Internacional

Preparando-se para o confronto

O cerco provocativo do Pentágono à China

 

por Michael T. Klare

Traduzido de TomDispatch.com*

Em 30 de maio, o secretário de Defesa James Mattis anunciou uma mudança importante na política estratégica global americana. A partir de agora, decretou, o Comando do Pacífico dos EUA (PACOM), que supervisiona todas as forças militares americanas na Ásia, será chamado de Comando Indo-Pacífico (INDOPACOM). A mudança de nome, explicou Mattis, reflete “a crescente conectividade entre os oceanos da Índia e do Pacífico”, bem como a determinação de Washington a continuar a ser o poder dominante em ambos.

O que? Você não ouviu falar sobre isso em lugar nenhum? E ainda assim, não ficou exatamente impressionado, certo? Bem, essa mudança de nome pode não parecer muito, mas algum dia talvez você olhe para trás e perceba que ela não poderia ter sido mais consequente ou ameaçadora. Pense nisso como um sinal de que os militares dos EUA já estão preparando o terreno para um eventual confronto com a China.

Não me surpreende se, até agora, você não tiver lido nada sobre a decisão de Mattis. Porque a mídia praticamente não deu atenção a isso, certamente menos do que ao tweet menos significativo que Donald Trump já enviou. A cobertura tratou a mudança de nome como não mais do que um gesto “simbólico” passageiro, um estratagema do Pentágono para encorajar a Índia a juntar-se ao Japão, à Austrália e a outros aliados dos EUA no sistema de alianças do Pacífico. “Em aceno simbólico para a Índia, o nome do US Pacific Command mudou” foi a manchete de uma reportagem da Reuters sobre o assunto, na medida típica da atenção dada.

O fato de os analistas militares da mídia não terem percebido nada além do simbolismo nas profundezas do PACOM não deveria surpreender, em se considerado toda a atenção dada a outros grandes acontecimentos internacionais – a pirotecnia da cúpula coreana em Cingapura, os insultos negociados durante e após a reunião do G7 no Canadá, ou a agourenta tempestade de confrontos sobre o Irã. Soma-se a isso a má compreensão que tantos jornalistas têm da natureza do pensamento estratégico dos militares dos EUA. Mesmo assim, o próprio Mattis não tem escondido o significado geopolítico de ligar os oceanos Índico e Pacífico no planejamento estratégico. Na verdade, a iniciativa representa uma mudança fundamental no pensamento militar dos EUA, com consequências potencialmente de longo alcance.

Considere o cenário para a mudança de nome: nos últimos meses, os EUA intensificaram suas patrulhas navais nas águas adjacentes às ilhas ocupadas pelos chineses no Mar do Sul da China (da mesma forma como a China o fez), aumentando a perspectiva de futuros confrontos entre os navios de guerra dos dois países. Essas medidas foram acompanhadas por uma linguagem cada vez mais ameaçadora do Departamento de Defesa (DoD, na sigla em Inglês), indicando a intenção de simplesmente engajar militarmente a China se o crescimento do país na região continuar. “Há consequências quando se trata de mostrar o que eles fizeram no Mar do Sul da China”, declarou Mattis no Diálogo Estratégico de Shangri-La Strategic Dialogue, na Cingapura, em 2 de junho.

Como indicação preliminar do que quis dizer, Mattis prontamente retirou o convite feito aos chineses para o maior exercício naval multinacional do mundo, Margem do Pacífico (RIMPAC, na sigla em Inglês), realizada anualmente sob os auspícios dos EUA. “Mas essa é uma consequência relativamente pequena”, acrescentou ameaçadoramente, “acredito que haverá muito maiores no futuro.” Com isso em mente, rapidamente anunciou que o Pentágono planeja realizar “uma batida contínua” de operações navais em águas adjacentes às ilhas ocupadas pela China, o que deve elevar a temperatura entre os dois países, podendo gerar as condições para uma falha de cálculo, um erro ou até mesmo um acidente no mar, com consequências muito piores.

Além dos planos para aumentar as tensões navais nos mares adjacentes à China, o Pentágono vem trabalhando para fortalecer os laços militares com Estados amigos dos EUA no perímetro da China, tudo claramente parte de um longo caminho para, no estilo da Guerra Fria, “conter” o poder chinês na Ásia. Em 8 de junho, por exemplo, o DoD lançou o Malabar 2018, um exercício naval conjunto no Oceano Pacífico, envolvendo forças da Índia, do Japão e dos Estados Unidos. Incorporar a outrora neutra Índia ao sistema americano anti-chinês de alianças do “Pacífico”, desta ou de outra maneira, tornou-se, de fato, um dos principais objetivos do Pentágono no século XXI, constituindo nova e significativa ameaça para a China.

