Guerra fria tecnológica arrasta aliados contra a China
por Solange Reis
A guerra comercial passou a outro nível com a pressão do governo dos Estados Unidos contra equipamentos 5G produzidos na China. Desde janeiro, a Casa Branca vem adotando “cenouras e porretes” para convencer os aliados a boicotar a empresa Huawei, líder chinesa no ramo de telecomunicação e de produtos para internet.
A forma de convencimento é por chantagem e estímulo. À Polônia, por exemplo, Trump teria dito estar disposto a atender ao pedido do governo polonês para construir a base militar “Forte Trump” no país. Segundo o noticiário internacional, a Polônia teria concordado em boicotar a Huawei e decidido comprar equipamentos Nokia e Ericsson.
Jeremy Hunt, primeiro-ministro britânico, esteve recentemente em Washington para discutir a questão do 5G, voltando para casa com a difícil tarefa de pesar as relações estratégicas e os interesses tecnológico-comerciais de seu país. A British Telecom havia fechado um acordo com a Huawei no ano passado.
A Alemanha, que funciona como um hub da gigantesca rede de fibra ótica europeia, pretende comprar conectores da Huawei, mas o governo Trump alega que os equipamentos não poderão ser aceitos pela OTAN por colocar em risco a segurança coletiva.
Dois fiéis aliados dos Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia, foram os únicos até agora a banir a compra de dispositivos 5G chineses. O governo chinês lamentou a decisão, dizendo que os principais perdedores serão os consumidores nos dois países. A Austrália, por exemplo, não possui padrão de país desenvolvido quando se trata de velocidade de internet, ocupando um distante 55º lugar no ranking mundial.
Por enquanto, a França decidiu que não irá aderir ao boicote, mas se comprometeu a redobrar o controle sobre os equipamentos da Huawei.
Curiosamente, os Estados Unidos ainda não bloquearam a própria compra de equipamentos 5G chineses. Há meses, o governo vem preparando uma ordem executiva para proibir que empresas privadas e o setor público adquiram dispositivos chineses para redes críticas. A medida deverá ser lançada nas próximos semanas, sendo esperada alguma resistência, principalmente no Vale do Silício.
Impedir que os chineses espionem ou provoquem a disrupção das redes é a alegação para o controle do Estado sobre a iniciativa privada nos Estados Unidos. O país acusa a China de instalar “back door”, ou porta dos fundos, nos equipamentos exportados. Essa ferramenta seria usada para captar dados ou manipular as redes estrangeiras.
A percepção de ameaça em relação à Huawei não é exclusiva do governo Trump. Há anos, republicanos, democratas e o alto escalão militar falam abertamente dos riscos vindos da China. Em 2014, documentos divulgados por Edward Snowden revelaram que a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA) mantinham um programa clandestino sobre a Huawei, incluindo invasão da rede da empresa. A NSA alega ter encontrado evidências de práticas de “back door”, o que foi negado pela China.
Por trás da recente iniciativa norte-americana está o trabalho da agência de inteligência anglo-saxônica, Five Eyes, formada por Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Desde meados do ano passado, o grupo vem fazendo discussões e diretrizes para boicotar o domínio da China em 5G.
Embora integrem a Five Eyes, os governos do Canadá e do Reino Unido relutam em atender às diretrizes da agência e dos Estados Unidos por razões comerciais. Afinal, além de dominar o 5G, os chineses oferecem produtos muito mais baratos.
O governo alemão ainda não aceitou banir a Huawei, mas disse que fará uma investigação sobre os riscos. A “cenoura” neste caso é a possibilidade de a Alemanha vir a integrar a Five Eyes, um antigo desejo do serviço de inteligência alemão. Empresários no país discordam do boicote e alegam que, sem a tecnologia da Huawei, a Alemanha ficará para trás na corrida do 5G. Produtos concorrentes no Ocidente são mais caros e menos padronizados.
A tecnologia 5G é considerada revolucionária no sentido de que sua altíssima velocidade – de 50 a 100 vezes maior do que a 4G – dará vantagem militar aos países que a dominarem. Sua aplicação não significa apenas navegação mais rápida. Ela capacitará sensores, veículos autônomos e robôs, permitindo um nível de automação muito avançado para a sociedade em geral, incluindo indústrias, comércio, indivíduos e setores militares.
A expansão do 5G é uma questão estratégica para a China, que pretende, através de empresas como a Huawei e a ZTE, cabear o mundo inteiro, especialmente os mercados europeus, asiáticos e africanos.
A Huawei foi criada em 1987 por um engenheiro militar chinês, Ren Zhengfei, tornando-se a maior produtora mundial de equipamentos eletrônicos de telecomunicação. Hoje, com produtos de alta adaptabilidade, possui acordos com 80% das telecoms no mundo.
Em 2018, a companhia investiu cerca de US$ 15 bilhões. Possui centros de pesquisa em mais de 21 países, incluindo Reino Unido e Canadá, mais de 170 mil funcionários e uma receita de quase 100 bilhões anuais. No ano passado, superou a Apple em venda de smartphones, passando ao segundo lugar mundial, atrás da Samsung.
A pedido dos Estados Unidos, o Canadá prendeu, em dezembro, a CFO da Huawei, Meng Wanzhou, filha de Ren, sob acusação de fraude bancária para burlar as sanções ao Irã entre 2009 e 2014. No dia 29, a justiça norte-americana acusou formalmente a Huawei e Meng, que está em prisão domiciliar em Vancouver. Foram 23 acusações, incluindo fraude, lavagem de dinheiro e roubo de segredos industriais.
Após Meng ser detida, a China respondeu com a prisão de dois empresários canadenses e a condenação à morte de um terceiro cidadão do Canadá, acusado de tráfico de drogas. Caso Meng seja extraditada para os Estados Unidos, a tensão diplomática irá crescer para níveis arriscados.
Basicamente, a tecnologia 5G funciona como uma rede de roteadores e conectores estruturados em diversas camadas de softwares. Os Estados Unidos consideram que, ao comprar dispositivos 5G da China, os países colocam em risco a segurança nacional e do mundo inteiro, dada a interconexão atual.
A questão, no entanto, vai muito além da concorrência tecnológica setorial ou de proteção cibernética. Tampouco tem só a ver com desequilíbrio na balança comercial ou comércio justo. Trata-se de uma disputa de gigantes para saber quem assume (ou mantém) a liderança industrial e militar em um futuro não tão distante.