Internacional

Putinfobia, a única alternativa bipartidária

Falcões e pombas em Washington concordam que Vlad é ruim. Trump pode agir como o realista solitário?

 

por Doug Bandow,

Traduzido do The American Conservative*

 

Poucas questões geram resposta bipartidária em Washington. O próximo encontro do presidente Donald Trump com o presidente russo, Vladimir Putin, é uma delas.

Democratas, que já pressionaram pela distensão com a União Soviética, agem como se Trump oferecesse ajuda e conforto ao inimigo. Os neoconservadores e outros falcões republicanos estão horrorizados da mesma forma, tendo pressionado por algo do tipo uma guerra com Moscou desde a anexação da Crimeia, em 2014. Os dois lados agem como se a União Soviética renascesse e a Guerra Fria recomeçasse.

Os críticos da Rússia apresentam uma longa lista de exigências a serem cumpridas antes de relaxar as sanções ou melhorar as relações. Putin poderia economizar tempo concordando em ser um vassalo americano.

No topo da lista de todo mundo está a interferência da Rússia nas eleições de 2016, que foi escandalosa. Proteger a integridade do nosso sistema democrático é interesse vital, mesmo que o povo americano, às vezes, trate os candidatos com desprezo. Antes de entrar para o governo, o conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, chegou a dizer que a intromissão russa era “um casus belli, um verdadeiro ato de guerra”.

No entanto, Washington se envolveu de maneira promíscua nas eleições de outras nações. Dov H. Levin, da Carnegie Mellon, estima que, entre 1946 e 2000, o governo dos Estados Unidos interferiu em 81 disputas eleitorais estrangeiras, incluindo a pesquisa de opinião russa de 1996. Funcionários americanos de inteligência aposentados admitem, abertamente, que Washington tem tentado influenciar as eleições de outras nações com regularidade.

É claro que os americanos são os mocinhos e favorecem políticos e partidos nos quais os outros povos votariam se compreendessem melhor seus próprios interesses – como nós fazemos, naturalmente. Infelizmente, governos estrangeiros não veem o Tio Sam como uma Virgem Vestal agindo em nome da humanidade. Na verdade, Washington promove resultados mais vantajosos para Washington. Talvez Trump e Putin possam assumir o compromisso bilateral de não se meter nas eleições de outros países.

Outro motivo para evitar a Rússia, argumentou o senador Rob Portman, é que “a Rússia ainda ocupa a Crimeia e continua alimentando um violento conflito no leste da Ucrânia”. Moscou anexou a Crimeia depois que um golpe de rua apoiado pelos Estados Unidos derrubou o eleito, mas altamente corrupto presidente ucraniano, Viktor Yanukovich. Historicamente, o território era russo, mas provavelmente foi convertido para a Ucrânia como parte de uma barganha política na luta pelo poder após a morte de Joseph Stalin. Provavelmente, a maioria dos crimeanos queria voltar para a Rússia. Entretanto, a anexação foi ilegal.

Um pouco como foi o desmembramento da Sérvia pelos Estados Unidos, separando o Kosovo depois que a poderosa OTAN entrou na guerra civil final, que surgiu da dissolução da Iugoslávia. É claro que os Estados Unidos estavam no seu direito – sempre estão! -, o que obviamente negou quaisquer obrigações criadas pelo direito internacional. Sempre com virtuosidade, Washington ignorou a limpeza étnica dos kosovares albaneses pós-vitória.

Com tudo isso, as reclamações de Washington sobre a Rússia soam um pouco hipócritas: faça o que eu digo; não faça o que eu faço. Em agosto de 2008, John McCain expressou indignação na guerra da Rússia e com a Geórgia, exclamando: “No século 21, nações não invadem outras nações”. Aparentemente, ele se esqueceu disso cinco anos antes, quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, com o apoio apaixonado de McCain. Nesse ponto os dois presidentes também podiam combinar.

