Resistência, paranoia e caça às bruxas na Casa Branca de Trump
por Tatiana Teixeira
Desde meados de agosto, o presidente Donald Trump tem sido alvo de fogo amigo, mais intensamente, e sem muito descanso entre um episódio e outro. Além de assistir a ex-assessores (processados, presos ou em vias de) que abrem mão de sua lealdade ao ex-chefe e aderem a plea bargains, colaborando com a investigação do procurador especial Robert Mueller, o magnata nova-iorquino protagoniza pelo menos três livros nada lisonjeiros. E, em 5 de setembro, um artigo de opinião anônimo publicado no jornal The New York Times por um “alto funcionário do governo Trump” caiu como uma bomba em Washington. A dois meses das midterms.
Crises regulares
Juntos, o artigo do NYT e os livros – Fire and Fury: Inside the Trump White House, de Michael Wolff; Unhinged: An Insider’s Account of the Trump White House, de Omarosa Manigault Newman; e o mais recente Fear: Trump in the White House, de Bob Woodward – impressionam pela riqueza de detalhes sobre o caos, a inexperiência e os embates na cúpula do Executivo. Não que outros governos (a reta final da gestão Nixon, por exemplo) não tenham tido momentos assim. A diferença, segundo esses relatos, seria na regularidade e na intensidade com que acontecem na administração atual. Mas isso não é (ou não deveria ser) uma surpresa.
Desde que tomou posse, Trump desautoriza, hostiliza, ou questiona credenciais e decisões de seus subordinados publicamente (Rex Tillerson, Jeff Sessions, Kirstjen Nielsen e a comunidade de Inteligência, entre outros) e tenta interferir, de modo recorrente, no trabalho de órgãos do Executivo (como o Departamento de Justiça e o FBI). O alto número de demissões (ou de pedidos de demissão) nas mais altas esferas e a grande e incomum quantidade de cargos de segundo e terceiro escalões tanto tempo em aberto em diferentes departamentos são fora do padrão.
A sombra da 25ª Emenda
Ao expor e fragilizar a figura presidencial, o efeito imediato desses últimos acontecimentos foi aumentar a paranoia (e o medo) em uma Casa Branca com um núcleo decisório já bastante restrito, com Trump reduzindo ainda mais seu entorno de confiança. Como efeito não tão instantâneo e de caráter incremental, esse conjunto de fatores poderia contribuir para uma maior participação popular nas midterms, em novembro, reforçando o aspecto de “referendo” sobre a gestão Trump. Em geral, as eleições de meio de mandato são marcadas pelo desinteresse do eleitorado, com a consequente baixa mobilização às urnas.
O episódio dividiu os americanos. De acordo com uma pesquisa da Hill.TV em parceria com o instituto HarrisX, 53% dos entrevistados consideram que o autor deveria ter assinado o artigo e renunciado ao cargo em protesto, contra 47% que pensam o contrário. Enquanto 77% dos republicanos defenderam que o autor anônimo se identificasse e se demitisse, 64% dos democratas foram favoráveis ao anonimato.
Em uma presidência que tem sido considerada incomum em muitos aspectos, externalizam-se cada vez mais os sinais de uma sublevação burocrática, que tenta administrar um corpo estranho a essa estrutura política. Por enquanto, passados quase dois anos de governo, o movimento continua sendo de acomodação. As menções recorrentes à 25ª Emenda mostram, contudo, que o processo de fagocitose não está totalmente descartado por alguns desses atores. Por enquanto, como afirmou o autor anônimo no Times, a preferência é por evitar uma “crise constitucional”. Proposta em 6 de julho de 1965 e ratificada em 10 de fevereiro de 1967, a 25ª Emenda é a que trata da vacância da presidência, seja por impeachment, por incapacidade, renúncia, ou morte.
