Trump esvazia ação afirmativa para ingresso em universidades
por Tatiana Teixeira
Em mais uma decisão que revê políticas adotadas na administração Barack Obama (2009-2017), o governo Donald Trump anunciou, em 3 de julho, o abandono das diretrizes de ação afirmativa que orientavam universidades e faculdades a considerarem “raça” como um critério de ingresso de novos alunos nessas instituições. Adotadas pelo Departamento de Educação e pelo da Justiça entre 2011 e 2016 na tentativa de promover a diversidade nos campi americanos, as recomendações da gestão democrata confirmavam a legitimidade desse critério, no âmbito de jurisprudência estabelecida pela Suprema Corte, estimulando as universidades “a promoverem a diversidade voluntariamente e a evitarem o isolamento racial”.
“As instituições não são obrigadas a implementar abordagens neutras quanto à raça, se, em sua avaliação, essas abordagens forem impraticáveis”, dizia a diretriz de 2011, referindo-se ao tom adotado pela administração anterior, do republicano George W. Bush. “Em alguns casos, abordagens neutras quanto à raça são impraticáveis, porque serão ineficientes para chegar à diversidade que a instituição busca”, completa o texto.
Desmonte de políticas
Segundo o procurador-geral dos EUA, Jeff Sessions, trata-se, porém, de política “desnecessária, ultrapassada, incompatível com a legislação em vigor, ou de outra forma imprópria”. Essa revisão se enquadra – completa o secretário – no esforço de restabelecer o “Estado de Direito”. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte permite, mas não obriga a adoção do critério racial. Conforme precedente estabelecido em 1978 (Regents of the University of California v. Bakke) e desde então reforçado em algumas decisões, ainda que com contornos mais limitados, as escolas não podem implantar um sistema de cotas raciais no processo admissional, por violar a Equal Protection Clause. Estão autorizadas, porém, a usar raça como um dos fatores na seleção.
O anúncio de Sessions também se enquadra na busca do atual governo de afrouxar marcos regulatórios em diferentes áreas (como aconteceu de forma ostensiva na EPA) e, no caso do Departamento de Justiça, de pôr fim à prática de publicar “documentos de diretrizes”, que têm “o efeito de adotar novas exigências reguladoras, ou emendar a legislação”.
Em dezembro de 2017, 25 documentos dessa natureza já haviam sido revogados, aos quais outros 24 se somaram no dia 3 de julho passado. Destes últimos, sete são diretrizes políticas relacionadas com ação afirmativa, uma questão historicamente sensível e politicamente polarizadora nos Estados Unidos. Diante de todas as previsões de mudanças na composição étnico-racial da população americana, com o avanço das minorias, políticas de discriminação positiva, juntamente com a questão migratória, tornaram-se temas cada vez mais alvo de preocupação e do ativismo dos conservadores, que denunciam uma “discriminação reversa”. Os números não sustentam essa narrativa.
Em uma carta conjunta, as pastas de Educação (ED) e de Justiça (DOJ, nas siglas em inglês) alegaram que essas normas “defendem preferências e posições políticas além das exigências da Constituição”. Assim, com essa decisão, a política de ação afirmativa recua até o governo de George W. Bush, quando a adoção de políticas afirmativas era desestimulada. Na gestão do Bush filho, a orientação às instituições de ensino era buscar uma abordagem “de neutralidade racial”, considerando a raça do potencial aluno apenas na ausência de outros critérios para estimular a diversidade.
Retrocesso
O anúncio foi visto por grupos de defesa dos direitos civis e pelos democratas como um recuo e uma maneira de enfraquecer a política de discriminação positiva no país. “A reversão por parte do governo das vitais diretrizes de ação afirmativa ofende os valores e a promessa de oportunidade para todos da nossa nação”, criticou a líder da minoria na Câmara de Representantes, Nancy Pelosi (D-CA).
Em um comunicado, a presidente e diretora-executiva da Lawyers’ Committee for Civil Rights Under Law, Kristen Clarke, declarou que “condenamos o ataque com motivações políticas do Departamento da Educação à ação afirmativa e a tentativa deliberada de desestimular universidades e faculdades de buscar a diversidade racial nas nossas universidades e faculdades”. Como aponta a presidente da National Education Association (NEA), Lily Eskelsen García, “a ação afirmativa provou ser um dos meios mais eficazes de criar salas de aula inclusivas e com diversidade”.
Para Lily García, esse movimento do governo Trump ressalta ainda mais a importância (política e social) da indicação do próximo juiz para a vaga em aberto na Suprema Corte. “O presidente Trump sinalizou que pretende indicar um nome para a Suprema Corte que vai declarar que a ação afirmativa é inconstitucional nas nossas escolas. A ação do Departamento de Educação antecipa quanto está em jogo no processo de nomeação da Suprema Corte”, advertiu a presidente da NEA.
Algumas universidades já disseram que não vão recuar.
