Petróleo, crise política e as relações EUA-Venezuela
De crise em crise: do Caracazzo de 1989 ao Venezolazzo de 2019
Por Renata Peixoto de Oliveira*
Aquela que antes fora uma experiência democrática festejada em nosso hemisfério enfrenta hoje seu pior momento. A economia pujante e beneficiária dos ingressos petroleiros, e que passou pela bonança da década de 1970, está em bancarrota. Há exatos 30 anos, a Venezuela enfrentou sua maior crise quando da eclosão dos conflitos entre a população e forças policiais que marcaram os protestos contra o pacote econômico neoliberal de Carlos Andrés Perez e o aumento dos preços das passagens do transporte público coletivo, em 1989. O Caracazzo marcou, assim, o início da derrocada do regime do Pacto de Punto Fijo, um regime de democracia pactuada entre os partidos AD e COPEI (tendentes ao centro) e que durou 40 anos (1958-1998).
A Venezuela de 1989 criou as condições ideais para a Venezuela de 1999, ano em que Hugo Chávez chega ao poder e quando surge uma nova Constituição que marca o início de um novo projeto político para o país e para a região. É inegável o fato de que, no auge do projeto bolivariano (1999-2009), a Venezuela apresentou um considerável avanço social e maior projeção internacional. Também esteve no centro dos debates, gerando controvérsias políticas entre simpatizantes e críticos.
Foi justamente para considerar a influência histórica de dois condicionantes tidos como centrais para a Política Externa Venezuelana, a saber, Petróleo e Democracia, que levei a cabo uma pesquisa de doutoramento que culminou na tese Velhos fundamentos, novas estratégias? Petróleo, Democracia e a Política Externa de Hugo Chávez (1999-2010), defendida no ano de 2011, no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Finalizada a pesquisa que abarcou o período de 1999 a 2010, surgiriam as bases para compreendermos o desenho da crise atual. Este breve texto objetiva, assim, dar vazão a algumas reflexões sobre um período de análise que, até hoje, não havia sido considerado pela autora.
Cenário de incertezas
Em 2009, os ventos começaram a soprar em direção menos favorável. Os efeitos da crise mundial e, notadamente, a política cambial venezuelana e a queda dos preços do petróleo desenharam um cenário de incerteza e um caminho para a crise futura. Além disso, não podemos desconsiderar o ponto de inflexão causado pela morte do presidente Hugo Chávez em 2013. Um acontecimento que trouxe à tona todos os debates e as reflexões sobre o futuro do chavismo, assim como a construção de novas lideranças de esquerda no país e na região.
O governo maduro (2013-) herdou a crise. Sentiu seus efeitos avançarem sob os ataques oposicionistas, mas também a exacerbou. Hoje, presenciamos o completo colapso societal venezuelano. Ineficiência, falta de articulação, centralização e corrupção são algumas das falhas do governo. Tantas outras falhas da oposição também serão sinalizadas, ao longo deste texto.
O que importa é que, em 2019, presenciamos um cenário marcado por incertezas políticas, uma crise humanitária, o completo colapso da economia venezuelana e o agravamento das tensões referentes às relações deste país com seus países vizinhos e com os Estados Unidos, um importante parceiro comercial.
Sempre mais do mesmo: petróleo venezuelano x interesses norte-americanos
Para início de conversa, é preciso sinalizar que a Venezuela é um estado petroleiro e que isso faz toda diferença. Entre as décadas de 1920 e 1940, sua economia foi moldada em torno do petróleo, o que garantiria muitos dividendos diante da necessidade cada vez mais premente pelo ouro negro após a Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, isso determinava condições muito cruéis para outros setores produtivos, relegados a último plano. Padecendo da chamada doença holandesa, este país lucrava com a entrada dos petrodólares nos períodos de bonança na década de 1970, enquanto importava sabonete, ou outros produtos de primeira necessidade.
Mesmo nos períodos de maior tensão entre os governos Chávez e Uribe (2007-2008), a Venezuela dependia das importações destes produtos, incluindo alimentos da cesta básica, do país vizinho. De igual maneira, os EUA seguiram sendo seu principal parceiro comercial – mesmo na era Chávez. Um sinal claro de que o pragmatismo em torno da agenda comercial superou as ideologias.
O país andino tem as maiores reservas de petróleo comprovadas do mundo e que representam mais de dez vezes as reservas da maior economia do planeta. Para as demandas dos Estados Unidos, o petróleo venezuelano sempre foi a melhor alternativa, a mais rápida e mais segura. Hoje, isto não seria diferente.
A imagem de Chávez como um xeque latino-americano sentado em barris de petróleo é um tanto quanto equivocada por desconhecer a forte relação do Estado com o setor petrolífero na Venezuela. Trata-se, afinal, de uma sociedade com viés rent-seeking. Em distintos momentos e, com base em diversos marcos legais do setor de hidrocarbonetos, existiu uma tendência à nacionalização do setor ou, ao menos, a um maior controle do Estado sobre a principal riqueza do país. Isto foi intensificado em 1943 no governo de Medina Angarita.
