Acordo de paz problemático da Colômbia: hora de engolir sapo
por Colette Rausch e Thomas Stevenson
Traduzido do War on the Rocks*
Há um ditado que os colombianos usam quando falam sobre fazer algo desagradável, mas necessário: “Às vezes, você tem que engolir alguns sapos”. Atualmente, como o aumento de violência, crime e produção de drogas tensiona o marco do acordo de paz do país, os colombianos precisam colocar alguns sapos no cardápio. Especificamente, o governo precisa repensar sua abordagem do “eu sozinho” para a segurança em ex-redutos rebeldes das FARC. Embora segmentos significativos da população e até defensores da justiça transicional internacional possam tremer só de pensar, a Colômbia precisa encontrar uma maneira de explorar o conhecimento local dos rebeldes ex-FARC e, em muitos casos, reintegrá-los para reforçar a segurança e a estabilidade, e manter a promessa de impedir que a paz seja passageira.
Em novembro de 2016, quando o governo colombiano assinou um acordo de paz com os rebeldes das FARC, muitos colombianos e observadores do mundo todo suspiraram com alívio. Com duas canetadas, o presidente Juan Manuel Santos e o chefe das FARC, Rodrigo Londoño (vulgo “Timochenko”), encerraram oficialmente o mais violento conflito no Hemisfério Ocidental.
Avancemos para o verão de 2018.
A esmagadora maioria dos combatentes rebeldes das FARC manteve a parte final do acordo (embora um pequeno contingente de “dissidentes” tenha decidido desertar), saindo das montanhas e selvas onde se abrigaram, e entregando as armas. Mas as antigas fortalezas das FARC não estão usufruindo da paz recém descoberta. Em vez disso, regiões como Chocó, Cauca e norte de Santander se viram presas no fogo cruzado de uma luta amarga entre grupos decididos a controlar o território e os seus recursos. O mais notável desses recursos é a coca, que cresce tão bem no solo fértil e que há muito tempo tornou a Colômbia sinônimo de narcotráfico. Como as negociações aproximaram a perspectiva de paz, a produção de cocaína começou a subir, estabelecendo novos recordes em 2017.
O mercado anual de US$ 20 bilhões da droga agora está nas mãos de uma “nova geração” de traficantes de drogas: grupos do crime organizado (às vezes chamados de BACRIM – Bandas Criminais) e novas versões dos esquadrões da morte paramilitares de antigamente. Suas fileiras provavelmente serão infladas pelo influxo de pessoas da Venezuela, cujo desespero as transforma em recrutas principais para o crime organizado. Enquanto esses grupos lutam por domínio, um grande número de pessoas foge de suas casas, e a taxa de homicídios está aumentando. O Conselho de Segurança das Nações Unidas informou que 121 defensores dos direitos humanos e organizadores comunitários foram assassinados em 2017, muitos dos quais haviam trabalhado na erradicação da coca ou tentado defender o acesso das comunidades locais à terra e aos recursos.
Como a promessa de um futuro mais promissor, pacífico e próspero para as regiões anteriormente controladas pelas FARC na Colômbia evaporou tão rapidamente? A resposta simples é que muitas dessas áreas são controladas agora por grupos predatórios do crime organizado – ou por ninguém. Quer você tenha visto as FARC como assassinos, bandidos, traficantes de drogas ou todas essas opções, a realidade é que sua presença constituía a única forma de governança na maioria dos territórios rurais que ocupavam. Sim, as FARC cometiam violência contra os civis. Mas o modus operandi era cobrar uma taxa de proteção e depois deixar as casas e as empresas em paz, mantendo a paz, ainda que de forma às vezes arbitrária e sumária.
A prontidão e a capacidade das FARC de fornecer segurança e alguma forma de governança foram esquecidas, ignoradas ou rejeitadas pelos negociadores do governo colombiano, que insistiram que paz significava o êxodo completo e imediato de combatentes das FARC das montanhas e selvas. Com negociações mais criativas, os guerrilheiros poderiam ter sido autorizados a participar (junto com as autoridades colombianas) na governança do território e a fazer parte (junto com os militares colombianos) de uma força de segurança híbrida, enquanto o governo ampliava sua presença gradualmente. Em vez disso, sua rápida desmobilização deixou muitas áreas rurais desprovidas de qualquer estrutura de governança significativa. Meses após o início da retirada das FARC, o então presidente Juan Manuel Santos empregou tardiamente milhares de policiais e militares para tentar conter a violência, mas o BACRIM e outros grupos armados já tinham estabelecido uma base.
