Trump na ONU: America First e a rejeição do globalismo
por Tatiana Teixeira
Em seu segundo discurso anual na Assembleia Geral da ONU, em 25 de setembro, o presidente Donald Trump seguiu a linha do ano anterior, com a defesa enfática da soberania e do interesse nacional dos Estados Unidos. Misturou elementos de primazia com algum engajamento seletivo, ou ainda, do nacionalismo trumpista com o tradicional conservadorismo republicano. Dedicou-se, de novo, à exposição de sua America First, política baseada no “realismo pautado em princípios” e na “doutrina do patriotismo” para proteger o povo, a soberania e o território americanos e garantir a manutenção da influência, os interesses nacionais, a segurança e a prosperidade econômica dos Estados Unidos. E, desta vez, pôs mais ênfase em sua crítica ao sistema internacional, rejeitando o “globalismo”.
“A política da América de um realismo pautado por princípios significa que não vamos ser reféns de velhos dogmas, de ideologias desacreditadas”, alegou Trump, retomando seu pet hate pelo socialismo, já denunciado por ele nessa mesma tribuna, em 2017.
Como explicou no discurso nas Nações Unidas do ano passado, referindo-se a esse aparente oxímoro: “nós nos pautamos pelos resultados, não por ideologias. Temos uma política de realismo pautado por princípios, que tem suas raízes em metas, interesses e valores compartilhados”.
Roteiro autocongratulatório
Durante pouco mais de meia hora, com um gestual e um tom menos enérgicos do que o habitual, Trump seguiu um roteiro conhecido.
Dirigiu-se a seus compatriotas, ao exibir os números da economia repetidos por ele à exaustão em toda e qualquer oportunidade; atualizou a lista de inimigos dos EUA (a “ditadura corrupta no Irã” e os “terroristas islâmicos radicais”, entre eles o grupo Estado Islâmico); e distribuiu afagos a alguns poucos países, como Israel, Arábia Saudita e Polônia. Também celebrou os resultados positivos de sua política externa, fazendo elogios ao “chairman Kim” Jong-un por sua “coragem” no processo de desnuclearização da Coreia do Norte, além de se autocongratular pela “nova abordagem” no Oriente Médio (sem resultados tangíveis até o momento, a não ser a exacerbação do conflito entre palestinos e israelenses); e mandou recados para concorrentes (China, China e China) e aliados – europeus em especial, mas, principalmente, Alemanha. Salvo por uma breve menção na questão energética, para o bem, ou para o mal, a Rússia foi uma grande ausência neste pronunciamento.
Rejeição do multilateralismo
Na principal arena diplomática do planeta, o empresário republicano denunciou esse mesmo sistema internacional que os EUA ajudaram a construir e a modelar no Pós-Guerra. Criticou a “ideologia do globalismo” e a “governança global”, neste que é um momento de indefinição de uma ordem até há pouco claramente liderada pelos americanos. Com isso, coloca em xeque regras, normas e arranjos legais estabelecidos e que serviram, boa parte do tempo, aos interesses dos EUA. Esse debate, aliás, não é simples, já que governança global é um conceito contestado e problematizado por diferentes vozes e tendências do espectro político.
No discurso, Trump questionou explicitamente a legitimidade de instituições e de seus mecanismos, sobretudo, nas áreas de direitos humanos (o Tribunal Penal Internacional e o Conselho de Direitos Humanos da ONU, do qual os EUA se retiraram), imigração (o Global Compact on Migration) e comércio (a Organização Mundial do Comércio, com uma velada referência à ação dos chineses). Muitos viram aqui uma maior influência de seu conselheiro de Segurança Nacional, o falcão John Bolton, que recentemente ameaçou o TPI com sanções, em caso de uma investigação contra soldados americanos por crimes de guerra no Afeganistão.
“Nunca vamos entregar a soberania da América a uma burocracia global, irresponsável, que não foi eleita”, justificou Trump.