Durante décadas, o principal objetivo da estratégia dos EUA na Ásia foi fortalecer os principais aliados do Pacífico, como o Japão, a Coreia do Sul, Taiwan e as Filipinas, enquanto continha o poder chinês em águas adjacentes, incluindo os mares do leste e do sul da China. No entanto, nos últimos tempos, a China tem procurado espalhar sua influência no Sudeste Asiático e na região do Oceano Índico, em parte exaltando sua incrivelmente ambiciosa iniciativa de comércio e infraestrutura, “Um Cinturão, Uma Estrada”, para o continente eurasiano e a África. Esse vasto projeto significa claramente um veículo único de cooperação e uma maneira de unir grande parte da Eurásia a um futuro sistema econômico e energético centrado na China. Ameaçados pelas visões de tal futuro, os estrategistas americanos atuaram, cada vez mais decisivamente, para restringir o alcance chinês nessas áreas. Então, esse é o contexto para o súbito esforço concertado dos estrategistas militares dos EUA de ligar os oceanos Índico e Pacífico e, assim, cercar a China com sistemas de aliança pró-americanos e anti-chineses. A mudança de nome em 30 de maio é o reconhecimento formal de uma estratégia de cerco que, a longo prazo, não poderia ser mais perigosa.

Se preparando para a guerra com a China

Para compreender as ramificações de tais movimentos, alguns antecedentes sobre o antigo PACOM podem ser úteis. Originalmente conhecido como o Comando do Extremo Oriente, o PACOM foi fundado em 1947, estando sediado desde então em bases norte-americanas perto de Honolulu, no Havaí. Na constituição atual, sua “área de responsabilidade” abrange uma extensão espantosa: todo o leste, sul e sudeste da Ásia, assim como a Austrália, a Nova Zelândia e as águas dos oceanos Índico e Pacífico – em outras palavras, uma área cobrindo cerca de 50% da superfície da Terra e incorporando mais da metade da população global. Embora o Pentágono divida todo o planeta como uma torta gigante, num conjunto de “comandos unificados”, nenhum deles é maior do que o recém expandido e recém nomeado Comando Indo-Pacífico, com seus 375.000 militares e civis.

Antes de o Oceano Índico ser explicitamente incorporado ao rebanho, o PACOM se concentrou principalmente em manter o controle do Pacífico Ocidental, especialmente nas águas em torno de uma série de ilhas e penínsulas amistosas, como Japão, Coreia do Sul e Filipinas. Sua estrutura de força foi amplamente composta de esquadrões aéreos e navais, junto com uma grande presença dos Fuzileiros Navais na ilha japonesa de Okinawa. Sua unidade de combate mais poderosa é a Frota do Pacífico dos EUA, a maior do mundo, como a área que agora cobre. É formada pelas 3ª e 7ª Frotas, que juntas têm aproximadamente 200 navios e submarinos, quase 1.200 aeronaves e mais de 130.000 marinheiros, pilotos, fuzileiros navais e civis.

No dia a dia, até recentemente, a maior preocupação enfrentada pelo comando era a possibilidade de um conflito com a Coreia do Norte, armada com artefatos nucleares. No final do outono de 2017 e no inverno de 2018, o PACOM fez uma série contínua de exercícios destinados a testar a capacidade de suas forças de superar as defesas norte-coreanas e destruir os principais bens militares, incluindo instalações nucleares e de mísseis. Isso era indubitavelmente intencional e, acima de tudo, uma advertência ao líder norte-coreano Kim Jong-un sobre o que esperar caso continuasse no caminho de intermináveis testes nucleares e de mísseis. Parece que, pelo menos por enquanto, o presidente Trump suspendeu tais exercícios como resultado da reunião de cúpula com Kim.

Deixando a Coreia do Norte de lado, a principal preocupação dos comandantes do PACOM tem sido o poder crescente da China e como contê-lo. Isso ficou evidente na cerimônia de 30 de maio no Havaí, na qual Mattis anunciou a mudança expansiva do nome e presidiu uma cerimônia de mudança de comando, na qual o comandante que saía, almirante Harry Harris Jr., foi substituído pelo almirante Phil Davidson (dada a natureza naval da missão, o comando é quase invariavelmente dirigido por um almirante.)

Embora evitando qualquer menção direta à China em suas observações iniciais, Mattis não deixou nem uma ponta de dúvida sobre o novo nome do comando ser um desafio e um apelo para a futura mobilização da oposição regional aos sonhos e desejos da China num vasto trecho do planeta. Outras nações acolhem o apoio dos EUA, insistiu, pois preferem um ambiente de “comércio livre, justo e recíproco, não vinculado à economia predatória de qualquer nação ou à ameaça de coerção, pois o Indo-Pacífico tem muitos cinturões e muitas estradas”. Ninguém deve confundir o significado dessa mensagem.

