Por que a eleição de López Obrador é importante além das fronteiras do México
por Thomas Adams
Traduzido do United States Studies Centre*
Após uma vitória esmagadora na eleição presidencial do México, Andrés Manuel López Obrador se tornou o presidente eleito de uma das democracias mais populosas do mundo.
A coalizão política que ele lidera, Juntos Haremos Historia – que engloba o recém-criado Movimiento Regeneracion Nacional (Morena), o Partido Trabalhista (Partido del Trabajo) e o Partido do Encontro Social (Partido Encuentro Social) – controla ambas as casas da legislatura mexicana.
Isso significa que López Obrador (mais conhecido no México e em todo o mundo por suas iniciais, “AMLO”) tem o mandato mais indiscutível na moderna história política mexicana, obtendo 53% dos votos – mais de 20% acima do rival mais próximo.
Além disso, representa a vitória eleitoral por maior margem no México desde 1982, o último ano de uma série notoriamente corrupta de eleições que manteve no poder, desde 1929 e praticamente sem oposição, o Partido Revolucionário Institucional (PRI).
Não foi surpresa, portanto, quando o ganhador do Prêmio Nobel peruano Mario Vargas Llosa considerou, em 1990, o México uma “ditadura perfeita”, após o PRI roubar a eleição presidencial do reformista Cuauhtemoc Cardenas em 1988.
AMLO é um progressista da velha guarda semelhante a Bernie Sanders e Jeremy Corbyn – de quem é amigo de longa data – em idade, formação, filosofia, curiosidade intelectual e ideologia política instrumentalista. Da mesma forma que Sanders e Corbyn, AMLO defendeu uma plataforma simplificada de ideias esmagadoramente populares e refrescantemente desprovidas de qualquer fetichismo tecnocrático. E assim como Sanders surgiu irresistivelmente como o político mais popular dos Estados Unidos e Corbyn resgatou o Partido Trabalhista do seu leito de morte eleitoral, AMLO conseguiu uma das mais impressionantes vitórias políticas da história política moderna.
Também me impressiona o potencial que o México de AMLO tem para se tornar um contrapeso eficaz ao “Trumpismo” – certamente mais do que o atual Partido Democrata ou o movimento americano autodenominado #Resistance. Para ser claro, a eleição de AMLO não se deu pelos Estados Unidos e Donald Trump. Pelo contrário, ela reflete uma profunda insatisfação com a desigualdade econômica, a corrupção e a violência que permeiam o México. Mas, como vários observadores apontaram, a única coisa que une os mais de 130 milhões de cidadãos mexicanos de todas as vertentes políticas, para não mencionar todos os candidatos presidenciais recentes, é um desdém sincero em relação ao líder de seu maior vizinho.
E como poderia ser de outra forma? A campanha presidencial de Donald Trump decolou em 2015 ao afirmar que os imigrantes mexicanos eram “estupradores”. Sempre que sua popularidade diminui ou que se sente ameaçado de alguma forma, Trump intensifica a retórica anti-imigração dirigida desproporcionalmente contra mexicanos e outros latino-americanos. Mas enquanto os demais candidatos se revezavam repudiando Trump ao longo da campanha, foi AMLO quem repetidamente comparou a retórica do presidente norte-americano em relação aos mexicanos e outros latino-americanos à de Hitler em relação aos judeus nos anos 1930.
Assim, mesmo que a vitória de AMLO não esteja diretamente relacionada à política externa de Trump ou dos Estados Unidos, os mexicanos estão cientes de que a influência norte-americana sobre suas diretrizes econômicas e sociais vem desempenhando um papel decisivo em seu destino desde a década de 1970. Desde aquela época e o fim do chamado “Milagre Mexicano”, as políticas econômicas do país têm sido cada vez mais ditadas pelo governo dos Estados Unidos, o Banco Mundial e o FMI.
Quase metade da população do México vive na pobreza; o país está repleto de governos locais corruptos e ineficazes; há uma diminuição no acesso à saúde e à educação de qualidade; há uma disputa violenta e incessante pelo controle das rotas para o maior e mais lucrativo mercado de narcóticos do mundo, agravada pela guerra desastrosa do próprio México contra as drogas. Tudo isso está inevitavelmente ligado à influência dos Estados Unidos sobre a política interna mexicana. O programa, iniciado por Barack Obama e continuado por Trump, de deter refugiados e dividir famílias na fronteira sul com o México, impedindo-os de chegar aos Estados Unidos, é uma política de imigração decidida no Distrito de Columbia, não no Distrito Federal Mexicano.