A Colômbia não é de modo algum o primeiro país que tentou apressar sua transição para fora do conflito, fechando determinadas funções do setor público aos ex-combatentes. Muitos americanos, e principalmente muitos iraquianos, lembram como, em 2003, o governo de transição do Iraque proibiu rapidamente membros do Partido Ba’ath, de Saddam Hussein, de ocupar postos públicos, faculdades e escolas, para perceber depois que não havia ninguém com o conhecimento necessário para manter a sociedade em funcionamento. O resultado não foi apenas o caos em termos de serviços públicos, mas também – graças ao expurgo dos baathistas da polícia e das Forças Armadas – um vácuo de segurança que foi logo preenchido pelos insurgentes.
A prática de expurgar, processar ou mesmo de marginalizar pessoas associadas ao regime anterior é tão comum que os estudiosos criaram um termo para explicar por que ela tem um apelo tão difundido: “lógica da adequação”. Para quem foi torturado, aterrorizado ou maltratado de qualquer forma, forçar para a margem da vida pública os ex-oficiais e combatentes, especialmente os suspeitos de abuso de direitos, parece a coisa mais apropriada a fazer. Isso aconteceu desde a Uganda até à ex-Iugoslávia. Essa “lógica” ressoa os princípios da justiça transicional, como acabar com a impunidade, descobrir a verdade sobre os abusos e prestar contas. Em muitos casos, no entanto, esses princípios se reduzem a slogans que negligenciam nuances, complexidade e contexto: “dever de processar”, vítimas têm “direito à justiça” e “não há paz sem justiça”.
A Colômbia sempre foi capaz de seguir o caminho da “lógica da adequação” por causa das atitudes predominantes em relação às FARC. A maioria dos colombianos despreza o grupo e culpa seus combatentes por muitos dos problemas do país, como evidenciado pelo fracasso dos candidatos das FARC nas recentes eleições legislativas da Colômbia. “As FARC são desprezadas pelo povo colombiano, que tem grande necessidade de justiça vingativa, como as pesquisas demonstram consistentemente”, disse o analista Jorge Restrepo. A maioria – embora com pouco margem – votou contra a primeira versão do acordo de paz no referendo de outubro de 2016 porque muitos membros das FARC escapariam da punição e seriam aceitos de volta à sociedade. O acordo rejeitado pelos eleitores isentava da prisão todos os criminosos mais notórios (os que haviam cometido crimes contra a humanidade), desde que respeitassem o processo de paz e cooperassem com uma comissão da verdade. O governo e as FARC negociaram rapidamente um acordo revisado, cujo destino o governo teve o cuidado de não confiar a um segundo referendo; o acordo renegociado foi direto no Congresso em novembro de 2016, que o ratificou.
A adoção da lógica de adequação na Colômbia também foi incentivada pela popularidade global da “justiça de transição”, que se tornou uma indústria em expansão nas últimas décadas. A justiça transicional oferece uma panóplia de remédios que permitem que países e sociedades dominados por conflitos encarem o passado, de modo que (segundo a lógica do conceito) não estejam fadados a repeti-lo. Por exemplo, a justiça transicional engloba mecanismos para estabelecer a verdade dos acontecimentos, reconhecer o sofrimento das vítimas, fornecer compensação pelos danos sofridos, responsabilizar os abusadores de direitos, prevenir futuros abusos e promover a cura social e a reparação do tecido social. Os mecanismos mais conhecidos são os tribunais de crimes de guerra, como visto nos Bálcãs e na África Ocidental, e as comissões da verdade e reconciliação se tornaram famosas através das tentativas da África do Sul de abordar o legado do apartheid. Outros instrumentos de justiça transicional incluem a construção de memoriais, pagamento de reparações e programas de tratamento de traumas.
No entanto, a justiça de transição conseguiu poucos sucessos evidentes. No pós-genocídio de Ruanda, por exemplo, inicialmente, os esforços de justiça transicional tropeçaram quando confrontados com o desafio de processar dezenas de milhares de pessoas acusadas de massacrar seus vizinhos ou roubar propriedade. Os acusados foram deixados em prisões, em condições desumanas, à espera de um poder judiciário sobrecarregado para ouvir seus casos. Posteriormente, porém, o governo de Ruanda introduziu os tradicionais tribunais gacaca, que cuidaram de casos localmente e de forma relativamente rápida, num processo que produziu mais do que algumas poucas decisões arbitrárias, mas parece ter ajudado tutsis e hutus a olhar para além de seu terrível passado.
No Nepal, o Acordo Abrangente de Paz de 2006, que encerrou dez anos de conflito entre o governo e os rebeldes maoístas, prometeu plena responsabilização por meio de uma comissão da verdade, processo contra os infratores e indenizações às vítimas. No entanto, durante os 10 anos seguintes, o governo avançou pouco nessa direção, perdendo a confiança de muitas vítimas no processo. Deve-se notar que a falta de progresso não foi um acidente: políticos de ambos os lados relutaram em ver a si mesmos, ou aos militares, serem levados aos tribunais para responder por suas ações durante a guerra civil.
