FART: a nova estratégia de Trump para comércio
por Neusa Maria P. Bojikian*
Em tempos de tantas notícias fabricadas e de Administração Trump, monitorar as políticas interna e externa dos Estados Unidos (EUA) para oferecer algum entendimento é o tipo de tarefa que exige muito mais do que esforço intelectual. Há dúvidas sobre a veracidade das situações, que muitas vezes parecem realmente forjadas. Nesse caso, o mais sensato deve ser analisar um determinado objeto da perspectiva de algo ainda não comprovado ou que se cogita apenas.
A propósito, supostamente o presidente Trump encomendou a seus assessores um projeto de lei comercial chamado Fair and Reciprocal Tariff Act (FART) e cuja essência colide com os princípios norteadores do regime comercial multilateral, hoje sob os auspícios da Organização Mundial do Comércio (OMC). Resumidamente, o texto, um documento interno ou algo equivalente a um anteprojeto de lei, vazado dos domínios da Administração Trump nos últimos dias (o texto pode ser acessado por aqui) revela que o presidente estaria pleiteando junto ao Congresso obter amplos poderes para estabelecer novas tarifas de importação aplicáveis a países específicos, a seu próprio modo e a qualquer tempo. Sua percepção e a de sua equipe bastariam para definir os conceitos de “comércio justo” e de falta de reciprocidade por parte de outros países.
Indica-se que uma eventual nova lei comercial nos termos e condições apresentados em tal texto afetaria o princípio Nação-Mais-Favorecida (NMF) e infringiria o próprio acordo tarifário já assinado pelo país no âmbito da OMC. A preocupação de vários comentaristas que se manifestaram nas redes sociais a esse respeito é que o regime seria tomado por uma escalada de conflitos comercias que afetariam a economia global.
O princípio NMF requer que os países membros da OMC apliquem a todos os demais a mesma tarifa, preferencialmente a mais baixa. O propósito de zelar pela não discriminação no comércio internacional justificou a construção de uma organização que pretendia contrapor o bilateralismo e a competição comercial prevalentes no período entre guerras. Na OMC, uma vez acordado e consolidado um teto tarifário para as transações comerciais internacionais, não se pode retroceder e estabelecer novas condições, exceto se houver uma renegociação com todos os signatários. Há exceções, por certo, como aquelas tarifas estabelecidas por força de algum acordo comercial preferencial mais abrangente do que o estabelecido na OMC.
O problema, segundo a concepção da Administração Trump
O anteprojeto teria sido elaborado a partir de um mapeamento feito pela Administração Trump onde se encontrariam as seguintes condições: (1) Os EUA são o maior importador mundial de mercadorias e o maior incentivador da liberalização, (2) porém seus parceiros insistem em manter inúmeras barreiras tarifarias e não-tarifárias que afetam as exportações americanas; (3) as práticas tidas como injustas e não-recíprocas minariam as vantagens competitivas dos produtores agrícolas e dos trabalhadores americanos; e (4) elevariam de forma insustentável o déficit comercial do país, prejudicando seu desempenho econômico.
A Administração não teria conseguido até o momento negociar um compromisso de cooperação junto a diferentes parceiros abordados e em diferentes fóruns (multilateral, regional e bilateral) para reverter esse quadro. Por isso o presidente deveria “ter uma ampla gama de ferramentas” para abrir mercados junto a parceiros comerciais dos EUA e encorajar as negociações para liberalizar o comércio de bens de forma justa e recíproca, incluindo a autoridade para nivelar os níveis tarifários.
Em busca da licença para agir unilateralmente
Diante de casos concretos, especificamente a determinação do presidente apontando que as barreiras tarifárias e/ou não tarifárias impostas por um determinado país em relação a bens particulares (objetos de transações comerciais) estão desequilibradas vis-à-vis as práticas dos EUA, a Administração seria autorizada a tomar as seguintes medidas: (1) negociar e celebrar um acordo com o respectivo país estrangeiro para que este reduza ou elimine as barreiras incidentes sobre o bem em questão; (2) retaliar, impondo tarifas na mesma medida sobre as importações do referido bem daquele país.