“A América é governada pelos americanos. Nós rejeitamos a ideologia do globalismo e adotamos a doutrina do patriotismo”, declarou o presidente americano, acrescentando que “a América sempre vai escolher independência e cooperação a governança global, controle e dominação”. Em alinhamento com essa visão, que privilegia uma cooperação pontual e bilateral, há muitos exemplos de políticas adotadas por Trump no último ano relembradas por ele no discurso: a retirada do acordo nuclear iraniano e a retomada das sanções contra Teerã, as sucessivas escaladas rumo a uma guerra comercial com a China, a transferência da embaixada americana para Jerusalém, ou a concessão de ajuda estrangeira apenas para as nações “amigas”.
Balanço doméstico
“Em menos de dois anos, meu governo fez mais do que quase qualquer administração na história do nosso país”, sentenciou Trump, marcando um momento ímpar. À declaração, seguiram-se risos e burburinho, de uma plateia menos condescende e crédula do que seu eleitorado em casa. O presidente reagiu com bom humor – “É verdade! Não esperava essa reação, mas está tudo bem” – e descreveu os feitos de seu governo na economia, reproduzindo praticamente os mesmos itens de seu discurso de 2017 na Assembleia Geral.
Assim como no ano passado, Trump voltou a celebrar o pico histórico do mercado de ações, a aprovação da reforma tributária, o retorno das empresas ao país e o crescimento do emprego entre as minorias afro-americana, hispânica e de origem asiática, “com os índices mais baixos em 50 anos”. Também destacou a “construção de um grande muro fronteiriço”, o “fortalecimento da segurança na fronteira” e os “recursos recordes para as nossas Forças Armadas”.
“Os Estados Unidos estão mais fortes, mais seguros e um país mais rico do que quando eu assumi menos de dois anos atrás”, garantiu, sem aplausos.
Atualização dos inimigos
No ano passado, o presidente atacou “terroristas e extremistas”, “autoridades e poderes autoritários”, “regimes irresponsáveis”, “aqueles que nos ameaçam com caos, turbulência e terror” e “redes criminosas internacionais” que “traficam drogas, armas e pessoas”. No topo da lista estava “o depravado regime da Coreia do Norte”, um país com “comportamento hostil”, o qual Washington não teria outra escolha “a não ser destruir”, se ameaçasse os EUA, ou seus aliados. Essa tensão específica ficou para trás – pelo menos por enquanto. Em 2018, Pyongyang e seu “Homem-Foguete” deixaram a lista negra para serem apresentados como uma das conquistas da política externa trumpista.
Também presente no discurso de 2017, quando foi descrito como uma “ditadura corrupta” e um “regime assassino e insensato”, o grande inimigo dos Estados Unidos passa a ser o Irã, apontado como “o líder mundial na promoção do terrorismo”, que espalha “caos, morte e destruição”. Para irritação de Washington, no primeiro dia da Assembleia Geral (24), os demais signatários do JCPOA (sigla em inglês do acordo nuclear firmado pelo P5+1) renovaram seu compromisso com Teerã. No dia seguinte, tanto o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, quanto Bolton reagiram duramente.
“Não temos a intenção de permitir que nossas sanções sejam burladas pela Europa, nem por ninguém mais”, frisou Bolton na conferência organizada pelo grupo United Against Nuclear Iran em paralelo à AG.
Assim como no ano passado, a Síria e o “regime socialista de (Nicolás) Maduro e seus patrocinadores cubanos” também são apontados como “tragédias” por Trump. No caso do primeiro, o presidente americano defendeu “uma desescalada do conflito militar, junto com uma solução política”, e prometeu que “os Estados Unidos vão responder, se armas químicas forem mobilizadas pelo regime (Bashar al-)Assad”. Nesse sentido, a cooperação com a Rússia, e mesmo com a Turquia, mostra-se particularmente relevante. No caso de Caracas, anunciou uma nova rodada de sanções contra o entorno mais próximo de Maduro.