Em uma série de discursos coletados e publicados em um livro intitulado Oye, Trump! (“Listen Up, Trump!”), AMLO estabelece um programa em que afirma de forma clara a soberania mexicana sobre seus próprios assuntos econômicos e sociais internos. Ele desenvolve políticas sobre independência energética e preços agrícolas – que são particularmente importantes, dada a profunda desigualdade da região sul rural mexicana, onde o último senso demonstrou que mais de 60% das pessoas vivem na pobreza. Ele propõe regulamentação nas zonas de livre comércio, determinando que trabalhadores mexicanos recebam no mínimo um pagamento apropriado quando terceirizados por empresas americanas, que frequentemente pagam 30 dólares por hora nos Estados Unidos, tornando os benefícios semelhantes para os mexicanos e americanos. Ele também fez o México se comprometer com a defesa dos direitos dos imigrantes latino-americanos nos Estados Unidos, oferecendo assessoria jurídica aos milhares de cidadãos mexicanos e de outras nacionalidades envolvidos na guerra de Trump contra os refugiados.
Enquanto nenhuma dessas políticas isoladamente é uma golpe fatal contra os piores abusos do Trumpismo, juntas elas representam uma oposição mais coerente e convincente do que qualquer uma que o Partido Democrata norte-americano possa oferecer: tanto na ajuda prática aos refugiados centro-americanos reivindicando sua legalização nos Estados Unidos, quanto na assistência concreta aos cidadãos mexicanos (que constituem a espinha dorsal do trabalho de baixa renda dos Estados Unidos e são fonte de grandes lucros corporativos, possuindo, portanto, um poder coletivo ainda não exercido dentro da economia americana), forçando as empresas americanas a pagar-lhes remuneração proporcional ao custo de vida e semelhante por tipos de trabalho.
A implementação de tais políticas tem o potencial de produzir mais mudanças nos Estados Unidos do que o Partido Democrático, atualmente desprovido de poder formal, e do que um movimento de protesto incapaz de ir além de mera política gestual.
E, no entanto, alguns dos nossos analistas mais superficiais, pouco curiosos e até claramente infantis, que nunca tentaram se aprofundar na vasta obra publicada de AMLO, estabelecem uma ponte de conexão com Trump chamando Andres Manuel López Obrador de “populista”. A base para esta comparação, aparentemente, resulta do fato de que ambos afirmam que algum aspecto do sistema de suas respectivas nações é “manipulado” por certos grupos específicos. No caso de AMLO, a manipulação é feita por aqueles que receberam ou mantiveram poder político e econômico por meio de acordos indecorosos com grandes empresas multinacionais, por meio de um pacto faustiano com os cartéis de drogas ou por meio da intimidação de eleitores e de fraudes. Para Trump, tal manipulação é resultado de uma conspiração igualmente poderosa de imigrantes latino-americanos pobres e de muçulmanos.
Mas devemos mesmo acreditar que uma concepção tão simplista de “populismo” seja suficiente para destruir o abismo enorme entre dois líderes que têm posições diametralmente opostas em economia, educação, direitos das mulheres, salários e direitos trabalhistas, política externa, saúde pública, meio-ambiente e assistência a refugiados? Líderes cuja compreensão sobre a importância da modéstia pessoal, da probidade política, da transparência econômica e da curiosidade intelectual – para não mencionar o apreço pela profunda diversidade geográfica, cultural e social de seus respectivos países – não poderia estar mais distante uma da outra?
Além das fronteiras do México, a eleição de AMLO representa a possibilidade de se contrapor uma resistência real ao pior do “Trumpismo” nos Estados Unidos, enquanto também evidencia a falência da análise política em todo o mundo ao pressupor que toda a insatisfação com o status quo é igual, apesar de políticas públicas e de moralidade pessoal diametralmente opostas. A vitória histórica de AMLO, baseada no reconhecimento de uma perturbação e desigualdade sociais profundas e aliado a propostas populares simples e eficazes para aliviar tais problemas, é um dos marcos mais importantes na luta atual para se moldar uma política vitoriosa numa época dominada por Trump e outros reacionários.
Em um ano tão desprovido de razões para se ter esperança, estes são acontecimentos imensamente importantes.
Thomas Adams é coordenador Acadêmico e Professor de Estudos Americanos e História, no Centro de Estudos dos Estados Unidos (em conjunto com a Escola de Pesquisa Filosófica e Histórica da Universidade de Sidney).
Tradução por Solange Reis
*Artigo originalmente publicado em 09/07/2018, em https://www.ussc.edu.au/analysis/why-the-election-of-lopez-obrador-matters-beyond-mexicos-borders