Governo Trump – Primeiro Tempo
Acadêmicos e pesquisadores do INCT-INEU debatem políticas e discursos do governo Trump, as eleições de 2018 e a hegemonia dos Estados Unidos hoje no mundo…
por Tatiana Carlotti
Completando dez anos de existência, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), que reúne mais de 70 acadêmicos e especialistas sobre os Estados Unidos, promoveu o seminário Governo Trump – Primeiro Tempo: as eleições de 2018 e perspectivas, em 28 de novembro, na capital paulista.
Ao longo do seminário, os pesquisadores do INCT-INEU debateram a eleição de Trump; políticas e discursos deste primeiro período de governo; questões relacionadas à população, segurança e defesa; e o resultado das chamadas midterms.
A primeira mesa, “Eleição de Trump: Crise e Transformação da Política Americana”, contou com a participação de Reginaldo Moraes (Unicamp), Débora Prado (UFU) e Sebastião Velasco (INCT-INEU).
Reginaldo Moraes iniciou sua apresentação derrubando os mitos em torno da vitória de Trump, por exemplo, o mito de que houve um “tsunami da direita” e uma migração dos votos da esquerda para a direita, em especial, da classe trabalhadora branca. “Há muitos exageros nesta interpretação”, destacou, ao lembrar que o percentual de votos do multimilionário foi o menor entre os presidentes republicanos nos últimos 40 anos.
Moraes também frisou a força das abstenções e do discurso da negação da política nas eleições de 2016. Em sua avaliação, é impossível compreender a vitória de Trump sem estudar a forma como as eleições são organizadas nos Estados Unidos. Ele recomendou, inclusive, muito cuidado com a importância dada aos mecanismos de propagação de notícias, sensibilização e indução de votos associados aos métodos de Steve Bannon.
“A moldagem das percepções no longo prazo, as transformações lentas da opinião pública e o forte papel dos mecanismos de entretenimento e presenciais, como o papel das igrejas evangélicas, construídas ao longo de 50 anos, precisam ser melhor analisados” e, combinados aos “efeitos sociais e ideológicos da desagregação econômica a longo prazo”.
Débora Prado, por sua vez, apresentou os resultados preliminares de sua pesquisa sobre a resistência dos estados norte-americanos às políticas de Trump, analisando o ativismo estadual e o cenário de desagregação do ponto de vista do federalismo norte-americano. “O federalismo norte-americano é caracterizado não apenas por um federalismo cooperativo na essência, mas também por um federalismo dual que se intensifica em movimentos de polarização”, explicou.
Contrariamente ao que diz a literatura, a pesquisa vem demonstrando que o federalismo dual não foi superado. “No senso comum existe a percepção de que os estados têm uma relativa autonomia, defendida desde a fundação dos Estados Unidos (…), mas que a nação é unificada. Esse cenário é muito mais complexo do que se imagina e esses tensionamentos são muito mais constantes”, afirmou.
Citando vários exemplos da reação contra as políticas de Trump de estados como São Francisco, Miami, Los Angeles e Nova York, Débora analisou o caso da Califórnia, a sexta maior economia dos Estados Unidos que, por conta de várias leis de proteção aos imigrantes, transformou-se no primeiro estado-santuário norte-americano, com medidas de forte repercussão no cenário doméstico.
Cenário de polarização
Esse cenário de polarização interna foi aprofundado por Sebastião Velasco. Lembrando que “a divisão crescente e o distanciamento entre campos políticos, nitidamente conformados na história americana, não é algo dos anos 2000”, ele apresentou uma contextualização histórica sobre as tensões que marcam a polarização da sociedade norte-americana.
Na década de 1960, explicou, houve a vitória e o predomínio de uma direita capaz de alijar do comando do Partido Republicano, um setor com forte ancoragem na burguesia americana da Costa Leste. Sem contestações, essa nova direita consolidou sua plataforma conservadora, afirmada com Nixon (1969-1974) e consagrada com Reagan (1981-1989).
Com personagens e protagonistas na política e no campo intelectual, essa direita atuou intensamente na batalha de ideias de política, integrando movimentos contraditórios como a direita religiosa, o fundamentalismo de mercado com política agressiva, os neoconservadores. No entanto, ela foi incapaz de contemplar toda a direita norte-americana.
Como explica Velasco, essa aliança “deixou de lado um veio marcadamente nativista e racista, combinando liberalismo e percepção exclusivista da identidade nacional”, traduzido em uma direita radical que, desde os anos 1960 pelo menos, permaneceu deslocada e afastada pelos protagonistas desse processo de articulação do movimento conservador”.