A resistência a Trump
A identidade do autor do artigo “Eu sou uma parte da resistência dentro do governo Trump” é conhecida apenas da equipe que trabalha na página de opinião do jornal. Seu nome não foi divulgado para nenhum dos repórteres, nem mesmo para aqueles que cobrem a Casa Branca. A controversa e rara decisão de publicar um artigo anônimo foi tomada em função da relevância do assunto e, completa o NYT, porque “é o único jeito de oferecer uma perspectiva importante para nossos leitores”. Dois dias após sua publicação, o texto já contava com mais de 12 milhões de acessos on-line, tornando-se um dos mais lidos do site em 2018.
“Estamos extremamente orgulhosos de termos publicado este artigo, que acrescenta um valor significativo para o entendimento do público sobre o que está acontecendo no governo Trump da parte de alguém que está em posição de saber”, disse a porta-voz do Times, Eileen Murphy.
O autor afirma que ele e “colegas que pensam como eu” prometeram “frustrar parte de sua agenda e de suas piores inclinações” e “fazer o que pudermos para preservar nossas instituições democráticas, ao mesmo tempo frustrando os impulsos mais equivocados do sr. Trump até que ele esteja fora do cargo”. Essa estratégia de tentar conter os “caprichos” do presidente estaria sendo adotada em diferentes níveis do Executivo. Incluindo-se entre os “adultos na sala”, o autor anônimo diz que “estamos tentando fazer o que é certo, mesmo quando Donald Trump não faz”.
Segundo o texto, “o presidente continua a agir de uma maneira que é prejudicial para a saúde da nossa república”. Mais do que isso, “a raiz do problema é a amoralidade do presidente”, descrito como alguém sem afinidade com os valores conservadores e com os princípios que deveriam guiar o processo decisório, dotado de impulsos “anticomércio” e “antidemocráticos”.
“Sua impulsividade”, acrescenta o autor, “resulta em decisões precipitadas, mal informadas e, eventualmente, imprudentes, que têm de ser revistas”.
Os aspectos apontados como conquistas da gestão atual (maior desregulação, histórica reforma tributária e mais recursos para a Defesa) se deram “apesar do – e não por causa dele – estilo de liderança do presidente, que é impetuoso, antagônico, mesquinho e ineficaz”.
Em livro recém-lançado, Omarosa, uma polêmica ex-assessora de Trump, já havia escrito que “um exército de pessoas” estava “trabalhando silenciosamente” para proteger a presidência. “Muitos nesse exército silencioso estão em seu partido, no governo e até mesmo em sua própria família”, garante Omarosa.
Em seu novo trabalho, que segue a mesma linha do artigo do NYT, Woodward descreve o presidente Trump como alguém que destrata e diminui funcionários, desconhece os assuntos internacionais, tem um comportamento errático e impulsos perigosos, é ignorante e tende a mentir. Esse jornalista duas vezes ganhador do Prêmio Pulitzer relata ainda que, para evitar decisões catastróficas, seus assessores escondem documentos do presidente.
Reações ao novo ‘Garganta Profunda’
As reações foram as mais diversas. Alegando se tratar de um tema de “segurança nacional” e de “traição”, o presidente Trump chegou a pedir ao procurador-geral, Jeff Sessions, que abra uma investigação criminal e descubra a identidade do autor do artigo. É improvável que o pedido vá adiante, já que o Departamento de Justiça costuma investigar apenas vazamentos de informação sigilosa – o que não parece se aplicar a esta situação. Em resposta, o Times lembrou o secretário de Justiça da Primeira Emenda da Constituição (a que protege a liberdade de expressão e de imprensa) e advertiu contra o abuso de poder.
Alguns chamaram de “golpe” e atentado à democracia o fato de haver pessoas não eleitas na Casa Branca, agindo às escondidas para neutralizar ações do presidente, sem que seja possível submetê-las a qualquer tipo de controle, ou responsabilizá-las por seus atos. Além do apoio, ou da recriminação, ao autor anônimo e ao Times, houve ainda muitas manifestações de preocupação, com questionamentos sobre como Trump pode governar um país, se sequer lidera sua própria equipe.