Pior ainda é o conflito de Donbas, no leste da Ucrânia, entre o Exército ucraniano e os separatistas apoiados pela Rússia. As estimativas de mortes variam muito, mas estão na casa dos milhares. Moscou conseguiu enfraquecer Kiev e impediu sua adesão à OTAN. No entanto, isso não dá nenhuma justificativa legal, nem moral para a subscrição da revolta armada.

Infelizmente, os Estados Unidos também têm as mãos sujas. Washington apoia a brutal guerra da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos contra o Iêmen. Especialistas da área concordam que o conflito começou como só mais um episódio violento num país que sofreu conflitos civis e guerras por décadas. Os Hutus, uma milícia tribal, étnica, religiosa, juntaram-se ao seu inimigo de longa data, o ex-presidente Ali Abdullah Saleh, para expulsar o sucessor deste, Abdrabbuh Mansur Hadi. Riad e Abu Dhabi atacaram para reinstalar um regime flexível e conquistar o controle econômico. Os Estados Unidos se uniram aos agressores. Pelo menos a Rússia podia alegar que a segurança nacional estava em jogo, já que temia que a Ucrânia pudesse ingressar na OTAN.

O ataque da “coalizão” transformou o conflito iemenita em uma luta sectária, forçou os hutus a buscar ajuda iraniana e permitiu que Teerã sangrasse seus rivais do Golfo a baixo custo. Grupos de direitos humanos concordam que a grande maioria das mortes de civis e a maior parte da destruição foram causadas pelos bombardeios da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, com a assistência direta de Washington.

A crise humanitária inclui uma enorme epidemia de cólera. As consequências de segurança incluem o fortalecimento da al-Qaeda na Península Arábica. Talvez os governos dos Estados Unidos e da Rússia possam combinar de abandonar juntos a guerra por causas frívolas.

Carnificina humana e destruição física estão espalhadas na Síria. Levará anos para se reconstruir casas e comunidades; as centenas de milhares de mortos nunca podem ser substituídas. No entanto, Moscou fez de tudo para manter o presidente sírio Bashar al-Assad no poder. Luke Coffey e Alexis Mrachek, da Heritage Foundation, exigem que Moscou acabe com o apoio a Assad “e demonstre genuína disposição de trabalhar com a comunidade internacional para terminar a guerra civil na Síria”. Leon Aron, do American Enterprise Institute, recomendou “a verdadeira retirada da Rússia da Síria, especificamente cedendo o controle da base aérea de Hmeymim e desmantelando expansões recentes da instalação naval de Tartus”.

Mas os Estados Unidos não podem reclamar. A intervenção de Washington foi desastrosa, primeiro desencorajando um acordo negociado, promovendo insurgentes moderados que, em grande parte, não existiam, apoiando radicais, incluindo a afiliada da al-Qaeda (lembre-se do 11/9 !?) contra Assad, aliando-se simultaneamente a curdos e turcos na luta contra o Estado Islâmico, embora virtualmente todos no Oriente Médio tivessem razões para se opor ao grupo.

Pelo menos a Rússia, convidada pelo governo reconhecido, tinha um motivo para estar lá. A aliança de Moscou com a Síria remonta à Guerra Fria e não representa ameaça para os Estados Unidos, que são aliados de Israel, dos Estados do Golfo, da Turquia, da Jordânia e do Egito. Washington também possui instalações militares em Bahrein, Djibuti, Egito, Iraque, Israel, Jordânia, Kuwait, Omã, Catar, Arábia Saudita, Turquia e Emirados Árabes Unidos. Para a maioria dos países do Oriente Médio, Moscou é basicamente uma moeda de barganha para extorquir mais benefícios dos Estados Unidos. Trump poderia propor que os dois países saíssem da Síria.

