Internacional

Reunião Trump-Putin: diálogo externo e histeria doméstica

por Solange Reis

 

“Prefiro assumir um risco político em busca da paz do que arriscar a paz na busca da política” é uma frase de efeito com todos os elementos para entrar nos anais das citações.

Não fosse Donald Trump o autor, a paz com a Rússia e o momento de histeria generalizada pelo recente encontro entre os atuais presidentes americano e russo.

A cúpula Trump-Putin em Helsinque não trará paz ao mundo, mas ajudará em muitos aspectos. Em vez de ser considerada um bom começo, se tornou a aposta de mais alto risco feita por Trump em sua já controversa presidência. 

O presidente que separa crianças dos pais nas fronteiras, apoia supremacistas brancos e insulta publicamente seus correligionários tem conseguido equilibrar aplausos e vaias. Mas ao encontrar-se com o líder russo a portas fechadas, alcança o que parecia impossível: unir a classe política e a mídia contra si.

Histeria bipartidária

Desde que este Observatório Político dos Estados Unidos foi fundado, há oito anos, momentos decisivos e divisivos marcaram aquele país. Uma característica do período foi a perda crescente de demonstrações de bipartidarismo, uma forma de consenso entre os Partidos Democrata e Republicano.

Os anos Obama já tinham sido muito polarizados, mas a primeira metade do mandato de Donald Trump aprofundou a divisão. Extrapolando a esfera partidária, o embate se acirrou entre a população e os meios de comunicação.

A Casa Branca de Trump bifurca a história dos Estados Unidos para o bem e para o mal. Pois o polêmico presidente rachou o país em dois, com fórmulas revisionistas e políticas pouco ortodoxas.

Difícil imaginar o que poderia unir os pólos opostos no tempo de sua presidência.

Até acontecer o agora famoso encontro de Trump e Putin em Helsinque, na Finlândia, no dia 16 de julho. Como um denominador comum, o diálogo alinhou as lideranças partidárias e os gurus da mídia. Todos contra, evidentemente.

O bipartidarismo volta momentaneamente, mas por vias tortas. Afinal, não seria positiva a aproximação entre Rússia e Estados Unidos – com a possibilidade de que isso promova a redução e o controle de armas nucleares, o fim dos conflitos na Síria e na Ucrânia, e a estabilidade em outras regiões?

A tomar pela indignação de políticos, analistas e jornalistas americanos, nada disso compensa colocar os Estados Unidos em pé de igualdade com a Rússia em qualquer palco que seja.

Reação em cadeia

Quase toda a classe política e midiática nos Estados Unidos rejeitou o comportamento de Trump no encontro e na entrevista, desde a privacidade da conversa à humilhação dos órgãos de inteligência americanos.

Na coletiva, Trump contradisse nominalmente o diretor de Inteligência Nacional, Dan Coats, duvidando que a Rússia tenha interferido nas eleições americanas. Posteriormente voltou atrás, mas o estrago já estava feito.

O que Helsinque uniu, os homens não separam. Vale tanto para um lado, quanto para outro.

A equipe de Trump talvez não consiga remediar os efeitos negativos causados pela cúpula, e sua presidência seja encurralada num cerco institucional.

Ou, ao contrário, a aproximação entre o Kremlin e a Casa Branca sobreviverá à histeria geral. Só o tempo dirá. Por enquanto, o que se pode fazer é dar algum sentido aos acontecimentos que se atropelam.

Cúpula bilateral ou capitulação?

Ainda nada se sabe da conversa entre Putin e Trump, que foi testemunhada apenas por seus respectivos intérpretes. Deus e o Diabo podem estar nos detalhes que talvez não venham a público tão cedo, apesar da tentativa estranha dos democratas de intimar a intérprete de Trump. Os republicanos também pressionam o presidente a revelar a conversa, principalmente depois de o embaixador russo em Washington, Anatoly Antonov, ter afirmado que os dois presidentes fizeram acordos verbais.

Na coletiva de imprensa subsequente à cúpula, indicações vagas, ainda que ilustrativas, do que teriam tratado os líderes das duas maiores potências nucleares foram suficientes para despertar o pânico.

Onde faltou conteúdo divulgado, sobraram críticas explícitas. Em reação quase-unânime, Trump foi massacrado. Particularmente a imprensa americana e o establishment político nos Estados Unidos julgaram: o presidente diminuiu e traiu a própria pátria.

