Sérvia x EUA: o impasse do Kosovo na era Trump
por Gustavo Oliveira
A chegada de Donald Trump à Casa Branca foi recebida na maior parte do mundo com um misto de ansiedade, preocupação e pessimismo. A Sérvia foi uma exceção nesse sentido. No país balcânico, Hillary Clinton era negativamente associada à figura de seu marido, presidente dos EUA na época da intervenção da OTAN contra a Sérvia na Guerra do Kosovo de 1999. Além disso, as supostas afinidades de Trump com a Rússia elevaram seu rating entre os sérvios, uma nação notoriamente russófila.
As ruas de Belgrado viram surgir murais celebrando a “amizade” de Trump e Putin, bem como passeatas de apoio ao novo presidente norte-americano organizadas por nacionalistas pró-Rússia. Já o famoso outdoor com os dizeres Let’s Make the World Great Again e as figuras de Putin e Trump, cujas imagens rodaram o planeta, foi obra de um portal de notícias vinculado a setores nacionalistas sérvios do Montenegro. Embora com um tom sóbrio bastante distante dessas manifestações, lideranças da Sérvia também viram possibilidades de uma política norte-americana mais benevolente para o país, especialmente no que concerne ao assunto mais delicado de sua política externa: a questão do Kosovo.
A Sérvia, junto com a Rússia, a China e mais de 70 Estados membro da ONU, incluindo o Brasil e 5 componentes da União Europeia (UE), continua a não reconhecer a secessão unilateral de sua província de maioria étnica albanesa, apoiada e tutelada por Washington em contrariedade a disposições do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) em 2008. No final de 2017, referindo-se às atuais negociações internacionais sobre as relações com o Kosovo, Ivica Dačić, ministro de relações exteriores da Sérvia, afirmou que “precisamos de Trump, precisamos de Tillerson [ex-secretário de Estado de Trump], da nova administração. A administração antiga não quer resolver o problema, e sim legalizar o que fizeram nos Bálcãs”. Meses antes, o mesmo Dačić presenteou Trump com as capas dos jornais da Sérvia repercutindo sua vitória na eleição presidencial norte-americana de 2016. É possível que o presidente dos EUA tenha visto as mirabolantes manchetes dos tabloides sensacionalistas pró-governo do país balcânico, entres as quais se destacou a fantasia de que Trump devolveria o Kosovo à Sérvia em acordo com a Rússia.
Até o momento, contudo, as expectativas otimistas dos sérvios têm passado longe da realidade. Em comparação com as gestões de Obama, a administração Trump vem demonstrando continuidade em sua abordagem para a questão do Kosovo. Washington ainda indica conceber como solução ideal para o impasse a abertura para o amplo reconhecimento internacional e a extensão da autoridade formal do autoproclamado Estado, fortemente submetido à influência e ao controle dos norte-americanos, sobre todo o território que reivindica. Com isso, seria fortalecida a fachada de democracia multiétnica bem-sucedida no Kosovo, o que, por sua vez, legitimaria a controversa intervenção da OTAN em 1999. Ademais, um acordo territorial minimizaria a possibilidade de um revanchismo militar por parte de Belgrado, em especial sobre as regiões do norte do Kosovo majoritariamente habitadas por sérvios. Por isso, os EUA sob Trump têm continuado a insistir que Belgrado renuncie definitivamente, ainda de que forma velada, às reivindicações de autoridade sobre o território kosovar, o que inclui também a ideia de partilha territorial em bases étnicas defendida por Dačić. Da Sérvia, também se demanda a desistência do bloqueio à entrada do Kosovo em organizações internacionais, em especial na ONU.
É crucial ressaltar que a própria Sérvia já fez substanciais concessões nesse sentido no âmbito do processo de “normalização” de relações com o Kosovo mediado pela UE. Iniciada em 2011 e imposta como condição para o desejado acesso sérvio ao bloco europeu, a normalização, embora não subtendesse necessariamente o reconhecimento diplomático mútuo, previa a progressiva remoção das instituições judiciárias, policiais e de segurança de governo sérvio que haviam permanecido na província – em especial em seu extremo norte -, demanda em larga medida cumprida por Belgrado desde então.
Ainda assim, permanecem importantes pontos de atrito nos quais a Sérvia tenta obstruir a sacramentação de sua perda territorial. Além de ainda não reconhecer formalmente a secessão kosovar, Belgrado se esforça para barrar o acesso do novo Estado em diversas instituições internacionais. Nas negociações de normalização, a principal demanda da Sérvia é a elevação dos direitos políticos da minoria sérvia da região (estimada entre 4% e 8% da população local), compromisso estabelecido pelo Acordo de Bruxelas (2013). As negociações nesse sentido estagnaram, pois as lideranças albanesas, temendo a dispersão do poder central e a elevação da instrumentalização política da comunidade sérvia por Belgrado, relutam em ceder as prerrogativas buscadas pela Sérvia.