E se por acaso o país alvo ousar entrar em uma guerra comercial, respondendo à ação executada pelo presidente com outro aumento tarifário, o presidente se reservará ao direito de majorar ainda mais a tarifa. Em princípio, a avaliação da Administração não levaria em conta a transação sobre o bem em si, mas os usos finais e a relação competitiva com o respectivo país sujeito à imposição tarifária; o grau de transparência no processo tarifário adotado pelo país estrangeiro; e outros fatores “conforme o presidente determinar que seja apropriado”.
Em 2002, no contexto da Administração Bush, dizia Robert Kagan, historiador americano e comentarista de política externa de perfil neoconservador, que, se você é o tipo de pessoa que se incomoda com o unilateralismo americano, “eis o que realmente deve mantê-lo acordado à noite: mesmo a maioria dos multilateralistas norte-americanos são unilateralistas.” Mas, antes que o leitor esboçasse uma impressão repentina, ele se apressava em esclarecer que os americanos não são multilateralistas por convicção, são, sim, “multilateralistas instrumentais… O cerne do argumento multilateralista americano é pragmático”. Dizia ainda que, assim como havia poucos multilateralistas “principistas”, unilateralistas genuínos eram poucos. E agora, o que tem a dizer Kagan sobre as atitudes de Trump e de seus assessores? Justificariam uma revisão para cima de sua lista de unilateralistas genuínos?
As chances de uma lei à imagem desse anteprojeto ser aprovada no Congresso
Para se aprovar uma lei espelhada nesse anteprojeto, exigir-se-ía uma câmara solidamente republicana e a favor de Trump e de suas táticas toscas de barganha. Em tese, haveria significativa resistência no Congresso. Inclusive, supostamente não há consenso entre seus assessores comerciais de primeiro escalão, como Wilbur Ross, Secretário de Comércio, e Robert Lighthizer, atual Representante de Comércio e Vice-Representante durante a década de 1980, e não há esperança de que isso possa vir a se tornar lei. Exceção cabe a Peter Navarro, Diretor de Comércio e Política Industrial da Presidência, que é o mais radical dessa tríade. Em uma reunião na Casa Branca para discutir o referido anteprojeto no início deste ano, Marc Short, no papel de diretor de Assuntos Legislativos, teria dito que o projeto “morreria na chegada”, recebendo apoio zero no Congresso. Peter Navarro teria discordado, dizendo que o projeto receberia bastante apoio, particularmente dos democratas.
Lindsay Walter, vice-secretária de imprensa da Casa Branca, teria dito que o presidente encomendara um projeto sintetizando ideias para remediar a situação de déficit comercial e criar incentivos para os países reduzirem suas respectivas barreiras tarifárias. Por outro lado, supostamente segundo a vice-secretária, o texto elaborado nem ao menos foi revisado pela equipe responsável e pelo presidente. Portanto, a proposta a ser levada à votação do Congresso não estaria pronta.
O presidente e seu próprio arsenal de defesa comercial
O presidente já dispõe de instrumentos que lhe permitem desfechar golpes contra a OMC. Recentemente a Administração Trump invocou a Seção 232 da Lei de Comércio de 1962, que o autoriza a introduzir restrições comerciais por motivos de segurança nacional, impondo tarifas sobre aço e alumínio. Além disso, recorreu à Seção 301 da Lei de Comércio de 1974 para impor tarifas sobre cerca de US$50 bi de importações da China.
A Seção 301 suscita grande polêmica, pois concede ao presidente poder para estabelecer direitos aduaneiros em resposta a quaisquer práticas comerciais tidas como “não razoáveis, discriminatórias, desleais” de outros país. Essa regra pode ser invocada, o que foi recorrente nas décadas de 1970 e 1980, se um país estrangeiro for acusado de negar proteção adequada e efetiva à propriedade intelectual ou oportunidades de mercado justas e equitativas, mesmo que seu comportamento seja consistente com suas obrigações sob o Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) da OMC. O Brasil e a Índia foram duramente perseguidos na década de 1980 com base nessa regra.
