Um Rio de Janeiro aqui, um Tennessee ali
A estrangeirização de terras no Brasil e nos EUA
por Thiago Lima
Em matéria publicada no dia 17 de dezembro, o Estadão apontou que estrangeiros detêm a propriedade de terras rurais que equivalem, em conjunto, ao estado do Rio de Janeiro. O objetivo da matéria era averiguar se havia fundamento no temor de Jair Bolsonaro de que a China estaria ‘comprando o Brasil rural’ e que isso colocava em risco ‘a segurança alimentar do País’. A reportagem deixa claro que a China não é a maior detentora de terras brasileiras e que o Brasil não corre risco de desabastecimento por conta da atuação dos estrangeiros. De fato, sabemos que cerca de 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros vêm da agricultura familiar nacional, e que os grandes produtores miram, em geral, monocultura de exportação, sejam eles brasileiros e/ou estrangeiros. E não espanta ver que os principais compradores de terra no Brasil são, em geral, oriundos de países europeus, Japão e Estados Unidos. A China aparece em 9º lugar num ranking, mas também aparecem vizinhos da América do Sul.
Dito isso, o objetivo deste artigo não é polemizar a reportagem, cujo objeto tem sido alvo de amplo debate acadêmico[i]. É apontar que a preocupação de Bolsonaro segue um tema da agenda social nos EUA que não tem ganhado atenção na mídia, nem na academia: a estrangeirização das terras estadunidenses. Se os estrangeiros detêm um Rio de Janeiro aqui, lá eles possuem um Tennessee. Lá isso não é uma questão nacional, embora a atuação da China no campo agroalimentar ganhe destaque eventualmente como um risco à segurança nacional. Sobre isso, o presente texto aponta alguns elementos de artigo acadêmico que será publicado pela revista Tempo do Mundo, do IPEA[ii].
Brasil e Estados Unidos são atores de destaque na atual corrida global por terras. As empresas sediadas nestes países estão entre as maiores adquiridoras (compra, arrendamento ou concessão) mundiais de terras no exterior neste século, segundo dados do portal Land Matrix. Enquanto os compradores dos EUA lideram com cerca de 8, 2 milhões de hectares adquiridos desde 2000, os do Brasil figuram na quinta posição, com cerca de 2,4 milhões hectares no mesmo período. Entre eles estão Malásia, com 4,1, Cingapura, com 3,3 e China, com 3,1 milhões de hectares cada.
Por outro lado, o Brasil aparece na lista de países que mais têm suas terras adquiridas por estrangeiros (inclusive em parceria com nacionais) totalizando aproximadamente 3,1 milhões de hectares desde 2000, segundo o Land Matrix. Como o referido Portal não computa esses dados para os EUA, utilizaremos o reportado pelo Departamento de Agricultura (2015): cerca de 4,9 milhões de hectares foram comprados por estrangeiros entre 2004 e 2015 nos EUA.
Os dados são imprecisos tanto nos EUA quanto no Brasil. Pesquisas recentes apontam que não é possível saber ao certo o volume de propriedades agrícolas em propriedade de estrangeiros, pois os registros de transações fundiárias do INCRA não fornecem dados consistentes. O mesmo ocorre com a contabilidade oficial do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.
Por exemplo, não identificamos dados isolados sobre a origem nacional dos proprietários estrangeiros de terras agrícolas nos EUA. O melhor dado que encontramos agrega ‘terras em geral’. Nesta perspectiva, em 2015, o Canadá era a maior origem dos investimentos com cerca de 25% do total. Na sequência estavam Países Baixos (18%), Alemanha (7%), Reino Unido (6%) e Portugal (5%). As outras nacionalidades detinham aproximadamente de 39% das terras reportadas.
Com relação ao uso da terra, o USDA apontou que 52% das terras adquiridas por estrangeiros eram para fins de florestamento e produção de madeira, 26% para pastagem, 20% ao cultivo agrícola e cerca de 2% para o cultivo não agrícola. Fica evidente que o setor de madeira, papel e celulose lidera a utilização da terra. Observadores apontam, nesse sentido, que nove dos principais proprietários estrangeiros de terras agrícolas dos Estados Unidos atuam neste setor.