Para a toda-poderosa secretária de Estado do governo Clinton, Madeleine Albright, o comportamento de Trump em Helsinki foi “não americano, ultrajante, ridículo e imbecil”.

A clássica revista The New Yorker afirma que o acontecimento foi um divisor de águas, que Trump vai ladeira abaixo e que “estamos vivendo a mais chocante história de espionagem já escrita”.

Cúpula da capitulação foi como um colunista do New York Times chamou a reunião.

Também houve fogo amigo dos conservadores, incluindo da FoxNews, uma das principais plataformas midiáticas para Trump. Neil Cavuto, âncora da rede, classificou o encontro de “repugnante”.

 Altas lideranças do Partido Republicano não deixaram por menos. Paul Ryan, porta-voz do partido na Câmara disse que o presidente precisa entender que a Rússia não é um aliado, e que não existe equivalência moral entre os dois países. Bob Corker, presidente do Comitê de Relações Externas do Senado, considera que Trump “nos fez parecer manipuláveis”. Para Ben Sasse, representante republicano do estado de Nebraska, onde Trump obteve quase 60% dos votos, a atitude foi bizarra e completamente errada.

Como esperado, os democratas vão além. O representante Steve Cohen chegou a pedir um golpe militar quando vociferou “Onde estão os nossos militares, pessoal? O Comandante em Chefe está nas mãos do nosso inimigo!”.

O Partido Democrata pressiona para que os líderes republicanos no Senado e na Câmara, onde estes têm maioria, levem aos respectivos plenários um pacote de medidas para restringir as possíveis ações do presidente relacionadas a Moscou. Entre os temores, a suspensão de sanções e o relaxamento na questão da Ucrânia.

Olhar especial para Rússia

Poderia-se alongar a lista de críticas, mas o esforço parece de pouca utilidade, pois todas possuem a mesma essência.

Mais vale concentrar no que não foi dito ou questionado. Por exemplo, por que o encontro entre Trump e Kim Jong-un despertou reações esperançosas? A resposta não é simples, mas há de se destacar pelo menos um ponto. Nesse caso, a expectativa é de subjugo da Coreia do Norte na eventual desnuclearização. Dar-se-ia a Kim Jong-un algo que o fizesse parecer poderoso diante de sua população, mas, em termos de relevância internacional, Pyongyang passaria à categoria de países secundários.

Esse não é, e nunca será, o caso da Rússia. Não somente pela extensão de seu poderio nuclear, mas por sua posição geográfica, suas relações externas e, sobretudo, pelo assento no Conselho de Segurança na ONU. Um mundo diferente é possível, mas, primeiro, seria preciso refazer a ordem internacional.

A elite política nos Estados Unidos não deseja uma nova ordem internacional; apenas que a Rússia não tenha voz na atual. E seu maior temor é que Trump não atenda a nenhum dos dois desejos, principalmente depois da turbulenta reunião da OTAN na semana anterior.

Em vez de aceitar e incentivar que as duas potências trabalhem para um mundo mais estável, os críticos domésticos preferem enfocar o suposto conluio entre a campanha de Trump e o governo russo para influenciar as eleições de 2016 a favor do republicano.

De fato, o processo eleitoral limpo e desimpedido é um dos pilares da democracia. Porta-vozes do sistema americano estão, portanto, no seu direito de reclamar. Deveriam, porém, começar a praticá-lo eles mesmos. Pois a interferência em políticas de outros países tem sido comum pelos Estados Unidos, mesmo contra aliados. Ou os críticos de Putin se esqueceram dos grampos contra Angela Merkel por Barack Obama? E das revelações da CIA a respeito de sua própria interferência na Cuba castrista ou no Chile de Allende? No início de 2018, o jornal The New York Times mostrou o longo histórico de influência americana, inclusive em eleições na Rússia.

Ponto para Trump

Com o distraimento em torno das incongruências de Trump na cúpula de Helsinque, perde-se a chance de se olhar o sistema internacional com objetividade. A aproximação entre as duas superpotências nucleares não resolve todos os problemas, nem afasta definitivamente os impasses geopolíticos e riscos de guerra. Não nos enganemos: Putin e Trump estão a anos-luz de serem ativistas da paz.