Pressão sobre as instituições de ensino
Essas diretrizes não têm força de lei, mas funcionam como um termômetro da política de um governo para determinadas áreas. Além de considerar as novas orientações como “profundamente lamentáveis e contraproducentes”, a reitora da Escola de Direito da Howard University, Danielle Holley-Walker, advertiu que é um sinal de que, no governo Trump, o DOJ agirá agressivamente contra as instituições que continuarem a usar a raça como fator no processo seletivo de ingresso. Nesse sentido, correrão o risco de serem investigadas, ou processadas pelo governo, ou mesmo de perder repasse de verbas do ED. O procurador-geral Jeff Sessions já deixou claro que usará a linha-dura no tema. De acordo com a imprensa americana, o governo Trump teria dito que usará os recursos da Divisão de Direitos Civis do DOJ para “investigar e processar universidades no que diz respeito a políticas admissionais de ação afirmativa consideradas discriminatórias contra candidatos brancos”. Inegável o caráter dissuasório dessa medida.
Processo contra ‘discriminação’ em Harvard
Anurima Bhargava, que dirigiu a área responsável pelo cumprimento dos direitos civis nas escolas durante o governo Obama e que ajudou a redigir as diretrizes agora em xeque, vê na atual revisão um “ataque totalmente político”, em meio à ação judicial em aberto contra a Universidade de Harvard.
Em 2014, o grupo Students for Fair Admissions apresentou uma denúncia contra Harvard por suas políticas de admissão apontadas como “discriminatórias” e que estariam, segundo o texto da ação judicial ainda em curso, “em violação do Título VI da Lei de Direitos Civis de 1964”. Essa seção proíbe a “discriminação com base em raça, cor e origem nacional nos programas e atividades que recebem assistência financeira federal”. Nesse processo, em que Harvard se encontra atualmente sob uma investigação paralela do DOJ, demandantes americanos de origem asiática alegam serem continuamente prejudicados em sua tentativa de ingresso.
A Universidade de Harvard garante que continuará a considerar raça como um critério admissional para criar “uma comunidade diversa no campus, onde estudantes de todas as condições tenham a oportunidade de aprender com cada um”. Segundo a porta-voz da instituição, Melodie Jackson, a universidade “continuará a defender, com vigor, o seu direito e o de outras universidades e faculdades a considerarem a raça como um fator entre muitos outros nas admissões à faculdade, (direito) o qual vem sendo mantido pela Suprema Corte por mais de 40 anos”.
Para o presidente e conselheiro-geral do conservador Center for Equal Opportunity, Roger Clegg, “toda questão de usar a raça na educação está sendo vista com um novo olhar, à luz do fato de que não são apenas estudantes brancos sendo discriminados, mas asiáticos e outros também”. Clegg alega que “conforme o perfil demográfico do país muda, isso se torna mais e mais problemático”.
Impacto da Suprema Corte
A ação contra Harvard é liderada por Ed Blum, o mesmo que ajudou a estudante branca Abigail Fisher a processar a Universidade do Texas por discriminação no ingresso, em 2016. “Damos as boas-vindas a qualquer ação do governo que elimine preferências e classificações raciais nas admissões às faculdades”, frisou Blum.
Em Fisher v. University of Texas at Austin, a Suprema Corte considerou que as instituições poderiam usar raça como critério, entre muitos outros, sem impor cotas, levando o Departamento de Educação do então governo Obama a reafirmar sua posição sobre a política de ação afirmativa. “Permanece como um desafio ao sistema educacional do nosso país reconciliar a busca da diversidade com a promessa constitucional de tratamento igualitário e de dignidade”, escreveu o juiz Anthony Kennedy em sua alegação após a votação do caso por uma maioria de 4 a 3.
A posição de Kennedy e esse resultado decepcionaram os conservadores. Agora, com a aposentadoria desse juiz conhecido como um swing vote – ora votando com progressistas, ora com os conservadores –, os republicanos esperam conseguir substituí-lo por um nome de perfil mais claramente linha-dura. Já os democratas temem um ataque à jurisprudência e mesmo a reversão de políticas de ação afirmativa.
Em uma corrida contra o relógio, o indicado foi rapidamente anunciado em 9 de julho pelo presidente Trump. Trata-se do juiz da Corte de Apelações para o Circuito de DC Brett M. Kavanaugh, de 53 anos, um nome que agrada aos republicanos mais tradicionais. Formado em Yale, ele já trabalhou nos governos Bush e junto com o procurador independente Kenneth W. Starr na investigação do affair Monica Lewinsky, que quase levou ao impeachment do então presidente Bill Clinton por obstrução de Justiça e perjúrio.
A Casa Branca espera conseguir sua aprovação até 1º de outubro. Em ano de midterms, os republicanos já prometeram acelerar ao máximo o procedimento para a votação no Senado, que não deve enfrentar dificuldade diante da maioria na Casa. Duas senadoras moderadas favoráveis ao direito à prática do aborto, Susan Collins (R-ME) e Lisa Murkowski (R-AK), talvez sejam o fiel da balança no placar.