Também é importante observar que muitos Estados fizeram pouco ou nada para punir os agressores de direitos, mas sofreram alguns efeitos negativos como consequência. A Espanha é um exemplo perfeito. A brutal guerra civil espanhola durou três anos e foi seguida por três décadas de ditadura. Depois, aparentemente sem qualquer vergonha do seu passado horrível, a Espanha entrou na era moderna como qualquer outro Estado europeu próspero e pacífico.
O que devemos tirar dessas abordagens contrastantes para lidar com os pecados do passado? Não há mesmo paz sem justiça, como insistem os ativistas de direitos humanos? Ou, se o objetivo é acabar com a violência e gerar paz suficiente para uma sociedade avançar, pode-se aceitar uma forma mais limitada de responsabilidade formal, que seja pragmática e adaptada ao contexto específico?
Por um lado, há um crescente consenso nos círculos políticos de que os países (geralmente com apoio internacional) devem fazer todo o possível para punir crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra, incluindo o processo contra os perpetradores. Mas os arquitetos da paz abrem um novo horizonte de possibilidades quando trocam a “lógica da adequação” pelo que poderia ser chamado de “lógica das consequências” – determinar que tipo de acordo negociado seria o mais benéfico para a sociedade. Por exemplo, seria possível o Estado tirar alguma coisa dos cidadãos construtores da paz para dar um pouco aos que não planejaram ou arquitetaram grandes violações de direitos humanos? Assim como muitos colombianos em regiões disputadas aprenderam a fazer, pode o Estado trabalhar com inimigos de outrora, mesmo que alguns setores da sociedade considerem a parceria repugnante?
Este é um movimento contra-intuitivo, mas não totalmente novo. Na verdade, não precisamos sair da América do Sul para ter um exemplo. Raul Alfonsín ascendeu à presidência da Argentina em 1983, com a intenção de sancionar fortemente os líderes militares por violações grosseiras dos direitos humanos cometidos sob a junta que governou o país de 1976 até 1983. Não muito tempo depois de ordenar a investigação do regime militar, ele começou a ver retrocessos. Em 15 de abril de 1987, o tenente-coronel Aldo Rico assumiu o controle das Escolas de Infantaria Campo de Mayo, alegando que as Forças Armadas estavam sendo impugnadas por combater uma “guerra justa” contra a subversão marxista; logo, cerca de duzentos oficiais se juntaram a ele. Alfonsín enfrentou uma decisão nada invejável: manter sua convicção de que o caminho correto era punir centenas ou milhares de violadores de direitos no Exército ou fazer um acordo para garantir a sobrevivência da jovem democracia argentina?
Ele escolheu a última opção. Depois de entrar nas Escolas de Infantaria para pedir calma, Alfonsín prometeu jurisdição às cortes militares sobre as ofensas à “Guerra Suja” e cutucou o judiciário para limitar os processos. Muitos argentinos ficaram consternados quando julgamentos circunscritos produziram apenas cinco condenações de militares. Mas as concessões calculadas de Alfonsín garantiram a adesão dos militares ao processo, que pagou dividendos de curto e longo prazos: Rico se entregou, reprimindo a insurgência que poderia facilmente ter desencadeado uma guerra civil. Desde então, os militares argentinos não desafiaram o controle civil.
A comparação histórica não é perfeita: a força das FARC, cansada da guerra, não representava ameaça à democracia colombiana, como os militares acuados na Argentina – em parte porque, apesar dos anos de tortura e desaparecimentos, o Exército argentino ainda desfrutava de algum apoio popular. No entanto, tanto as FARC quanto os militares argentinos são responsáveis por assassinato em massa, entre outros crimes; apenas com base nos fatos, os membros de ambos os grupos deveriam cumprir longas penas de prisão (assim como os membros das Forças Armadas colombianas, que cometeram execuções extrajudiciais generalizadas). Como no caso da Argentina, sem o apoio das FARC, a perspectiva de construir uma paz duradoura na Colômbia sempre será duvidosa.
É hora de engolir alguns sapos. A Colômbia precisa urgentemente aplicar flexibilidade e pragmatismo de Alfonsín, e repensar sua relação com os ex-FARC. É muito tarde para estabelecer uma força de transição e convidar ex-comandantes das FARC a participar da governança dos territórios rurais, enquanto o governo amplia sua presença. Mas não é tarde demais para reimaginar o grupo guerrilheiro como um parceiro indispensável, em vez de adversário. Se a reintegração de ex-rebeldes nas forças de segurança é uma ponte longe demais, o Estado deveria considerar a possibilidade de explorar seus conhecimentos como consultores militares. Quem melhor para ajudar o Estado a restabelecer a estabilidade nessas regiões do que o grupo que fez exatamente isso por anos? Se as FARC puderem confiar no governo colombiano em ajudar a protegê-los (um grande “se”, considerando que, desde o acordo de paz, 44 ex-FARC, juntamente com 18 membros de suas famílias, foram mortos por criminosos que visam as fortalezas), o governo deve oferecer alguma confiança em troca?