Nesse contexto, a UE anunciou, em julho de 2017, o início de uma nova fase de negociações, na qual foi estabelecida a meta de um acordo de normalização final a ser atingido, preferencialmente, até o fim de 2019. Diante desse cenário, o presidente sérvio Aleksandar Vučić lançou iniciativa doméstica de revisão da postura de Belgrado em prol de uma solução definitiva para o impasse. Com retórica mais assertiva, Vučić, ao mesmo tempo em que sinalizou a vontade de resolver de uma vez por todas a controvérsia, tem afirmado que novas concessões a Pristina (capital do Kosovo) e seus patrões ocidentais serão condicionadas a contrapartidas substanciais recebidas pela Sérvia.
Apesar de nunca terem participado diretamente das negociações no seio da UE, os EUA de Obama sempre atuaram no backstage em favor da normalização. Mais recentemente, já durante a administração Trump, a ineficiência de Bruxelas em atingir o objetivo traçado estimulou Washington a elevar seu protagonismo na condução do processo. Em março de 2018, Wess Mitchell, sucessor da controversa Victoria Nuland à frente do Escritório de Assuntos Europeus e Eurasianos do Departamento de Estado, visitou Belgrado e encontrou-se com Aleksandar Vučić para discutir a questão do Kosovo. O funcionário estadunidense transmitiu ao presidente sérvio a posição de Washington, que propõe a consecução da agenda de normalização da UE.
A imprensa sérvia ainda noticiou que Mitchell traria um plano concreto de demandas e contrapartidas, o chamado “Pacote Americano”, que incluiria exigências de desobstrução do reconhecimento internacional do Kosovo – algo defendido já em administrações anteriores. Em troca, a Sérvia seria compensada pelo apoio econômico norte-americano, pela facilitação de sua entrada na UE e por garantias de autonomia para os sérvios do Kosovo. Em público, o diplomata estadunidense negou tais alegações. Em sua turnê pelos Bálcãs, contudo, Mitchell levantou outro ponto sensível para a Sérvia, e que não faz parte formalmente das negociações de normalização: o apoio norte-americano ao estabelecimento das forças armadas do Kosovo.
A Sérvia se contrapõe ao estabelecimento das forças armadas não só por representarem mais um atributo de soberania, mas também pela possibilidade de que sejam utilizadas para tomar à força partes do norte do Kosovo adjacentes ao restante do território sérvio. Pristina nunca conseguiu estabelecer por completo sua autoridade sobre os quatro municípios de maioria étnica sérvia dessa região, que sempre foram contrários à independência e leais a Belgrado. Além disso, a criação do exército kosovar poderia sinalizar a obsolescência das tropas da KFOR, missão de peacekeeping liderada pela OTAN e responsável pela defesa e segurança no Kosovo desde sua autorização pela Resolução 1244 do CSNU em 1999 (a qual determinou, paralelamente, a remoção das estruturas policiais e militares sérvias da região). Apesar de sua inefetividade em determinadas ocasiões, como na chamada pogrom antissérvia de março 2004, a KFOR ainda é vista por muitos sérvios locais e por Belgrado como a garantia última de sua segurança contra possíveis atos de violência perpetrados por albaneses, a exemplo dos registrados no final de maio último.
Embora Washington publicamente não apoie o procedimento extraconstitucional com o qual Pristina vem conduzindo o processo de estabelecimento das forças armadas, Mitchell afirmou que ele não deveria estar sujeito a vetos. Com isso, fez uma referência implícita à Sérvia e possivelmente à minoria sérvia do Kosovo – que, em tese, poderia barrar tal decisão, a priori de caráter constitucional, com os votos de seus representantes no parlamento kosovar. Mitchell ecoou, dessa maneira, posições manifestadas pelos embaixadores estadunidenses no Kosovo ainda no período anterior a Trump, quando o apoio norte-americano à futura criação das forças armadas kosovares foi manifestado. A afirmação de Wess Mitchell suscitou ainda rechaço de Aleksandar Vučić, que se apega à inexistência de disposições sobre um exército kosovar no âmbito do mandato estabelecido pelo CSNU.
Após a visita de Mitchell em março, Belgrado recebeu em abril Matthew Palmer, diretor do Escritório para a Europa Central e Meridional do Departamento de Estado. O diplomata também discutiu o tema do Kosovo com Vučić e, assim como Mitchell, enfatizou a necessidade de continuidade do processo de normalização mediado pela UE. Fora esse e outros eventos mais publicizados, há também relatos e rumores de importantes movimentações nos bastidores diplomáticos envolvendo EUA e Sérvia sobre o Kosovo. Em março, em meio a especulações sobre reuniões secretas com o presidente kosovar Hashim Thaçi em Nova York, nas quais teria conversado sobre uma possível partilha territorial, Aleksandar Vučić deixou implícita a realização de uma série de infrutíferas negociações em solo estadunidense com “aqueles que criaram o Kosovo independente”.
