Trump: ‘A Organização Mundial do Comércio é um desastre.’
por Neusa Maria P. Bojikian*
Depois da decisão da Administração Trump de retirar os Estados Unidos do Conselho de Direitos Humanos da ONU, afastando-se portanto das sessões e deliberações do Conselho e aumentando a lista de órgãos e acordos multilaterais rejeitados pela administração, surgiu a aposta de que seu próximo alvo será a Organização Mundial do Comércio (OMC).
A postura do presidente Trump em relação à OMC tem atingido os defensores da liberalização comercial com repetidas humilhações e depreciações. Tal comunidade considera que o regime, há mais de sete décadas, tem sido uma das vigas estruturais da estabilidade política e econômica global. Assim, como em relação a vários outros temas, o presidente americano emite a imagem de que prefere se enredar em sua posição intimidadora a dialogar com seus opositores. Conforme noticiou Jonathan Swan, do Axios (empresa de mídia digital), o presidente reiteradamente diz a seus assessores que a OMC foi projetada pelo resto do mundo para “acabar” com os Estados Unidos. Supostamente não compreende porque seu país insiste em permanecer no regime, cabendo-lhe, portanto, do alto de seu poder e papel de guardião do Destino Manifesto da nação, por um fim nisso.
No modus operandi de Trump, tudo cabe, inclusive fazer o país retirar-se do regime comercial multilateral. Seria provavelmente um ato controverso e encontraria uma série de desafios pela frente. Ao abrigo do Direito Internacional, sendo Trump chefe de Estado, poderia ele apresentar uma notificação à Direção Geral da OMC, hoje sob liderança de Roberto Azevedo, diplomata brasileiro, solicitando o término da relação contratual. Reza o Artigo XV do Acordo de Marrakesh, que, em seis meses, uma nova condição solicitada deve entrar em vigor. No entanto, nos termos da Constituição e das leis complementares e comerciais do país, cabe ao Congresso aprovar qualquer ato a esse respeito. Em um cenário em que saia derrotado nas eleições de meio de mandato (após os dois primeiros anos de uma eleição presidencial) programadas para novembro próximo no país, tal aprovação se torna algo impensável.
Nesse caso, parece mais provável que Trump continue reclamando do tratamento injusto e desequilibrado e tentando justificar sua política comercial com base nessa orientação, mesmo ciente de que suas ações possam ser desafiadas dentro da estrutura da OMC. Desafiadas inclusive por um membro que pagou caro para entrar no regime: a China.
O ‘ágio’ pago pela China para entrar na OMC e seu desejo legítimo de mantê-la
Um pequeno giro por entre registros históricos faz lembrar que há 21 anos, a China negociava seu ingresso no regime multilateral de comércio. Quando de fato se tornou membro da OMC, em 2001, aceitou termos e condições particularmente desfavoráveis. Aceitou ser excluída do pacote de acomodações (special and differential treatment provisions) especiais oferecidas a países em desenvolvimento e a economias que saíam do sistema socialista soviético e ainda conceder aos parceiros comerciais poderes excepcionais para impor-lhe barreiras em resposta ao aumento de suas exportações. Isso significou obrigação de reduzir sua média tarifária sobre produtos manufaturados, bem como remover restrições à importação e à distribuição aplicáveis a produtos com uso intensivo de direitos autorais. Precisou ainda abrir muitos de seus setores de serviços para a concorrência estrangeira; tudo isso, de uma tacada só. De fato todas essas mudanças foram decisivas rumo à liberalização e facilitaram o acesso de empresas estrangeiras no mercado chinês. Ao mesmo tempo, o governo chinês aceitou remover subsídios às exportações de uma série de setores econômicos, mostrando que estava comprometido em diminuir unilateralmente parte de suas vantagens no comércio internacional.