Comércio e petróleo
“Comércio precisa ser justo e recíproco. Os Estados Unidos não vão mais se deixar levar vantagem”, nem aceitar o que Trump chamou de “acordos ruins”. No discurso, o presidente americano comemorou acordos bilaterais com México (“inovador”) e Coreia do Sul (“bem-sucedido”) e reclamou abertamente das consequências da entrada da China na OMC e de sua atuação no comércio mundial. Mais uma vez, voltou a culpar Pequim pela perda de empregos nos EUA e a acusar os chineses de praticarem dumping, transferência forçada de tecnologia e roubo de propriedade intelectual. Essas acusações estão na origem da guerra comercial travada ao longo do ano entre os dois gigantes.
Outra reclamação foi na área de energia, com críticas aos altos preços praticados pela Organização de Países Exportadores de Petróleo (Opep). A commodity é um elemento extremamente importante da economia americana. Em linhas gerais, o plano energético para uma America First preconiza o fim da dependência do petróleo estrangeiro, o alívio das regulações nesse setor industrial – sobretudo com a eliminação das “desnecessárias e prejudiciais políticas como o Plano de Ação Climática” da gestão passada –, o uso (polêmico) das reservas naturais de gás e petróleo em solo nacional, a retomada da indústria do carvão e a adoção de “políticas energéticas que estimulem nossa economia, garantam nossa segurança e protejam nossa saúde”.
America First significa também recuperar empregos e retomar o crescimento do país, tornar as Forças Armadas fortes novamente, reconstruir a infraestrutura nacional, reforçar a aplicação da lei no plano interno e buscar trocas comerciais e acordos internacionais “duros e justos”, que sejam bons para todos os americanos. “O mundo será mais pacífico e mais próspero com uma América mais respeitada e mais forte”, afirma a Casa Branca na página institucional on-line.
AL, Doutrina Monroe e imigração
No que diz respeito especificamente ao continente, Trump mencionou uma velha conhecida dos países latino-americanos: a Doutrina Monroe, de 1823, unilateral e intervencionista, que preconizava “uma América para os americanos”, sem ingerência externa – no caso, europeia – em sua zona de influência. Em 2013, o então secretário de Estado americano, John Kerry, chegou a afirmar na Organização dos Estados Americanos (OEA) que “a era da Doutrina Monroe acabou”. Atualizada, agora ela se aplicaria à China e a seu crescente comércio e larga escala de investimentos na América Latina.
“Aqui no Hemisfério Ocidental, estamos comprometidos com manter nossa independência da invasão das potências estrangeiras expansionistas. Tem sido a política formal do nosso país, desde o presidente Monroe, que a gente rejeite a interferência de nações estrangeiras nesse hemisfério e nos nossos assuntos”, declarou Trump, no que pareceu ser, de novo, mais uma alusão aos chineses.
Ainda em relação à América Latina, cabe destacar um argumento simplório, de causalidade falaciosa (ou questionável pelo menos em parte), sobre imigração clandestina, apresentado por Trump.
Segundo o discurso do presidente na AG, “a imigração ilegal financia redes criminosas, gangues implacáveis e o fluxo de drogas letais”. Além disso – completa o presidente –, “a imigração ilegal explora populações vulneráveis, fere cidadãos que trabalham duro e produz um ciclo vicioso de crime, violência e pobreza. Apenas defendendo fronteiras nacionais, destruindo gangues criminosas, podemos quebrar esse ciclo e estabelecer uma base real para a paz”.
A imigração realizada de forma ilegal também tem esses efeitos, agravando condições sociais já precárias. Criminalizá-la significa, porém, ignorar que esses mesmos fatores – insegurança, violência e pobreza nos países de origem – podem levar a essa empreitada, quase sempre carregada de riscos e de incertezas. Minimizar esse aspecto leva a políticas públicas ruins e pouco eficientes, com ênfase na segurança em detrimento de uma abordagem social e mais humanizada.