Ex-membros das FARC também podem desempenhar outros papéis, aproveitando seu imenso conhecimento local. Alguns deles manifestaram o desejo de se tornar administradores da comunidade ou guias turísticos. Outros, que serviam às FARC em serviços médicos, como enfermeiros, poderiam ser treinados para apoiar programas de saúde rural ou ajudar o governo a prestar ajuda humanitária. Oportunidades de emprego desse tipo deveriam fazer parte do processo de paz, mas ainda não se concretizaram.
E quanto aos Estados Unidos, antigo aliado da Colômbia para tudo em questão de segurança? Apesar dos momentos de cuidado exagerado ou em benefício próprio (veja o “Plano Colômbia”, um investimento tremendo dos Estados Unidos na segurança da Colômbia, que começou em 2000 e totalizou mais de US$ 10 bilhões em 15 anos), os maciços investimentos americanos em segurança (através da USAID) dão ao governo dos Estados Unidos o poder de opinar. Mas os Estados Unidos também precisam estar cientes dos perigos de um compromisso excessivamente rígido com a justiça retributiva. Em abril de 2018, as autoridades colombianas detiveram Jesus Santrich, um líder de alto escalão das FARC, por acusação de tráfico de drogas depois que os Estados Unidos pediram sua extradição. Não se sabe se os que ordenaram sua prisão entenderam que a decisão causaria arrepio nas fileiras desmobilizadas das FARC, alimentando os temores de que o acordo de paz fosse pouco mais do que um subterfúgio para enganá-los e desarmá-los. A prisão de Santrich levou o infame comandante de guerrilha, Hernan Dario Velasquez, “El Paisa”, a abandonar um campo de reintegração, onde havia trabalhado para garantir o cumprimento do acordo pelas FARC. Agora, há a preocupação de que o El Paisa possa assumir o comando de 1.200 combatentes das FARC que nunca se desarmaram e que continuaram a traficar drogas. O governo dos Estados Unidos precisa considerar se a prisão de personagens repugnantes, como Santrich, justifica colocar em risco anos de construção de paz nos quais se investiu tanto.
Ninguém diria que o processo de paz da Colômbia não teve problemas – mas isso é normal. Nem tudo está perdido, apesar de toda a preocupação e dos rumores sobre o colapso do acordo de paz. Claramente, o processo foi uma evolução em relação às tentativas anteriores de se negociar a paz de várias maneiras, inclusive dando às vítimas (cinco delegações totalizando 60 pessoas) e mulheres (três delegações totalizando 18 pessoas) um lugar na mesa de negociação. Enquanto isso, a liderança das FARC se manteve firme no compromisso com o acordo assinado meses antes: recentemente, Timochenko se dirigiu a seus antigos camaradas, instando-os a manter o objetivo. Embora o novo presidente da Colômbia, Iván Duque, há muito tempo se oponha à imunidade aos combatentes das FARC, ele também é um pragmático. A situação de segurança em declínio nas antigas áreas das FARC exige uma resposta dramática do novo presidente. Duque talvez descubra que o público vai começar a apoiar seus esforços para tornar ex-rebeldes das FARC em aliados, em vez de alvos, já que os colombianos aceitam gradualmente que o acordo de paz veio para ficar e voltam sua atenção para preocupações mais prementes.
Colette Rausch é consultora sênior do United States Institute of Peace (USIP). Dirigiu e participou de missões e projetos em vários países envolvidos ou saindo de conflitos, e trabalhou para o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e para a Organização para Segurança e Cooperação na Europa, antes de ingressar na USIP em 2001. Seu último livro foi “Fighting Serious Crimes: Strategies and Tactics for Conflict-Affected States”.
Thomas Stevenson é o fundador da Strata Conflict Consulting e co-autor de Fighting Serious Crimes: Strategies and Tactics for Conflict-Affected States”. De 2015 a 2018, morou em Bogotá, Colômbia, onde apoiou o processo de paz em curso no país, trabalhando em vários projetos da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional e como professor de negociação na Academia de Pós-Graduação da Polícia Colombiana.
Tradução por Solange Reis
Artigo originalmente publicado em 03/07/2018, em https://warontherocks.com/2018/07/colombias-problematic-peace-accord-time-to-swallow-some-frogs/