Agora, na Administração Trump, a Seção 301 voltou à cena. Após abrir processo de investigação contra a China, acusada de roubar propriedade intelectual dos EUA visando a dominar o desenvolvimento de tecnologias avançadas, a Administração estabeleceu tarifa de 25% sobre produtos importados chineses. As tarifas teriam dois objetivos: (1) evitar transferências “ainda mais injustas” de tecnologia e de propriedade intelectual americanas para a China e, consequentemente, proteger os empregos americanos; e (2) dar início ao equilíbrio no relacionamento comercial bilateral.
Então, para que a FART?
Certamente, obter uma licença por meio da FART para ‘passar por cima’ da OMC seria uma grande conquista para o presidente Trump e sua cruzada contra o regime multilateral e contra, principalmente, o governo chinês, que, ao contrário da Administração Trump e sua escalada de tensões comerciais, surgiu como defensor da ordem do comércio mundial.
Desde sua campanha eleitoral, Trump tem mirado a China e seu modelo de desenvolvimento econômico. Entretanto, mesmo diante de hostilidades, o governo chinês tentou evitar um confronto direto com o governo americano, oferecendo mais acesso a mercado para produtos dos EUA. O confronto exigiria esforço enorme do governo chinês, tendo que lidar com o impacto imediato desse tipo de abordagem em suas exportações e, mais importante, com a acirrada rivalidade econômica com os EUA nos médio e longo prazos.
O comportamento do governo chinês não deu conta, contudo, de convencer a Administração Trump a mudar a orientação da política comercial em curso. Isso levou o governo chinês a se empenhar em convencer governos, organizações internacionais e empresas (americanas inclusive) de que a China está aberta aos investimentos e que apoia a ordem econômica liberal. Além disso, tem tentado se aproximar de tradicionais aliados dos EUA para construir uma agenda comum e preservar a estrutura construída em torno do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC.
Ao mesmo tempo, manda sinais de que não vai se intimidar frente ao bullyingcomercial da Administração Trump e que estaria se preparando para uma “guerra fria econômica”. No dia 6 de junho, a relação bilateral foi ilustrada com mais um episódio de disputa travada no comércio. Ambos os países iniciaram a aplicação de tarifas de 25% sobre US$34 bi em bens importados de um lado e de outro. E no dia 10, o Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR) anunciou que iniciara um processo para impor tarifas de 10% sobre outros US$200 bi em produtos chineses. Do outro lado, o Ministério do Comércio da China comunicou que também poderia impor tarifas sobre outros US$200 bi em bens importados dos EUA.
Se, com o que dispõe, a Administração Trump está fazendo o que se tem visto, com mais um instrumento de defesa comercial inspirada nesse anteprojeto, o presidente Trump ganharia uma tremenda estatura moral internamente.
E se tudo não passar de um ‘balão de ensaio’, propositalmente solto com a finalidade de mensurar previamente possíveis efeitos de uma lei comercial como tal, pode-se pensar que seus autores estão querendo aplicar a tática do ‘Bode na Sala’, inclusive porque o acrônimo do nome de batismo do anteprojeto – FART – forma a palavra flatulência.
Em tempo, o texto do anteprojeto veio primeiramente a público pela Axios – empresa de mídia digital lançada pelos fundadores da Político – no dia 1 de julho do corrente. A reportagem foi assinada por Jonathan Swan, repórter responsável por cobrir a presidência de Trump e os líderes republicanos no Congresso e que tem colecionado uma série de furos de reportagem. Swan foi o primeiro a noticiar que os EUA abandonariam o acordo climático de Paris; o primeiro a noticiar que Trump reconheceria Jerusalém como a capital de Israel; o primeiro a noticiar que Trump encerraria o Deferred Action for Childhood Arrivals emitida em 2012 pela Administração Obama e que deu permissão de trabalho para 800.000 imigrantes ilegais.
* Pesquisadora do INCT-Ineu. Doutora e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI-Unesp-Unicamp-PUC-SP. Autora do livro Acordos comerciais internacionais: o Brasil nas negociações do setor de serviços financeiros (2009, Unesp) e Coorganizadora do livro Negociações econômicas internacionais: abordagens, atores e perspectivas desde o Brasil (2011, Unesp).