Mas o diálogo bilateral ajuda na estabilidade mundial, acelera a solução dos conflitos regionais, como na Síria e na Ucrânia, otimiza o combate ao terrorismo mundial, facilita o encerramento da guerra no Afeganistão, e muitos outros pontos nevrálgicos.

Como destacou Putin na entrevista, após chamar o governo americano de parceiro:

“A Rússia e os Estados Unidos enfrentam um novo conjunto de desafios. Isso inclui um desajuste perigoso de mecanismos para manter a segurança e a estabilidade internacionais, as crises regionais, as ameaças rasteiras do terrorismo e do crime transnacional, os problemas com efeito bola de neve na economia, os riscos ambientais…”

Ciente de que o mundo lhe assistia naquele momento, chamou atenção para a importância da Rússia no sistema internacional ao dizer que “Como grandes potências nucleares, temos a responsabilidade especial de manter a segurança internacional”. Para bom entendedor, não é preciso dizer muito mais. A Rússia não abre mão de sua posição de superpotência militar, não importando o quanto os americanos tentem restringir o alcance russo à região.

Stephen Cohen, um dos maiores especialistas em Rússia nos Estados Unidos, destaca que Trump fez o mesmo que todos os seus antecessores desde a presidência de Eisenhower: reunir-se com sua contraparte russa para tratar, sobretudo, de controle de armas nucleares. Porém, diferentemente dos presidentes anteriores, corre o risco de mergulhar em uma crise doméstica sem precedentes desde que assumiu o governo.

A mídia promoveu uma “corte de canguru”, disse Cohen, referindo-se à expressão idiomática para um tribunal extraoficial com o objetivo de condenar uma pessoa mesmo sem provas. “Veredito: culpado!”, concluiu.

Se o objetivo é abater Trump, o tiro pode sair pela culatra. Quase 70% dos republicanos acham que o presidente se saiu bem em Helsinque e 87% consideram a investigação sobre conluio uma distração.

Deixe que diguem, que pensem, que falem

Com a objetividade que falta às partes interessadas nos Estados Unidos, os russos anunciaram que os acordos verbais entre Putin e Trump começam a ser postos em prática. O porta-voz do Ministério da Defesa, Igor Konashenkov, falou que os militares russos estão prontos para tratar com suas contrapartes americanas sobre Síria, tratados de armas nucleares e outras questões de segurança internacional.

O Pentágono não comentou a declaração, mas a secretária de Imprensa, Sarah Sanders, confirmou que Trump instruiu o conselheiro de Segurança Nacional, o russofóbico John Bolton, a convidar Putin para um segundo encontro no próximo semestre, desta vez na Casa Branca.

Tomando por base as falas de Putin na entrevista coletiva, tem-se uma ideia da pauta: extensão do Tratado sobre Limitação de Armas Estratégicas, escudo de defesa programado pelos Estados Unidos no Leste Europeu e (des)armamento do espaço sideral.

Questões no Oriente Médio, sempre complicadas pela miríade de atores e pela pesada interferência internacional, também devem ser foco das conversas bilaterais daqui por diante, com destaque para a pacificação da Síria e o futuro do acordo nuclear do Irã.

Ao contrário do que tem feito Trump em relação aos aliados, Putin manteve apoio aos seus. Para ele, Turquia e Irã são fundamentais na estabilidade síria. Também ressaltou os objetivos pacíficos do programa nuclear iraniano, o que o coloca em rota de colisão com os falcões da política de segurança de Trump e muitos republicanos.

As conversas daqui para frente deverão abranger a retomada do Acordo de Minsk de 2015 para encerrar o conflito na Ucrânia. Segundo o embaixador Antonov, Putin fez propostas concretas nesse sentido, incluindo a de um referendo no Leste ucraniano. A Casa Branca, no entanto, já teria rejeitado a oferta.

