Internacional

Histórica cúpula Trump-Kim termina em texto vago sobre desnuclearização

por Tatiana Teixeira

Contrariando todos os prognósticos e acompanhada pelo mundo todo, a simbólica cúpula entre Donald Trump e Kim Jong-un enfim aconteceu em Singapura, em um clima amistoso, de otimismo e de troca de afagos e na data inicialmente marcada de 12 de junho. De um lado, um presidente que anseia por ser visto como um grande negociador e como aquele que obteve uma difícil vitória em política externa, apesar de seu desconhecimento e da pouca experiência na área, buscando superar, por exemplo, o peso histórico do acordo nuclear firmado por Barack Obama com o Irã (já descartado por Trump). Do outro, o líder de um território isolado que busca legitimidade e reconhecimento pessoal e do peso da Coreia do Norte por parte da comunidade internacional, assim como alívio das sanções econômicas que sufocam o país. Embora os atores políticos nem sempre façam escolhas racionais, motivos não faltavam para que ambos os lados se esforçassem, de forma pragmática, para que este primeiro encontro fosse minimamente bem-sucedido, possibilitando o avanço das negociações.

Na entrevista coletiva de cerca de uma hora, o presidente Trump elogiou seu colega norte-coreano, algo muito distante da escalada verbal e das ameaças de confrontação direta de alguns meses atrás. Chamou-o de “líder transformacional de seu país” e garantiu que “estamos prontos para escrever um novo capítulo entre as nossas nações”. Inspirado e visivelmente satisfeito com o resultado do evento, declarou que “o conflito de ontem não tem de ser a guerra de amanhã”. Além disso, Trump não apenas deixou aberta a possibilidade de ir a Pyongyang, como considerou convidar Kim para ir à Casa Branca. O tom das conversas parece ter sido bem diferente da retórica contundente em questões comerciais que o presidente americano tem usado, nos últimos dias, com seus aliados europeus e com os vizinhos do Norte, sobretudo, o Canadá de Justin Trudeau.

Encontro inédito

Esta foi a primeira vez que um presidente americano em exercício se reuniu com um líder da família Kim no poder. Nos governos anteriores, o de George W. Bush e o de Bill Clinton, prevaleceram a desconfiança bilateral e a recusa de Washington a dar continuidade ao diálogo em meio às provocações nucleares e às denúncias de abusos de direitos humanos cometidos em Pyongyang. Kim assumiu o poder após a morte do pai, Kim Jong-il, em 2011.

De pouco menos de 40 minutos, a primeira parte do encontro aconteceu cara a cara, apenas na presença dos respectivos intérpretes. Em um segundo momento, participaram membros do alto escalão de ambos os governos. A equipe americana foi formada pelo secretário de Estado, Mike Pompeo; pelo conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, defensor da mudança de regime em Pyongyang; e pelo chefe de gabinete de Trump, John Kelly. Kim esteve acompanhado de seu ministro das Relações Exteriores, Ri Yong-ho, e pelo vice-presidente do Comitê Central do Partido dos Trabalhadores, Kim Yong-chol, que esteve na Casa Branca há duas semanas para discussões preparatórias. Depois, durante um almoço de trabalho, juntaram-se ao grupo a secretária de Imprensa da Casa Branca, Sarah Sanders; o embaixador americano nas Filipinas, Sung Kim; e o diretor sênior para Ásia do Conselho de Segurança Nacional, Matt Pottinger. Ao final da reunião, Pompeo conversou por telefone com o ministro das Relações Exteriores do Japão, Taro Kono, e com o da Coreia do Sul, Kang Kyung-wha, para atualizá-los sobre a cúpula.

Nas quase quatro horas de reunião, que foi “realmente fantástica”, “realmente muito positiva” e com “muito progresso”, ambos desenvolveram “uma ligação especial”, nas palavras de Trump. “Hoje, tivemos um encontro histórico e decidimos deixar o passado para trás”, teria dito Kim, acrescentando que “o mundo inteiro vai ver uma grande mudança”.

Promessas e fim dos treinos militares

De acordo com o presidente americano, o líder norte-coreano se comprometeu com a desnuclerização da península coreana e com a destruição de um local de testes de mísseis em seu país, além de prometer devolver aos Estados Unidos os restos mortais de integrantes dos serviços americanos vitimados durante a Guerra da Coreia (1950-1953). O presidente dos EUA não informou, porém, como esse processo de desnuclearização será feito, nem como será o sistema de verificação do desmonte nuclear norte-coreano. No mundo ideal de Trump, o objetivo é chegar a uma “completa, verificável e irreversível” desnuclearização e à normalização das relações. Enquanto isso, estão mantidas as sanções econômicas, as quais dizem respeito à questão nuclear, assim como a de direitos humanos.