Outro problema seria quanto ao nível de previsibilidade possível, se não se sabe ao certo quem está no comando do navio e quais políticas serão aprovadas, implementadas e realmente mantidas, se resistirem a recuos, correções e processos judiciais. A área de política externa tem registrado muitos eventos dessa natureza, com clara dissonância entre o presidente e seus assessores. Talvez os casos mais visíveis sejam a relação com a Rússia de Vladimir Putin e as negociações sobre desnuclearização com a Coreia do Norte.
Como afirmou o governador de Ohio, John Kasich, não necessariamente pró-Trump, “é apenas caos o tempo todo. E ele é o comandante do caos… Estou preocupado que as coisas não estejam sendo feitas”. Para o senador Bob Corker (R-TN), um republicano claramente anti-Trump, “sei, por experiência, que cada dia na Casa Branca é uma situação de tentar contê-lo”.
A porta-voz da Casa Branca, Sarah Sanders, criticou duramente o autor do texto. “O indivíduo por trás desse artigo escolheu enganar mais do que apoiar o presidente dos Estados Unidos devidamente eleito. (…) Esse covarde deveria fazer a coisa certa e renunciar. Estamos desapontados, mas não surpresos, que o jornal escolha publicar esse op-ed patético, irresponsável e egoísta”.
‘As coisas vão piorar’
Depois do artigo do NYT e do livro de Woodward, vários membros do gabinete se apressaram em negar a autoria do texto e as declarações pouco elogiosas sobre o presidente, reassegurando-lhe sua lealdade.
O porta-voz do vice-presidente Mike Pence afirmou que “o vice-presidente assina seu nome nos artigos de opinião dele. O @nytimes deveria ter vergonha, assim como a pessoa que escreveu esse artigo de opinião falso, ilógico e covarde. Nosso escritório está acima desses atos amadores”. O secretário de Estado, Mike Pompeo, disse diretamente: “Não é meu”. Pompeo comentou ainda que “eu venho de um lugar onde, se você não está em posição de executar o objetivo do comandante, você tem uma única opção, e é ir embora”. O diretor de Inteligência Nacional, Dan Coats, conhecido por divergências nessa área com o presidente, também rebateu os rumores: “Evidentemente falso. Não escrevemos”. O secretário da Defesa, Jim Mattis, e o chefe de gabinete da Casa Branca, John Kelly, negaram terem criticado Trump.
Para o jornalista neoconservador David Frum, “as coisas vão piorar depois desse artigo. Vão piorar por causa desse artigo”, com um Trump ainda mais exigente de lealdade e obediência. “Ele vai ficar mais desafiador, mais imprudente, mais anticonstitucional e mais perigoso”, completa Frum, redator dos discursos do presidente George W. Bush de 2001 a 2002 e responsável pela adoção da expressão “eixo do mal” nesse governo.
Em discurso de cerca de uma hora na Universidade de Illinois-Urbana Champaign, em 7 de setembro, o ex-presidente Barack Obama falou do artigo do Times, criticou Trump, questionou a transformação do Partido Republicano e convocou a população a comparecer às urnas. Nos Estados Unidos, a tradição é que ex-presidentes se abstenham de comentar políticas, o trabalho e a atuação do sucessor.
Esse evento não foi apenas um distanciamento dessa tradição e uma reação ao último terremoto em Washington. Marcou também o início de seu envolvimento com a campanha das midterms. “Há realmente muito mais em jogo”, frisou, na tentativa de convencer o eleitorado a votar.
“Não é assim que nossa democracia deve funcionar (…) Essas pessoas não foram eleitas. Não podem ser responsabilizadas (…) Isso não é normal. Estes são tempos extraordinários, e são tempos perigosos”, advertiu Obama, para quem Trump “é um sintoma, não a causa” de uma mudança que vem acontecendo há anos na política americana. “A política do ressentimento e da paranoia infelizmente encontrou um lar no Partido Republicano”, apontou o ex-presidente, insistindo: “O que aconteceu com o Partido Republicano?”.