Sendo assim, é compreensível que o governo chinês não queira que o regime comercial seja agora esvaziado. Percebendo que seu interesse encontra acolhida entre tantos outros atores que desejam a permanência e o prestígio da instituição multilateral de comércio, sentiu que precisava comunicar isso formalmente. Em sua proposta de defesa do regime comercial, o governo chinês reiterou que o país tem sido um forte defensor do livre comércio, que “cumpriu integralmente seus compromissos com a OMC, abriu substancialmente seu mercado ao mundo e apresentou resultados mutuamente benéficos e vitoriosos em uma escala mais ampla.” Especialmente sobre o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC, o governo chinês manda dizer que o mesmo tem desempenhado um papel vital na manutenção da previsibilidade do comércio internacional, bem como da estabilidade do sistema multilateral de comércio e, por isso, incentiva seus membros a resolver disputas comerciais em tal esfera. Diz ainda que ao levar suas denúncias à OMC, ou seja, ao ser demandante, conseguiu fazer que o OSC corrigisse violações relativas aos acordos cobertos praticadas por outros membros; defendeu seus próprios interesses comerciais; bem como a supremacia das regras da OMC.
O problema é que a China também aprendeu a jogar nos espaços oferecidos pela ambiguidade das letras da lei
Como alguns estudiosos do Direito Comercial e da Ciência Política notam, o governo chinês aprendeu, rápido e bem, a jogar nas lacunas dos termos da lei e dos procedimentos da OMC para pressionar por interesses e preferências que às vezes estão em desacordo com os princípios “liberais e as agendas dos EUA – que podem ser iliberais”. Tais estudiosos também sugerem que esse governo pode ter incorporado a postura “cínica” dos Estados Unidos em relação às normas liberais consideradas fundamentais no Direito Comercial Internacional. Faz sentido ter em conta, como sugerem os teóricos normativos das Relações Internacionais e os institucionalistas históricos das Ciências Sociais, que os membros de uma determinada instituição, uma vez plenamente integrados a ela, tentarão moldar as regras através de meios legais e institucionais apropriados. Com a China, isso não seria diferente, afinal, a possibilidade de moldar as regras da OMC teria sido uma grande motivação para o país se tornar membro pleno da referida instituição.
Nos últimos anos verifica-se que as reclamações dos Estados Unidos no OSC se concentram na esfera das medidas antidumping e de compensação contra empresas públicas chinesas, as quais os americanos classificam como órgãos estatais, já que são em sua maioria supostamente controladas pelo governo. Rebatendo esse conceito, em 2011, o governo chinês exigiu que o reclamante apresentasse provas de que tais empresas se assemelham a uma “entidade que exerce autoridade investida pelo governo com o propósito de desempenhar funções de caráter governamental”. O Órgão de Apelação do OSC acabou acolhendo o argumento do governo chinês ao dizer que as decisões do Departamento de Comércio dos EUA se orientaram por uma equivocada interpretação do termo “órgão público”, o que irritou as autoridades americanas. Ao se posicionar com base nesses termos, o Órgão de Apelação não estaria cumprindo sua função central – “fornecer orientação clara e prática para a aplicação dos acordos da OMC”.
Há ainda mais, as autoridades americanas alegam que decisões como estas não apenas desencorajam a apresentação de novos litígios à OMC, como terão o efeito contraproducente de instigar os países, notadamente a China, a agir de forma obscura, mascarando o controle estatal exercido sobre as empresas, já que o ônus da prova recai sobre o reclamante. A propósito, quem se lembra da controversa lei antidumping e de subsídios dos Estados Unidos, popularmente conhecida como Emenda Byrd? Note-se que a tal lei, prevendo que as taxas coletadas pela aduana dos Estados Unidos com as medidas antidumping fossem repassadas às empresas americanas autoras do pedido para iniciar investigação antidumping, causou um tremendo prejuízo às empresas exportadoras de camarão de Aracati, microrregião litorânea do estado do Ceará, no Brasil, e também às empresas de China, Equador, Índia, Tailândia e Vietnã. O ônus da prova nesses casos recaía sobre as empresas acusadas de praticar dumping em suas exportações para os Estados Unidos. Em tempo, isso foi nos idos de 2000, quando à China cabia apenas aceitar as regras definidas pelos outros membros da OMC.
* Pesquisadora do INCT-Ineu. Doutora e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI-Unesp-Unicamp-PUC-SP. Autora do livro Acordos comerciais internacionais: o Brasil nas negociações do setor de serviços financeiros (2009, Unesp) e Coorganizadora do livro Negociações econômicas internacionais: abordagens, atores e perspectivas desde o Brasil (2011, Unesp).