Com a crise de 2008, aponta, “a desestabilização abriu espaço para esses grupos que foram elementos importantes na coalização de Trump”. Destacando que “a busca pelo extremo não é simétrica” e muito mais característica do campo republicano, ele apontou a necessidade de se olhar de forma mais aprofundada a hegemonia do establishment do Partido Republicado, bombardeada pela crise de 2008.
“Não dá para entender Trump sem olhar essa conjuntura e, também, o papel decisivo na desestabilização das ações políticas, no campo republicano, do movimento Tea Party”, apontou.
Comércio Exterior
Na segunda mesa do seminário, os “Discursos e Políticas do governo Trump” foram analisados pelos acadêmicos e pesquisadores Filipe Mendonça (UFU), Neusa Bojikian (INCT-INEU), Rossana Reis (USP) e Celly Cook (CEDEC).
Debruçando-se sobre o funcionamento dos filtros institucionais da política comercial norte-americana, Filipe Mendonça frisou o quanto Trump é interessante “para entendermos a validade do argumento histórico sobre a força das instituições norte-americanas”. Segundo Mendonça, “o sistema político comercial norte-americano possui alguns filtros históricos que funcionaram, até agora, muito bem no sentido de conter pressões protecionistas de inúmeros setores da sociedade norte-americana”.
A ideia da pesquisa apresentada por Mendonça – e desenvolvida juntamente com os pesquisadores Thiago Lima (UFPB), Laís Forti Thomaz (UFG) e Tullo Vigevani (INCT-INEU) – é investigar se esses filtros institucionais estão funcionando como “diques de contenção” frente ao “tsunami protecionista, neomercantilista e antiglobalista” da política econômica que Trump vem aplicando no âmbito comercial.
O estudo também analisa a hipótese do American first, but no alone. “Não se trata de uma América isolada ou isolacionista, mas de uma América que se coloca em outro patamar dentro das relações economias internacionais e que depende dos demais países”, daí a ideia do but no alone, investigando o papel da China e da Europa em relação às atitudes revisionistas de Trump.
No âmbito da política comercial, Neusa Bojikian destrinchou o acordo U.S.-Mexico-Canada Agreement (USMCA), também chamado de “novo NAFTA”, cuja aprovação será submetida ao Congresso americano no próximo ano.
Analisando várias áreas contempladas pelo acordo, Neusa focou em setores estratégicos como o financeiro, o de telecomunicações e o comércio digital, destacando os principais pontos de tensionamento entre Estados Unidos, México e Canadá. Em sua avaliação, o USMCA, também chamado de “novo NAFTA”, reflete novos padrões de regras comerciais que serão adotados nos acordos comerciais internacionais, especialmente, aqueles dos quais os EUA farão parte.
“Ele não é totalmente diferente do NAFTA, mas traz alterações importantes, criando um modelo de acordo entre países desenvolvidos e outro para países em desenvolvimento”, destaca.
Discursos e Imigração
A reação da sociedade civil ante as políticas de Trump e os discursos que visam contê-la também foram abordados durante o seminário.
Celly Cook apresentou os resultados preliminares de sua pesquisa voltada ao mapeamento e análise das mobilizações por direitos civis durante o governo Trump. Analisando todo tipo de material relacionado a direitos civis publicado em dois grandes jornais – The Wall Street Journal (mais conservador) e The New York Times (mais progressista) – ela vem analisando discursos e a atmosfera em que essas mobilizações estão ocorrendo.
Em sua avaliação, “a crescente onda conservadora, de contra-mobilização, que encontra resguardo na figura de Trump” vem se utilizando de “direitos e liberdades do legalismo clássico para se opor, através de leis, decisões judiciais e ações do Executivo, a outros direitos e políticas específicas”. Utilizam, por exemplo, a liberdade religiosa para se opor a direitos da população LGBT ou a direitos reprodutivos das mulheres; a liberdade de expressão para se opor ao combate ao discurso de ódio e discriminatório.
“Trata-se de um arranjo, uma engenharia específica para defender liberdades clássicas, mas com objetivos conservadores, na contramão das mobilizações por direitos civis”, complementa.
A política de imigração do governo Trump foi outro tema fortemente debatido durante o seminário. Ao lembrar que a discussão da imigração tem papel central na construção da identidade nacional, Rossana Reis ressaltou que a noção de “país aberto” é “um componente mítico e ideológico dos Estados Unidos, apesar de o país nunca ter sido totalmente aberto”.