Ainda cabe lembrar que a Venezuela é membro fundador da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), criada em 1960, e criou sua estatal, a PDVSA, em 1976. O marco estabelecido em 1999 e 2001, durante o governo Chávez, tão-somente acentuou esta tendência histórica.
No que tange às relações entre EUA e Venezuela, estas se estreitaram logo após a derrocada da ditadura Vicente Gómez (1935) e se intensificaram a partir da demanda de petróleo que os aliados tinham durante a segunda grande guerra. Desta relação tão próxima, o período mais tenso, até então, foi o malfadado golpe contra o governo Chávez em 2002, tendo-se em vista os fortes indícios de ingerência dos EUA.
O novo marco petroleiro estabelecido pelo governo Chávez em 2001 e as fortes críticas do presidente venezuelano às ações estadunidenses no Afeganistão, em retaliação ao 11 de Setembro, geraram grande desconforto e aceleraram as discussões entre a oposição e atores políticos que representavam os interesses dos EUA na Venezuela, no sentido de derrocar o governo bolivariano. O golpe se desenrolou em duas fases: na primeira delas, com o sequestro do presidente Chávez do Palácio Miraflores e, no ano seguinte, com a greve petroleira que tinha claramente o objetivo de derrubar o governo.
Legitimados pela população e pelo apoio das Forças Armadas, Chávez e seus aliados avançaram rumo à Revolução Bolivariana, consolidando o projeto chavista no poder. Dezessete anos após o envolvimento dos EUA com o golpe contra Chávez, a escalada do conflito atingiu um ponto crítico, e a expectativa de uma intervenção militar norte-americana, com apoio de países vizinhos, torna-se uma possibilidade real. Em 2002, não foi possível alcançar êxito naquela empreitada, e as tentativas frustradas serviram como um motor que impulsionou a popularidade e a legitimidade do governo que sairia vitorioso do referendo revogatório de mandato, solicitado pela oposição, em 2004.
A partir de então, o projeto chavista ganharia contornos de revolução, estimulando políticas públicas e projetos sociais com os dividendos do petróleo. Além disso, ganhava papel de destaque no cenário regional, no qual se colocou como um dos principais artífices de uma nova etapa integracionista latino-americana, baseada na cooperação Sul-Sul e na diplomacia dos povos. Também em nível regional, o petróleo foi elemento fundamental para iniciativas como a Petrocaribe, ou a ALBA, alavancadas pela Venezuela e pelos países aliados na região. Iniciativas estas que abalavam os interesses dos Estados Unidos na região andina.
Desenrolar da crise atual: discursos que justificam uma intervenção
No dia 12 de Abril, o golpe contra Chávez completou 17 anos. O presidente Nicolás Maduro afirma que não permitirá que esta história se repita. Chanceler durante o governo Chávez e depois candidato a vice em sua chapa eleitoral em 2012, Maduro assumiu interinamente a presidência do país, quando Chávez entrava na fase terminal de sua doença e não tinha condições de assumir e governar. Em novas eleições, Maduro se sagrou vitorioso em 2013, legitimado para dar continuidade à chamada Revolução Bolivariana.
O agravamento da crise econômica e a forte reação da oposição à sua posse já sinalizaram um período de extrema dificuldade. A entrada de capitais da Rússia e da China deram fôlego ao governo. No ano seguinte, a oposição intensificou suas ações por meio de manifestações promovidas pela direita, que ficaram conhecidas como guarimbas e deixaram dezenas de mortos e feridos.
Em 2018, novas eleições presidenciais e, mais uma vez, o candidato que representava o chavismo, sai vitorioso das urnas. Uma vez mais, sua vitória é contestada pela oposição. Mas a crise social, econômica e política chega a níveis alarmantes, e as relações com o governo Trump levam à maior escalada do conflito entre os dois países desde o golpe de 2002, sofrido por Chávez.
A dinâmica da atual crise venezuelana compreende uma dimensão econômica que que se torna o sustentáculo das questões políticas domésticas e internacionais diante da centralidade do petróleo. Além disso, assume uma dimensão interna bastante crítica desde a derrocada do regime puntufijista e a ascensão do chavismo: a falta de pactos políticos e moderação. Existe um esvaziamento do centro, posicionamentos muito rígidos da elite bolivariana e centralização política por parte do governo, ao mesmo tempo em que a oposição fora assumindo uma postura irresponsável, uma mescla de subserviência aos interesses estadunidenses e perfil golpista.
