ruiu. No caso brasileiro, tem-se um cenário de crise que se agrava desde 2016, no qual rui o pretenso bipartidarismo que marcou o nosso presidencialismo de coalizão entre as administrações de PSDB e PT. Em 2019, não chega um outsider, mas um representante do baixo clero legislativo por meio de um partido inexpressivo.
Outro ponto divergente é que Trump segue em sua ideia de “fazer a América grande de novo”, algo natural em um discurso do presidente dos Estados Unidos, mas não tão compreensível por parte de outros estadistas que poderiam defender os interesses de seu país. Em 2020, ano do próximo pleito eleitoral, teremos um republicano, ou um democrata. No Brasil, não temos ideia de como terminaremos 2019, quanto mais pensar o que vai ser do nosso sistema político-institucional em 2022.
Feitos alguns esclarecimentos, podemos retomar os relatos de viagem.
A primeira visita de Jair Bolsonaro a Washington ocorreu em março de 2019. Na ocasião, a conversa entre os dois presidentes versou sobre temas como a crise na Venezuela, comércio com a China e barganhas brasileiras para participar da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Neste último caso, o Brasil deveria abrir mão de seu tratamento especial no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC) para poder adentrar no seleto grupo.
O posicionamento do Brasil, representado por seu presidente, foi marcado pela submissão e pelo conformismo, evidenciada por concessões pelo lado brasileiro sem a menor contrapartida pelo governo dos Estados Unidos. Entre elas, destaca-se o fato de que a Base de Alcântara, no Maranhão, poderá ser usada para fins comerciais, e americanos teriam lugares de acesso restrito. Além disso, o Brasil retirou a exigência de visto para cidadãos dos Estados Unidos sem reciprocidade, como habitual.
A única troca recíproca foi a das camisas das duas seleções de futebol. Nem podemos afirmar, porém, que se tratou de uma troca equilibrada, posto que a camisa canarinho tem mais peso e tradição no mundo esportivo.
Bolsonaro desmarca viagem após protestos e polêmica
Um mês depois de sua primeira visita, algumas polêmicas tiveram lugar, já que fora anunciada uma festa em homenagem a Bolsonaro, promovida pela Câmara de Comércio Brasil-EUA. O primeiro constrangimento girou em torno do cancelamento do evento por parte do Museu de História Natural dos EUA mediante pressões. Cogitou-se a realização do evento no restaurante Cipriani Hall, em Wall Street, o que também acabou não se confirmando. Com o passar dos dias, vários patrocinadores retiraram apoio ao evento.
A sequência dos fatos nos leva também a uma série de trocas de farpas entre o presidente Bolsonaro e o prefeito da cidade de Nova York, o democrata Bill de Blasio. A Presidência da República anuncia o cancelamento da viagem e o prefeito nova-iorquino desfere duras críticas ao brasileiro, a quem se refere como “valentão” em suas redes sociais: “Jair Bolsonaro just learned the hard way that New Yorkers don’t turn a blind eye to oppression. We called his bigotry out. He ran away. Not surprised — bullies usually can’t take a punch. @jairbolsonaro Good riddance. Your hatred isn’t welcome here”.
De uma maneira surpreendente e em meio ao alvoroço causado pelas mobilizações em várias cidades brasileiras contra os cortes na educação, ou, como o governo costuma se referir, o “contingenciamento” de verbas, Jair Bolsonaro “surge” nos EUA. Enquanto o presidente visitava George W. Bush (foto), de surpresa, em Dallas, para compartilhar sua preocupação sobre o futuro eleitoral na Argentina, o governador de São Paulo, o tucano João Dória, acabou por substituí-lo na tão polêmica festa de gala da Câmara de Comércio no museu em Nova York.
Enquanto isso, o presidente sai do país em meio a um momento de convulsão social para visitar um ex-presidente e, ao invés de apaziguar os ânimos em suas declarações, chama professores(as) e estudantes brasileiros(as) que se mobilizaram de idiotas úteis e massa de manobra. Ao chefe de Estado parecia ser mais importante rivalizar em atenção com o seu até então aliado, governador João Dória, que estava sendo homenageado em seu lugar, do que dar atenção aos problemas internos de seu país. Até que Dória fez insinuações às declarações do prefeito de Nova York, clamando por tolerância em sinal evidente de apoio a Bolsonaro, ao mesmo tempo em que ganha terreno para se tornar um futuro antagonista por já ser um presidenciável em potencial para 2022. Ele também marcou posição, referindo-se a Bolsonaro como “extrema direita”, enquanto ele se identificava como “centro direita”.
Também é interessante perceber que o prefeito de Blasio, novo desafeto de Jair Bolsonaro, também se declarou presidenciável na disputa eleitoral dos EUA em 2020. Enquanto Bolsonaro desagradava o atual presidente dos EUA, visitando seu inimigo, um político afastado e fora de cena, ainda exacerbou rusgas com um candidato promissor à Casa Branca na próxima disputa eleitoral.
O ano de 2019 é um retrato fiel de uma Democracia contingenciada e de uma república constrangida, diante de gafes, tropeços e desacertos diplomáticos. A era neoconservadora no Brasil é permeada de estratégias confusas, e os últimos dias foram muito representativos.
De lembrança de viagem, um chaveirinho escrito “Brasil e Estados Unidos acima de tudo” e um cartão postal de Dallas dirigido aos “idiotas úteis” do 15 de Maio.
* Renata Peixoto de Oliveira é doutora em Ciência Política pelo DCP-UFMG e professora do curso de Relações Internacionais e Integração e dos programas PPG-ICAL e PPG-PPD da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA). Membro do INCT-INEU. Líder do grupo CESPI-América do Sul e membro do grupo DALC-ALACIP.