A corrida internacional por terras agrícolas nos Estados Unidos se intensificou, como em todas as partes, em decorrência da quádrupla crise global da primeira década do século XXI. Lá, como cá, os pequenos produtores da agricultura familiar contestam esse movimento. Os investidores estrangeiros buscam terras para produzir e exportar, mas o objetivo financeiro de lucrar com operações imobiliárias também é um importante impulso por parte de empresas que nada têm a ver com a agricultura, como os famigerados fundos de pensão. Esses investimentos retroalimentam a elevação do preço das terras e dificultam o acesso a elas por parte dos pequenos produtores estadunidenses, especialmente para os mais jovens, conforme denuncia a National Family Farme Coalition.
Por outro lado, as aquisições estrangeiras também se voltam para grandes empresas do setor agroalimentar. O caso da Smithfield Company é o mais importante. Esta empresa, que era a maior produtora de suínos do mundo, passou a ser propriedade dos chineses em 2013, quando foi comprada pela Shuanghui, posteriormente denominada WH Group Limited, pelo valor de US$ 4,7 bilhões. Nos EUA, a China controla cerca de 400 fazendas, 33 fábricas de processamento de alimentos e cerca de um em cada quatro suínos dos Estados Unidos.
Como resultado das pressões acumuladas, a senadora democrata do Estado de Michigan, Debie Stabenow, e o senador republicano, Chuck Grassley, de Iowa apresentaram o projeto de lei “Food Security is National Security Act of 2017”. Em linhas gerais, os legisladores argumentam que o controle de fazendas por entidades ou atores estrangeiros pode afetar a segurança nacional. Por isso, o projeto prevê garantir assento permanente aos Secretários de Agricultura e de Saúde e Serviços Humanos no Comitê sobre Investimentos Estrangeiros nos Estados Unidos, com o objetivo de analisar “os efeitos potenciais da transação proposta ou pendente sobre a segurança dos sistemas de alimentação e agricultura dos Estados Unidos, incluindo quaisquer efeitos sobre a disponibilidade, o acesso ou a segurança e a qualidade dos alimentos” (tradução livre). Na prática, a lei exigiria que transações de grandes terras agrícolas ou de empresas agroalimentares dependessem de autorização do governo. Cabe observar se Donald Trump ou o Congresso moverão esse projeto de lei adiante, mas isso não parece provável. Por outro lado, é preciso destacar que os estados da federação também possuem competência para regular o mercado fundiário. Em Iowa, por exemplo, a venda de terras para estrangeiros é proibida.
A julgar por esse projeto de lei, parece que a principal preocupação nos EUA é a inocuidade do sistema agroalimentar, no sentido de food safety, e não no de food security, que envolve disponibilidade de alimentos, como é o suposto temor de Bolsonaro no Brasil. Nos EUA, esse argumento equivale a reconhecer que a legislação nacional e os serviços de monitoramento não são suficientes para garantir alimentos inócuos. Nosso problema também não é abastecimento, no sentido da quantidade, mas sim a qualidade dos alimentos. Não por que alguma potência estrangeira ou grupo terrorista pode querer envenenar a população, mas porque as próprias leis nacionais não são rigorosas o suficiente com relação aos agrotóxicos já utilizados em nosso território. Nosso problema é também a dignificação das condições de vida daqueles/as que produzem os alimentos que consumimos. Neste sentido, no Brasil, a estrangeirização tem aumentado a violência no campo e acirrado a degradação do meio ambiente. Se a preocupação de Bolsonaro for realmente a alimentação dos brasileiros, sua prioridade deveria ser a promoção da reforma agrária com redistribuição de terra e o incentivo à agroecologia.
[i] Ver, por exemplo, o dossiê “Aquisição transnacional de terras (Land Grabbing)” organizado por Alexandre C. C. Leite com este autor, publicado em 2017 na revista Estudos Internacionais da PUC-Minas.
[ii] Todas as referências que embasam este texto serão publicadas junto com o artigo acadêmico definitivo, escrito em parceria com Erbenia Lourenço (FomeRI/PGPCI/UFPB).