Por fim, em maio, a imprensa kosovar albanesa noticiou a realização, em Washington, de uma reunião de funcionários dos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, França e Itália sobre a questão do Kosovo. Conforme repercussão da mídia sérvia, os representantes das potências ocidentais teriam concordado em fazer exigências e contrapartidas similares àquelas supostamente apresentadas por Wess Mitchell em março. Contrariando especulações, Kyle Scott, o embaixador norte-americano em Belgrado, negou que tenha surgido qualquer plano ou documento formal nesse sentido. Aleksandar Vučić, por sua vez, afirmou ter recebido proposições de resolução preliminares.
O presidente sérvio destacou não haver nada essencialmente novo vindo daqueles que, em suas palavras, consideram a independência e a configuração territorial do Kosovo algo inegociável. Dizendo-se insatisfeito com tais proposições, Vučić aludiu à possibilidade de realização de referendo nacional sobre uma eventual proposta de solução para o Kosovo. Uma decisão nesse sentido certamente não será vista com bons olhos em Washington: muito embora cerca de 50% dos sérvios apoiem a entrada do país na UE (perto de 40% são contra, de acordo com pesquisas recentes), cerca de 70% afirmam que o país deveria desistir do acesso se este for condicionado a algum tipo de reconhecimento da independência do Kosovo, como preferem os norte-americanos.
Paralelamente, o presidente sérvio mantém seus frequentes contatos com a Rússia de Vladimir Putin, apoiadora mais vocal dos interesses da Sérvia na questão do Kosovo. Defensora, ao menos em nível declarativo, da implementação do Acordo de Bruxelas, Moscou há anos já não goza da influência e da margem de manobra possuídas pelas potências ocidentais quanto ao tema do Kosovo. Por outro lado, os russos continuam sendo – caso Vučić não se dobre às condições impostas pelos EUA e seus aliados, como especula a oposição sérvia – no mínimo um importante contrapeso político para Belgrado se, por exemplo, o encaminhamento do impasse vier novamente a se concentrar em foros como o CSNU. Tal era a situação no período que precedeu a declaração de independência, e foi exatamente a convergência de posições entre Sérvia e Rússia sobre a secessão que impulsionou uma aproximação bilateral que dura até hoje e que representa um incômodo para os EUA.
A partir da sintonia sobre o Kosovo, Sérvia e Rússia desenvolveram laços econômicos, políticos e, especialmente nos governos do Partido Progressista Sérvio de Aleksandar Vučić (no poder desde 2012), militares. A Sérvia, por exemplo, não se juntou às sanções ocidentais contra a Rússia estabelecidas a partir de 2014 e, não obstante sua crescente cooperação militar com a OTAN e os EUA, passou a realizar exercícios conjuntos com as forças armadas russas e elevou compras de armamentos de Moscou. No contexto das tensões entre a Rússia e as potências ocidentais desde a crise ucraniana, Belgrado também passou a dar mais ênfase às promessas a Moscou de que seguirá a neutralidade militar, isto é, não ingressará na OTAN. Do ponto de vista dos EUA, onde se enraizou uma forte mentalidade de contenção à Rússia nos últimos anos, uma solução em seus termos para a questão do Kosovo também seria bem vinda exatamente no sentido de esvaziar o conteúdo dessa amizade, que torna a Sérvia uma espécie de bastião da presença russa nos Bálcãs – ainda que esse fato tenha implicações de peso estratégico limitado.
Relatos mais recentes, tanto de fontes albanesas quanto de fontes sérvias, dão conta de que a solução preferida pelos EUA já teria sido encaminhada ou em vias de ser entregue a Belgrado. Embora pressionado por Washington e seus aliados para aceitar as condições impostas o mais rápido possível, Vučić teria negado a proposta estadunidense. Nesse contexto, especula-se, ainda, que o presidente sérvio, após meses de postergação, tornará público seu plano para o Kosovo ainda em junho. Por fim, apesar das diferenças de princípio aparentemente persistentes, é importante ressaltar que a Sérvia, de um ponto de vista mais pragmático, pode se beneficiar da enorme influência que os EUA exercem sobre as lideranças albanesas para extrair de Pristina concessões aceitas pelos norte-americanos.
Em meio às incertezas e rumores que ainda permeiam as discussões sobre o assunto, o futuro próximo certamente reserva importantes desdobramentos, nos quais o resultado das tratativas entre Belgrado e Washington será determinante para a continuidade ou o fechamento de uma das principais controvérsias da política internacional contemporânea.