Embora a imigração, grosso modo, marque a divisão entre republicanos e democratas, ela nunca chegou a ser um tema relevante para as eleições presidenciais nos Estados Unidos. “A grande novidade de Trump não foi em termos de propostas, que não são tão disruptivas como parecem, mas trazer a questão da imigração para o centro do debate político, tendo no Muro, um grande símbolo, para a surpresa de todos”, apontou.
“O que aconteceu com a sociedade norte-americana que permitiu que esse discurso, até então marginal, se transformasse em um discurso capaz de mobilizar corações?” questionou. Vendo nisso mais um sintoma do que uma causa, Rossana avalia que esse movimento anti-imigração não chegou ao limite. Ele terá continuidade, apesar de seus malefícios notórios, inclusive, economicamente.
“Trump não vai investir seu capital político na mudança da política migratória, todas ações nos últimos dois anos foram tomadas através de medidas administrativas”, alertou.
População, Segurança e Defesa
Na segunda parte do seminário, a questão da hegemonia norte-americana e os conflitos geopolíticos foram debatidos pelos pesquisadores e acadêmicos Luis Fernando Ayerbe (UNESP), Marco Cepik (UFRGS) e Williams Gonçalves (UERJ) na mesa “População, Segurança e Defesa”.
“A América Central é uma área de influência direta dos Estados Unidos”, destacou Luis Fernando Ayerbe. Partindo da era Reagan, ele destacou três momentos da política norte-americana para a América Central e América Latina, como um todo. O primeiro, durante Reagan, caracterizado pelo combate ao comunismo; o segundo, pós-Guerra Fria, de democratização e reformas liberais, em particular, em torno das discussões da ALCA e do livre comércio; e o terceiro, após o 11 de Setembro, quando se observa uma diminuição relevância da América Latina na política externa dos Estados Unidos.
Com Obama, destaca Ayerbe, houve um período de coexistência pacífica, marcado pela reaproximação com Cuba e, no caso da Venezuela, pela visão de que aquele país não se constituía uma ameaça aos Estados Unidos. Essa realidade, porém, muda com a eleição de Trump.
Quando se dá o conflito interno na Nicarágua, os Estados Unidos mudam radicalmente sua postura. “Obama nunca entrou no mérito do sistema político nicaraguense, nem da natureza ou características do governo Ortega (…) Trump aplica sanções e estabelece critérios de financiamento para a oposição. Não é uma preocupação com a democracia ou os direitos humanos da Nicarágua, mas uma mudança de perspectiva da visão dos Estados Unidos”, aponta.
Segundo Ayerbe, a leitura do conflito pelo governo Trump, embalada por uma espécie de “revanche reaganista”, foi a de ter encontrado a oportunidade histórica de eliminar o campo adversário, no caso, a “troika da tirania” (Cuba, Nicarágua e Venezuela). “A partir deste ano, com a influência de John Bolton, a mudança de regime passa a ser colocada, mas não com invasão militar, nada disso”.
“Agora, quando acontece um conflito interno em um país adversário, você passa a financiar a oposição, estabelece sanções e mobiliza governos aliados, transformando um problema interno em uma questão de segurança internacional, criando justificativas para uma postura mais intervencionista. Essa é a mudança e, novamente, a América Central é o palco em que os testes são feitos”, complementa.
Marcos Cepik, por sua vez, abordou a questão disputa de hegemonias entre Estados Unidos e China na América Latina. Com uma população de 645 milhões de pessoas e grande diversidade, a América Latina “é um território de disputa estratégica entre os dois países” e enquanto “os norte-americanos oferecem economia e segurança fortemente militarizada aos países latino-americanos, a China traz um outro tipo de oferta econômica e diplomática à região”.
Avaliando várias manifestações de alinhamento com Trump, manifestas pelo governo Bolsonaro, Cepik destacou o objetivo de “destroçar qualquer iniciativa de multilateralismo regional”. No caso da América Latina, ele ressaltou o predomínio de “uma política externa de aquiescência com os Estados Unidos”.
A China, por sua vez, vem oferecendo à região “um conjunto de instrumentos de política externa muito robusto e estruturado no momento da onda rosa [de governos progressistas], em que o eixo era a cooperação Sul-Sul e o discurso era de neutralizar a hegemonia e voltar a ter um caminho para a América”.
