EUA ameaçam romper pacto nuclear da Guerra Fria
Nada é tão ruim que não possa piorar: a Rússia pode ser mera desculpa para Washington aumentar a capacidade militar contra a China.
por Solange Reis
O governo Trump se prepara para mais um desembarque de outro tratado histórico. Na terça-feira (6), o secretário de Estado, Mike Pompeo, ameaçou retirar os Estados Unidos do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês).
Assinado com a Rússia na chamada Segunda Guerra Fria, em 1987, o INF proíbe ambos os países de desenvolver e instalar mísseis de cruzeiros terrestres com alcance entre 310 e 3.400 milhas. Desde a assinatura, cerca de 2.700 mísseis russos e americanos foram eliminados.
Saída unilateral
Pompeo e outros representantes do governo Trump consideram que a Rússia vem violando o acordo desde os anos de Barack Obama. Por essa razão, decidiram dar um ultimato ao Kremlin. Caso Moscou não entre em conformidade, os Estados Unidos sairão do INF dentro de 60 dias. Os termos contratuais determinam que as partes devem dar um aviso prévio de seis meses antes de se retirar, prazo este que começaria a contar a partir de fevereiro. Assim, o tratado estaria, efetivamente, morto em agosto de 2019.
A decisão foi comunicada pelo secretário de Estado, durante uma entrevista após encontro da OTAN, em Bruxelas. Porém, essa não foi a primeira ameaça feita pela equipe Trump. Em outubro, o próprio presidente revelou que pretendia sair unilateralmente do tratado devido a supostas violações cometidas pelos russos.
Em uma nota seguida à fala de Pompeo, a OTAN divulgou que o novo sistema balístico da Rússia, o 9M729, chamado de SSC-X-8 pela OTAN, fere o acordo e coloca em risco a segurança europeia. “Acreditamos fortemente na descoberta dos Estados Unidos sobre a Rússia se encontrar em estado de violação material de suas obrigações perante o INF”, disseram ministros de Relações Exteriores da aliança transatlântica.
O secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, concorda, mas tentou amenizar dizendo que não quer uma nova Guerra Fria, razão pela qual os aliados continuarão trabalhando para melhorar o relacionamento com a Rússia.
Nova corrida armamentista
O governo russo nega as acusações e rebate: os Estados Unidos seriam os reais violadores, com suas baterias de defesa antimísseis Aegis na Romênia e outras em construção na Polônia.
Na quarta-feira (7), o presidente Vladimir Putin respondeu à declaração de Pompeo com outra ameaça. “Muitos outros países – cerca de uma dúzia deles, provavelmente – produzem essas armas, e a Rússia e os Estados Unidos se limitaram bilateralmente. Agora, aparentemente, nossos parceiros americanos acreditam que a situação mudou tanto que os Estados Unidos deveriam ter essa arma. Qual é a resposta do nosso lado? Bem, é simples: também faremos isso”, disse ele a repórteres.
O impasse pode levar a uma nova corrida armamentista e ao fim de outros tratados sobre armas, como o New START.
Segundo um memorando vazado para o Washington Post, o conselheiro de segurança nacional, John Bolton, ordenou ao Pentágono que desenvolva e instale mísseis intermediários rapidamente. Tecnicamente falando, não é tão simples. No longo prazo, seria um retrocesso no controle de armas. Bolton é considerado um grande crítico do INF e do New START.
O momento é especialmente delicado em função da recente tensão entre Rússia e Ucrânia no Mar Negro. Três navios militares e alguns marinheiros ucranianos foram capturados pela Rússia sob acusação de invadir águas russas na Crimeia. Como resposta, a Ucrânia decretou estado de emergência, lei marcial e aumentou a presença militar perto da Crimeia.
Em reação à crise, os Estados Unidos fazem preparativos para enviar um navio de guerra para a região. A passagem da embarcação pelos estreitos turcos depende de autorização da Turquia, país que tem uma relação turbulenta com os Estados Unidos, mas também com a Rússia. Independentemente de se concretizar, a intenção americana é suficiente como jogar uma guimba de cigarro no paiol da Guerra Fria.
A provocação americana aos russos não se limitou ao território europeu. Na quarta-feira, um navio de guerra americano, equipado com mísseis, navegou perto das águas contestadas pela Rússia no Mar do Japão.
Boi de piranha russo
A Rússia, no entanto, pode ser apenas o “boi de piranha” da vez. Outro grande interesse dos Estados Unidos em acabar com o INF é eliminar um entrave à instalação de armas desse tipo no Mar do Sul da China e sua própria capacidade de resposta ao crescimento militar chinês.
Como a China não é parte do INF, Pequim construiu um arsenal de mísseis intermediários terrestres, deixando os Estados Unidos “limitados” a mísseis que podem ser lançados a partir do mar ou do ar.
Em fevereiro, o documento Nuclear Posture Review já apontava a China como uma ameaça à “tradicional superioridade militar dos Estados Unidos no Pacífico Ocidental”. Diz a diretriz que o país precisa de “um conjunto diverso de capacidades nucleares que dê ao presidente americano o poder de modelar uma abordagem para conter um ou mais adversários em diferentes circunstâncias.”
Se uma Guerra Fria a dois, sem Trump e Bolton, deixou o mundo inseguro no século passado, como seria um cenário semelhante, desta vez “a três” e sob os efeitos psicodélicos de uma Casa Branca cada dia mais disfuncional?