Outra questão a acertar é a construção do gasoduto Nord Stream 2 entre Alemanha e Rússia, o que também enfrenta oposição da União Europeia. Trump diz que o gás americano surge como concorrente do russo, mas reconhece que o fornecimento local tem uma “pequena vantagem”. Possivelmente, em troca da suspensão de sanções contra a Rússia, o americano obterá de Putin a garantia de que seus aliados no Leste Europeu, como Polônia e Ucrânia, não sofrerão perdas brutais de receita no transporte de gás para a Europa, mesmo com o novo gasoduto. Em contrapartida, a Polônia e os Países Bálticos poderiam arrefecer a pressão pelo escudo de defesa americano, o que deixaria a Rússia mais tranquila. Um ponto que leva a outro na construção da estabilidade regional

Apesar da importância de todos esses temas, as próximas semanas devem girar muito mais em torno da investigação do procurador-especial, Robert Muller, a respeito do possível envolvimento do Kremlin nas eleições de 2016 e o indiciamento de 12 russos nos Estados Unidos.

Quanto a isso, Putin foi bem claro. Tem todo interesse em colaborar com as investigações americanas, desde que as mesmas condições sejam oferecidas pelos Estados Unidos em relação a práticas ilegais de agentes de inteligência e empresários americanos na Rússia.

Quid pro quo, citou o caso do investidor americano Bill Browder, acusado de desviar US$ 400 milhões na Rússia para a campanha de Hillary Clinton, com a ajuda de agentes americanos.

Vozes da razão

Em carta aberta, várias personalidades nos Estados Unidos – o linguista Noam Chomsky, a feminista e jornalista, Gloria Steinem, a ex-agente Valerie Plame, o cineasta Michael Moore, os analistas Stephen Cohen e Andrew Bacevich, o ex-governador do Novo México, Bill Richardson, entre outros – destacaram a importância do diálogo Rússia-EUA.

Para eles, os dois países estão em rota de colisão no momento perigoso em que há mais descontrole de armamentos nuclear e menos canais de comunicação entre ambos.

“Nenhuma vantagem política, real ou imaginária, poderia compensar as consequências se até mesmo uma fração dos arsenais dos Estados Unidos e da Rússia fosse utilizada em uma troca termonuclear”, afirmam na carta.

Quando vozes de esquerda ecoam os pensamentos de figuras da direita, como o realista Henry Kissinger, remetemo-nos ao clima na véspera da Guerra do Iraque, quando os neoconservadores beligerantes ignoraram ambos os lados. Talvez Putin e Trump não tivessem que discutir uma solução para a Síria hoje se George W. Bush não houvesse promovido a sandice da invasão.

Para Kissinger, a cúpula de Helsinque foi uma reunião necessária. “Defendi isso por vários anos. Mas (a ideia) foi submersa por questões domésticas americanas. Veja a Síria e a Ucrânia. Uma característica única da Rússia é que uma revolta em quase qualquer parte do mundo a afeta; se lhe damos a chance, ela (Rússia) também verá isso como uma ameaça”, sinalizando a oportunidade perdida em trazer Moscou para o lado do Ocidente.

Kissinger considera um erro de cálculo os americanos acharam que, mesmo antes da anexação da Crimeia, a Rússia adotaria as regras ocidentais. O avanço da OTAN para o Leste é um desafio à identidade da Rússia, alega Kissinger.

Uma aliança Rússia-EUA faria sentido do ponto de vista geopolítico, no sentido de impedir que a primeira se aproxime da China e, juntas, se contraponham ao poder americano. A Rússia não tem o poder e o potencial econômico da China e, sob esse aspecto, não ameaça os Estados Unidos. Vendo pelo lado dos estrategistas geopolíticos americanos, Trump estaria sendo mais sensato do que os alarmistas em casa.

Forrest Trump

Na entrevista em Helsinque, Trump disse que não pode “tomar decisões sobre política externa em um esforço fútil de apaziguar os críticos partidários, ou a mídia, ou os democratas que não querem fazer nada além de resistir e obstruir”.

Sobre o atual presidente dos Estados Unidos, Kissinger tem uma opinião incomum. “Acho que Trump pode ser uma daquelas figuras na história que aparece de tempos em tempos para marcar o fim de uma era e forçá-la a desistir de suas velhas pretensões. Não significa necessariamente que ele saiba disso ou que esteja considerando uma alternativa excelente”.

A afirmação da velha raposa da Guerra Fria faz lembrar o filme dos irmãos Cohen, “O Grande Lebowski”, quando o protagonista explica ao seu parceiro: “Não, você não está errado, Walter. Você só é um idiota”. O maior problema quanto à cúpula de Helsinque é que talvez Trump seja o “idiota” com razão. 

No filme, todos os planos dos parceiros dão errado, mas Lebowski planta uma semente.

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