O sistema de pagamento europeu não é uma ilusão
Uma proposta alemã para impedir as sanções dos Estados Unidos ao Irã poderia funcionar. Basta olhar para os bancos da Rússia.
por Leonid Bershidsky
Traduzido do Bloomberg*
À medida que o presidente Donald Trump intensifica cada vez mais os laços com os aliados dos Estados Unidos, líderes alemães, incluindo a chanceler Angela Merkel, têm sugerido que seu país e outras nações europeias tomem medidas para diminuir sua dependência norte-americana. Agora, o ministro das Relações Exteriores, Heiko Maas, pediu a criação de “canais de pagamento independentes dos Estados Unidos” para ajudar a proteger as empresas europeias de sanções unilaterais de Washington, como as impostas por Trump ao Irã.
Isso pode parecer irreal, considerando-se o domínio norte-americano nos mercados financeiros: qualquer um desses canais de pagamento teria que passar por instituições financeiras que não têm exposição ao dólar americano. De acordo com o Banco de Compensações Internacionais (Bank for International Settlements), os 12,6 trilhões de ativos denominados em dólar dos bancos não americanos rivalizam com o montante dos bancos dos Estados Unidos. Embora os bancos europeus tenham reduzido sua exposição ao dólar em 42% entre 2007 e 2017, eles ainda têm grandes posições: as dívidas em dólar dos bancos alemães no final do primeiro trimestre de 2018 alcançaram 502 bilhões.
No entanto, o plano do ministro alemão das Relações Exteriores não seria impossível de se colocar em prática: os bancos sem exposição aos Estados Unidos existem e, sob certas condições, podem até crescer.
O apelo do ministro das Relações Exteriores por uma “parceria transatlântica equilibrada”, publicado pela primeira vez no jornal econômico alemão, Handelsblatt, não está focado apenas na economia. “Que o Atlântico tenha se tornado maior, politicamente falando, não é um fato decorrente unicamente do período de Donald Trump”, escreveu Maas. “Os Estados Unidos e a Europa estão se distanciando há anos. A sobreposição de valores e interesses que moldou nosso relacionamento por duas gerações vem diminuindo”. A União Europeia deve buscar um novo tipo de relacionamento no qual o bloco continue sendo um parceiro norte-americano, mas sirva também como contrapeso “sempre que os Estados Unidos passem dos limites aceitáveis”.
Como exemplos desses “limites aceitáveis”, Maas citou as tarifas de importação punitivas de Trump, as repatriações de bilhões de dólares em lucros da Europa por gigantes tecnológicos norte-americanos (“palavra-chave: imposto digital”, escreveu Maas), a falta de entusiasmo de Washington em relação às Nações Unidas e a retirada dos Estados Unidos do acordo nuclear com o Irã. Este último requer que a Europa alcance maior independência financeira, disse ele.
No momento, os governos europeus não podem oferecer muita proteção para grandes empresas com exposição ou financiamentos em dólares norte-americanos contra essas sanções unilaterais de Washington. Muitas dessas empresas, incluindo as montadoras Renault, Peugeot, Daimler e a petrolífera Total, colocaram seus planejamentos relacionados ao Irã em compasso de espera. Não está claro se as empresas menores, sem interesse no mercado dos Estados Unidos, têm energia suficiente para manter vivo o acordo com o Irã. Mas existem maneiras de financiar e desobstruir o comércio entre a Europa e o Irã. Os países europeus precisam encontrar bancos dispostos a abrir mão do dólar e de qualquer ligação com o sistema financeiro norte-americano pelo incentivo de negociar com as entidades sancionadas.
A Europa deveria procurar exemplos na Rússia.
Em março de 2014, os Estados Unidos penalizaram o banco russo Rossiya, que possui entre seus acionistas amigos ricos do presidente Vladimir Putin. O banco perdeu a capacidade de negociar com bancos norte-americanos e, de acordo com o Wall Street Journal, teve 572 milhões de dólares congelados em suas contas nos Estados Unidos. Em abril, Washington impôs restrições semelhantes ao SMP Bank, parcialmente controlado pelo amigo de Putin, Arkady Rotenberg. As sanções, no entanto, não mataram nenhuma das duas bem relacionadas instituições; na verdade, seus ativos aumentaram em termos de dólares, mesmo quando tiveram que abrir mão da moeda norte-americana.
Os ativos de Rossiya cresceram mais rápido do que os do banco estatal Sberbank, o maior da Rússia. O Sberbank é forçado a ficar longe da Crimeia devido à ameaça norte-americana de sanções tão rígidas quanto as que afetam os bancos Rossiya e o SMP. Liberado de tais preocupações pelas sanções já impostas pelos Estados Unidos e sem enfrentar concorrência significativa, o Rossiya desenvolveu um grande banco de varejo e começou a financiar projetos de desenvolvimento na península. Tanto o Rossiya quanto o SMP Bank receberam apoio do governo russo e de empresas estatais através de grandes depósitos.
Se os europeus estiverem levando a sério o estabelecimento de “canais de pagamento independentes dos Estados Unidos”, eles precisam de bancos, privados ou estatais, como o Rossiya e o SMP. Se tais instituições financeiras já existem, ou podem ser criadas, depende de quão sérios os governos europeus sejam sobre não compactuar com as sanções extraterritoriais impostas pelos Estados Unidos. O governo alemão, pelo menos, deveria encarar o tema de forma suficientemente séria: seus interesses econômicos divergem muito dos de Washington, com ou sem Trump. Negociar com adversários americanos como a Rússia e o Irã pode ser mais atraente para algumas empresas alemãs do que adquirir ganhar visibilidade nos Estados Unidos.
Resta saber se os líderes europeus terão a coragem de seguir na direção apontada por Maas. Isso seria um salto para o desconhecido e, inevitavelmente, seria visto pelos Estados Unidos como intensificação das tensões. Mas se a Europa espera desempenhar um papel de contrapeso aos Estados Unidos, precisa ir além dos artigos de jornal, mesmo aqueles escritos por poderosos ministros das Relações Exteriores.
Traduzido por Solange Reis
*Artigo originalmente publicado em 23/08/2018, em https://www.bloomberg.com/view/articles/2018-08-23/european-payment-system-to-thwart-u-s-sanctions-could-work