Em sua avaliação, a disputa da direção do sistema internacional está vinculada a resolver problemas sistêmicos. “O problema sistêmico do nosso tempo é a redução do hiato da desigualdade entre os 10% que tem chance de vida decente e a grande massa de 7 bilhões de pessoas que teremos de administrar no planeta. Se a China tiver uma solução para isso, inclusiva do ponto de vida do trabalho e das chances de vida, ela disputa a direção do Terceiro Mundo”, avaliou.
Grande estratégia
Trabalhando com o conceito de “grande estratégia” e o fato dela exprimir o consenso entre as elites de um país, Williams Gonçalves trouxe o contexto da concepção dos Estados Unidos como país “ordenador do meio internacional”. A ideia de que “os Estados Unidos são mais importantes para o mundo do que o mundo é para os Estados Unidos” e que a ocorrência de uma Terceira Guerra Mundial “dependeria da disposição norte-americana de exercer o papel de polícia do mundo”.
Segundo Gonçalves, esse consenso, forjado no pós-Guerra, foi exprimido a partir da doutrina de contenção do comunismo no mundo. “A doutrina da contenção foi trabalhada de tal forma que a camada dirigente norte-americana ganhou um verdadeiro cheque em branco. Em nome da segurança, adquiriu um enorme poder e forjou um complexo industrial militar que, como denunciou Eisenhower em sua saída, mandava mais que o próprio presidente”.
Com o fim do bloco soviético e da URSS, porém, o combate ao comunismo perdeu sua razão de ser, criando embaraços para os formuladores da política norte-americana. Deste então, os Estados Unidos “buscam uma grande estratégia e um grande consenso”. A questão, destacou, é que nem a globalização (Bill Clinton), nem a guerra contra o terror (Bush) conseguiram unir as elites norte-americanas em torno de um consenso como a teoria da contenção foi capaz de fazer.
“Isso se repetiu com Obama que procurou assegurar a hegemonia dos Estados Unidos no mundo com uma política universalista e multilateralista, mas talvez já fosse tarde demais”, ressaltou. Em sua avaliação, o governo Trump busca recuperar, justamente, a grande estratégia com a política do América First, ou seja, os interesses dos Estados Unidos em primeiro lugar; na prática, “uma confissão da perda de hegemonia norte-americana” e de que “os Estados Unidos precisam recuperar e não perder poder e recursos”.
Midterms
O seminário Governo Trump – Primeiro Tempo teve como mesa de encerramento, antes do debate final, uma avaliação geral sobre as midterms deste ano, com análises dos pesquisadores Rafael Ioris (Universidade de Denver) e Tatiana Teixeira (INCT-INEU). Ambos foram unânimes: embora não haja um vencedor majoritário nessas eleições, ocorreram vitórias simbólicas e muito significativas.
Segundo Ioris, as eleições mostram um país profundamente polarizado. No Senado, o poder continua nas mãos dos republicanos e, mesmo com a vitória democrata na Câmara, foi notório o contraste entre os votos rural e urbano, em regiões de ponta e regiões ligadas a indústrias velhas e poluentes, entre a população branca e não branca.
Em sua avaliação, a vitória democrata na Câmara, superior à obtida pelo partido em 1974, após o escândalo do Watergate, abre uma questão importante para o Partido Democrata: “como essa maioria irá se comportar daqui por diante. Vão controlar Trump ou negociar com ele?”. Uma postura, avalia, que será interpretada de formas diferente pelo eleitorado, sobretudo, o progressista que demanda uma postura de enfrentamento contra Trump.
Tatiana Teixeira, por sua vez, destacou a diversidade dos candidatos eleitos, apontando o imenso impacto disso na política doméstica, em especial, para a imigração. Apesar da vantagem dos republicanos, com maior número de governadores e maioria no Senado, “as midterms permitiram uma renovação da Câmara dos Representantes, agora, com perfil mais diverso em termos de faixa etária, de raça e/ou etnia, de agendas e de gênero, a mais feminina da história”.
Segundo a pesquisadora, “essas vitórias foram se sucedendo em diferentes estados, mesmo em eleitorados totalmente fechados para os democratas”. Isso se deve, em grande parte, “à presença de candidatos mais interessantes, que começam a dar conta de um perfil de sociedade que passa a ter consciência do seu poder enquanto cidadão americano”.
Em sua avaliação, as midterms evidenciam um flanco aberto no Partido Republicano, “o de não perceber a mudança democrática do eleitorado ou de percebê-la e não conseguir reagir contra ela”.
As discussões apresentadas pelos acadêmicos e pesquisadores do INCT-INEU durante o seminário serão, agora, transformadas em artigos que comporão um dossiê a ser lançado no próximo ano.