O almirante Harris, que deixava o comando, foi ainda mais direto. Embora “a Coreia do Norte continue sendo nossa ameaça mais imediata”, declarou, “a China continua sendo nosso maior desafio a longo prazo”. Ele então fez uma advertência: sem o esforço dos EUA e de seus aliados para coibir Pequim, “a China realizará seu sonho de hegemonia na Ásia”. Admitiu que ainda é possível cooperar com os chineses em questões limitadas, mas devemos “estar prontos para enfrentá-los quando for necessário”. (Em 18 de maio, o almirante Harris foi nomeado pelo presidente Trump como o futuro embaixador dos EUA na Coreia do Sul, o que coloca um ex-militar na embaixada em Seul.)

O almirante Davidson, sucessor de Harris, parece ainda mais determinado a colocar o confronto com a China no topo da agenda do comando. Durante sua audiência de confirmação perante o Comitê de Serviços Armados do Senado, em 17 de abril, ele destacou várias vezes a ameaça representada pelas atividades militares chinesas no Mar do Sul da China e prometeu resistir vigorosamente. “Uma vez ocupadas (as ilhas do Mar da China Meridional), a China poderá estender sua influência milhares de quilômetros ao sul e projetar poder para a Oceania,” advertiu. “O PLA (Exército de Libertação Popular) poderá usar essas bases para desafiar a presença dos EUA na região, e as forças mobilizadas para as ilhas poderiam facilmente subjugar as forças militares de quaisquer outros requerentes do Mar da China Meridional. Em suma, a China é agora capaz de controlar o Mar da China Meridional em todos os cenários que não sejam de guerra com os Estados Unidos”.

Então é isso o que o almirante Davidson vê em nosso futuro? Guerra com a China nesses águas? O testemunho deixou claro que seu principal objetivo como chefe do Comando Indo-Pacífico será nada menos do que treinar e equipar as forças sob sua liderança exatamente para essa guerra futura, e, ao mesmo tempo, alistar as Forças Armadas do maior número possível de aliados do Pentágono na campanha para cercar aquele país. “Para evitar uma situação em que a China seja mais propensa a vencer um conflito”, afirmou em “Pentagonês”, “devemos recorrer a recursos avançados de maneira oportuna, preservar nossa rede de aliados e parceiros, e continuar a recrutar e treinar os melhores soldados, marinheiros, aviadores, fuzileiros navais e guardas costeiros do mundo”.

A prioridade de Davidson é obter armas avançadas e integrá-las à estrutura de força do comando, garantindo que os combatentes americanos sempre tenham vantagem tecnológica sobre seus pares chineses em qualquer confronto futuro. Quase tão importante, assim como seus antecessores, ele tenta reforçar os laços militares dos Estados Unidos com outros membros do clube de contenção à China. É aí que entra a Índia. Como os Estados Unidos, sua liderança está profundamente preocupada com a crescente presença da China na região do Oceano Índico, incluindo a abertura de uma futura base portuária em Gwadar, Paquistão, e outra potencial na ilha de Sri Lanka, ambas no Oceano Índico. Não surpreendentemente, dados os confrontos periódicos entre as forças chinesas e indianas ao longo das fronteiras do Himalaia e a presença permanente de navios de guerra chineses no Oceano Índico, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, se mostrou cada vez mais disposto a se unir a Washington em medidas militares destinadas a limitar o alcance geopolítico da China. “Uma parceria estratégica duradoura com a Índia está em conformidade com as metas e objetivos dos EUA no Indo-Pacífico”, disse o almirante Davidson em seu recente depoimento no Congresso. Uma vez instalado como comandante, ele continuou: “Vou manter o ímpeto positivo e a trajetória de nossa florescente parceria estratégica”. Seu objetivo particular: “aumentar a cooperação na segurança marítima”.

E assim chegamos ao Comando Indo-Pacífico e a um futuro sob a sombra de uma potencial grande guerra de poder.

A visão de Pequim

Pela forma como a mudança de nome do PACOM foi noticiada nos EUA, é possível dizer que, no máximo, ela reflete um desejo benigno de maiores conexões econômicas entre as regiões do Oceano Índico e Pacífico, bem como, talvez, um aceno ao crescente relacionamento dos Estados Unidos com a Índia. Em nenhuma notícia foi dado indício de que o que poderia estar por trás disso é uma nova abordagem hostil e potencialmente ameaçadora para a China – ou que pudesse ser percebida dessa maneira em Pequim. Mas não resta dúvidas de que os chineses consideram tais ações, incluindo recentes operações navais provocativas nas disputadas Ilhas Paracel, no Mar do Sul da China, como perigos significativos.