Coffey e Mracek também expressam indignação pelo fato de Moscou “ter transformado em arma as suas exportações de gás natural para a Europa, desligando a torneira quando os países ousam ir contra sua vontade”. Os clientes da Rússia não devem ter medo de coerção via corte de gás. Naturalmente, os Estados Unidos nunca usam seu poder econômico para fins políticos. Além de impor rotineiramente sanções econômicas a uma série de nações que fazem parte de sua lista negra. E penalizar não apenas as empresas americanas, mas as companhias de todas as outras nações.

De fato, o governo Trump insiste que as empresas de todos os países parem de negociar com o Irã. O governo dos Estados Unidos bloqueará os infratores no mercado americano ou irá impor multas pesadas contra eles. O governo Trump pretende penalizar até seus aliados europeus, os mais vulneráveis ​​à política energética russa. O que sugere um modus vivendi que os amigos dos Estados Unidos provavelmente aplaudiriam: Washington e Moscou poderiam prometer não aproveitar as vulnerabilidades econômicas de outras nações para fins políticos.

A ciberguerra é uma variante do conflito econômico. Mracek citou o “ciberataque calamitoso NotPetya” como “parte do esforço da Rússia para desestabilizar a Ucrânia ainda mais do que no passado”. Sim, um ato criminoso. É claro que praticamente a mesma coisa se pode dizer do Stuxnet, que se acredita ter sido um ataque conjunto americano-israelense ao programa nuclear iraniano. E há relatos de tentativas dos Estados Unidos de dificultar, da mesma forma, o desenvolvimento de mísseis norte-coreanos. Alguns consideram tais ataques diretos a outros governos como se fossem atos de guerra. Washington se juntaria a Moscou na promessa de se tornar um bom cidadão cibernético?

Praticamente todos questionam a Rússia nos direitos humanos. Moscou fica muito aquém, com o controle de Putin sobre a mídia, a manipulação do processo eleitoral e a violência contra os que são vistos como inimigos do regime. A este respeito, pelo menos, os Estados Unidos são muito melhores.

Mas muitos aliados dos Estados Unidos também fracassam nesse teste. O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, por exemplo, criou um Estado autoritário, mantendo apenas o formato de democracia. O presidente do Egito, Abdel Fattah al-Sisi, construiu uma tirania mais brutal do que a de Hosni Mubarak. A monarquia da Arábia Saudita não permite liberdade religiosa, nem política, e tornou-se mais repressiva sob o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman. Não é só Trump que, na maior parte do tempo, permanece calado em relação aos ataques às liberdades básicas das pessoas. O mesmo acontece com muitos dos críticos do presidente, que expressam horror de que ele venha a lidar com um homem como Putin.

Moscou não será um parceiro fácil para os Estados Unidos. Explicando que “ninguém nos deu ouvidos”, Putin declarou, antes de assumir, em março: “Agora vocês prestam atenção!” Chegar a um acordo é inevitável, mas isso exige respeito pelos interesses de ambas as nações. Um ponto de partida poderia ser retomar plenamente as embaixadas das duas nações e abordar o controle de armas, como o titubeante Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário e o Tratado de Redução de Armas Estratégicas, prestes a expirar. Um entendimento maior, baseado na expansão da aliança da OTAN, em troca da retirada da Rússia do conflito em Donbass valeria a pena.

Nem os Estados Unidos, nem a Federação Russa podem permitir que suas relações se deteriorem na direção de outra Guerra Fria. A Rússia é importante demais em muitas questões, inclusive atuando como um contrapeso à China, o desafio geopolítico mais sério para os Estados Unidos.

Espero que o próximo encontro dê início ao difícil processo de reconstrução de uma relação de trabalho entre Washington e Moscou.

 

Doug Bandow é membro sênior do Cato Institute. Ex-assessor especial do presidente Ronald Reagan, é autor de “Foreign Follies: America’s New Global Empire”.

 

Tradução por Solange Reis

*Artigo originalmente publicado em 05/07/2018, em http://www.theamericanconservative.com/articles/putin-phobia-the-only-bipartisan-game-in-town/

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