Esta crise se aprofundou quando, no início de 2019, o presidente da Assembleia Nacional se autoproclamou presidente interino da Venezuela. Um país com dois presidentes e cuja comunidade internacional, incluindo o Grupo de Lima e os Estados Unidos, apoia um político obscuro e que não passara pelo crivo eleitoral, reconhecendo-o como presidente do país com as maiores reservas de petróleo do mundo, demonstra estar vivendo sua pior crise.
Desde a ascensão política de Chávez, em 1999, a direita venezuelana criou diferentes personagens políticos, oportunidades distintas de superar o chavismo e tomar o poder. Assim, acompanhamos as peripécias de Pedro Carmona, Henrique Capriles, Leopoldo Lopez, Antonio Lendezma e, agora, Juan Guaidó. Politicamente, temos, por um lado, uma direita enfraquecida e dividida. Em 20 anos de chavismo no poder, não surgiram alternativas ao centro que pudessem angariar apoio de ex-chavistas e de um eleitorado descontente com o avançar da crise econômica. Por outro, vê-se uma situação de paralisia, com os dilemas de um país que não conseguiu mudar sua estrutura econômica, tornando-se menos dependente do petróleo e incentivando outros setores produtivos. A melhor saída não é algo que se delineia no cenário venezuelano de curto, ou de médio prazo.
Venezuela herdada por Chávez já estava dividida – e assim segue
A pobreza dos esquecidos e a bonança das elites que passam férias em Miami dividiram a Venezuela em duas – isso já há algumas décadas. No presente, a direita conseguiu chegar ao poder em diversos países da região, e isso contribuiu para o desequilíbrio geopolítico que hoje desfavorece o governo Maduro e assegura os interesses dos EUA na região. A direita ainda não encontrou, porém, a fórmula para superar a revolução, e dificilmente conseguirá, mesmo com uma possível derrocada de Maduro e uma intervenção mais incisiva dos Estados Unidos no país.
Com todos os desafios e problemas do chavismo, este foi o período em que as riquezas do petróleo foram traduzidas em políticas sociais que melhoraram a qualidade de vida da população. Ademais, no período em que Chávez esteve no poder, ocorreu um despertar da política, da comunidade, do patriotismo por parte da população mais vulnerável. A cultura política venezuelana do século XXl não pode ser comparada à cultura política dos anos 1950, quando o American way of life se tornou um modelo para as elites e para as classes médias. Um Pacto, nos moldes daquele que originou o puntufijismo, não seria algo possível entre as elites venezuelanas neste momento. Os atores e o jogo de forças é completamente distinto.
Quando vislumbramos o noticiário com declarações do mandatário americano, Donald Trump, afirmando que todas as opções estão à mesa, isto tanto pode ser lido como um sinal de que a intervenção militar é mesmo a primeira opção, como podemos interpretar que, nestas duas décadas, o império e seu porta-voz, a direita venezuelana, vêm-se utilizando de várias cartadas. Basta prestar atenção. A melhor alternativa é a desestabilização, em vez de uma intervenção direta que cause desgastes desnecessários, ou que possa surtir um efeito contrário ao esperado. Isso já vem sendo feito há anos.
O discurso midiático que propaga há décadas o fato de a Venezuela viver sob uma ditadura sanguinária foi a peça central do golpe de 2002 e da propaganda internacional contra o governo Maduro nos últimos anos. Este foi um dos instrumentos que contribuíram para este desfecho dramático. O paro petroleiro (greve) na estatal PDVSA, em 2003, e a queda vertiginosa dos preços do barril de petróleo, nos últimos anos, também tiveram seu papel de destaque, sendo um pilar central desta crise de que hoje se tira proveito para a derrubada do governo.
Também temos que o apoio contumaz dos Estados Unidos e da direita de diversos países da região se tornou um ponto de apoio da oposição e de sua fábrica de líderes oposicionistas ávidos com a conquista do poder na Venezuela. Por fim, a crise de desabastecimento de produtos básicos nos supermercados e os apagões de energia elétrica que levaram o país ao caos e deram o contorno de crise humanitária à crise venezuelana. Uma das cartadas finais dos EUA foi, justamente, o aumento das tensões nas áreas de fronteira, em especial com o Brasil, quando da suposta tentativa de entrega de ajuda humanitária que visava a testar a lealdade do Exército bolivariano a seu presidente.
A Venezuela esteve sob observação neste primeiro trimestre de 2019. As experiências que foram sendo realizadas estão sendo acompanhadas. Todas as opções já estiveram à mesa nestes anos. O efeito esperado pelos governos de direita da região e, especialmente, dos EUA, é a de que o governo chavista caia de “Maduro”.
* Renata Peixoto de Oliveira é doutora em Ciência Política pelo DCP-UFMG e professora do curso de Relações Internacionais e Integração e dos programas PPG-ICAL e PPG-PPD da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA). Membro do INCT-INEU. Líder do grupo CESPI-América do Sul e membro do grupo DALC-ALACIP.