Quando, no final de maio, o Pentágono despachou dois navios de guerra – o destroier USS Higgins e o cruzador USS Antietam – para as águas perto de uma dessas ilhas recém fortificadas, os chineses responderam enviando alguns de seus próprios navios de guerra, ao mesmo tempo em que emitiram uma declaração condenando as patrulhas navais provocativas dos EUA. A ação dos EUA, disse um porta-voz militar chinês, “violou seriamente a soberania da China e minou a confiança mútua estratégica”. Descrita pelo Pentágono como “Liberdade de Operações de Navegação” (FRONOPs, na sigla em Inglês), esse tipo de patrulha deve aumentar a mando de Mattis.

É claro que os chineses não são inocentes nas crescentes tensões na região. Eles continuaram a militarizar as ilhas do Mar da China Meridional cuja propriedade é disputada, apesar da promessa contrária feita pelo presidente chinês Xi Jinping ao presidente Obama em 2015. Algumas das ilhas dos arquipélagos Spratly e Paracel também são reivindicadas por Vietnã, Filipinas e outros países da região, e têm sido objeto de intensos desavenças, muitas vezes acirradas, sobre a legítima posse. Pequim simplesmente reivindicou a soberania sobre todas e se recusa a discutir a questão. Ao fortalecê-las militarmente – o que os comandantes militares americanos veem como uma ameaça militar latente às forças dos EUA na região – Pequim provocou uma reação americana particularmente acirrada, embora as ilhas sejam, obviamente, relativamente próximas da China, mas estejam a milhares de quilômetros do território continental dos Estados Unidos.

Para Pequim, a visão estratégica articulada pelo Secretário Mattis, assim como as dos Almirantes Harris e Davidson, é claramente vista – e não sem razão – como ameaçadora e uma evidência do plano de Washington para cercar a China, confiná-la e impedi-la de alcançar o domínio regional que seus líderes acreditam ser de direito de uma grande potência emergente no planeta. Para a liderança chinesa, mudar o nome do PACOM para Comando Indo-Pacífico será apenas mais um sinal da determinação de Washington em estender sua presença militar sem precedentes, do Pacífico em torno do Sudeste Asiático até o Oceano Índico, e, assim, restringir ainda mais o que ela vê como o destino legítimo da China.

Independentemente de como os líderes chineses venham a responder a esses movimentos estratégicos, uma coisa é certa: eles não os veem com indiferença. Pelo contrário. Como as grandes potências contestadas sempre fizeram, sem dúvida, vão procurar maneiras de combater a estratégia americana de contenção por quaisquer meios ao seu alcance. Estes podem não ser inicialmente militares ou mesmo óbvios, mas a longo prazo certamente serão vigorosos e persistentes. Incluirão esforços para competir com Washington na busca por aliados asiáticos – como pode ser visto o namoro fervoroso de Pequim com o presidente Rodrigo Duterte, das Filipinas – e para garantir novas bases no exterior, possivelmente sob o pretexto, como no Paquistão e no Sri Lanka, de estabelecer terminais de transporte comercial. Tudo isso só acrescentará novas tensões a uma relação já indutora de ansiedade com os Estados Unidos. Como cada vez mais navios de guerra de ambos os países patrulham a região, a probabilidade de acidentes, erros e futuros confrontos militares tende a aumentar.

Com o risco de guerra com a Coreia do Norte desaparecendo após a recente cúpula de Cingapura, uma coisa é garantida: o novo Comando Indo-Pacífico dos EUA só se dedicará com mais fervor àquela que já é sua prioridade: preparar um conflito com a China. Seus comandantes insistem que não buscam tal guerra e acreditam que seus preparativos – demonstrando a força e a determinação dos EUA – impedirão os chineses de desafiar a supremacia americana. Isso, no entanto, é uma fantasia. Na realidade, uma estratégia que apela a um “batido constante” de operações navais destinadas a intimidar a China em águas próximas ao país criará mais chances, ainda que não intencionais, de provocar a conflagração própria daquilo que, ao menos teoricamente, foi projetada para evitar.

Nesse momento, uma guerra sino-americana parece o enredo em preparação de um romance distópico. Infelizmente, dada a direção em que ambos os países (e seus militares) tomam, ela poderá, num futuro relativamente próximo, tornar-se uma realidade sombria.

 

Michael T. Klare é professor de estudos de paz e segurança mundial no Hampshire College e autor, mais recentemente, de Rising Powers, Shrinking Planet. Uma versão do documentário de seu livro anterior, Blood and Oil, está disponível na Media Education Foundation.

 

Tradução por Solange Reis

*Artigo originalmente publicado em 19/06/2018, em http://www.tomdispatch.com/blog/176438/

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