Em um anúncio bastante polêmico, que surpreendeu o Pentágono e os aliados regionais e foi criticado por vários congressistas e políticos americanos, Trump informou que encerrará os “jogos de guerra”, como são chamados os exercícios militares anuais realizados em parceria com a Coreia do Sul. Nesses treinos, soldados americanos e sul-coreanos ensaiam um ataque à Coreia do Norte, ou uma resposta imediata a uma súbita queda de regime, com o apoio de caças B-1 e B-52, submarinos de capacidade nuclear, entre outros. O presidente declarou que considera, inclusive, mandar esses militares de volta para casa, em algum momento, retirando as tropas americanas de Seul. Em um encontro de Defesa em Singapura no início do mês, o ministro sul-coreano dessa pasta, Song Young-moo, havia afirmado que as atividades militares eram “uma questão separada da questão nuclear norte-coreana” e que “as forças americanas permanecem na península coreana para manter a paz e a estabilidade na península coreana e no nordeste da Ásia”. Parece, agora, que este é um tema em aberto.

A prática era uma antiga queixa do governo norte-coreano, que a via como uma ameaça clara e constante. Como justificativa para sua decisão, o presidente americano disse que os exercícios são “provocadores” e “inadequados”, nesse novo contexto de reaproximação, além de custosos. “Vamos economizar uma quantia tremenda de dinheiro”, alegou. Foi um visível ganho político para Kim e que surpreendeu sul-coreanos, chineses e japoneses, os atores mais diretamente envolvidos com a questão coreana.

Com essa decisão, Trump também reconheceu o peso e o papel do principal aliado de Pyongyang, a China, que está na origem dessa proposta de “congelamento por congelamento”, sugerida no último ano. A ideia de Pequim é que, em sinal de boa vontade e para facilitar o diálogo bilateral, os EUA suspendam seus exercícios militares e, em troca, a Coreia do Norte congelará seus testes nucleares e de mísseis. “Acho que ninguém pode duvidar do papel extremamente singular e importante que a China desempenhou”, apontou o ministro chinês das Relações Exteriores, Wang Yi, após o anúncio de Trump.

Reações

Em casa, as reações foram do otimismo prudente, ao ceticismo, passando pela aprovação ao encontro e aos anúncios do presidente Trump. Uma das críticas feitas por vários políticos americanos foi em relação ao fim dos exercícios militares, uma concessão que teria sido feita aos norte-coreanos sem qualquer contrapartida.

Em um comunicado, a líder da minoria na Câmara de Representantes, a democrata Nancy Pelosi (D-CA), reconheceu os “sérios esforços” para desnuclearizar a península coreana, mas criticou que Trump tenha feito “concessões em troca de promessas vagas que não abordam esse objetivo”. Ainda segundo ela, além de preservar o status quo da Coreia do Norte, o presidente insiste em “marginalizar” o corpo diplomático e “depreciar” os aliados dos Estados Unidos. No Twitter, o líder da bancada republicana no Senado, John Cornyn (R-TX), referiu-se às “atrocidades” cometidas durante o governo Kim Jong-un. Para o senador democrata, Chris Murphy (D-CT), “os gulags de Kim, as execuções públicas, a fome planejada são legitimados na cena mundial”. O também senador democrata Brian Schatz (D-HI) falou em “abdicação da liderança americana”, criticando que “em menos de uma semana o presidente Trump virou nossa relação com o mundo ocidental de cabeça para baixo e desenvolveu o que parece ser uma verdadeira amizade com um dos mais cruéis déspotas do planeta. ‘America First’ está minando nossos valores e nossos interesses”.

Já o representante Mike Rogers (R-AL) elogiou a “verdadeira liderança” de Trump e celebrou o compromisso de desnuclearização da Coreia do Norte. O senador Lindsey Graham (R-SC) também insistiu no objetivo final, que é o fim das armas nucleares. “Estou propenso a fazer muitas coisas para levá-lo (Kim) a desistir de suas armas nucleares e pôr fim a seu programa de mísseis (…) Eu realmente não ligo o quão generoso nós sejamos desde que não tenhamos de ir muito longe, quando se trata da presença das nossas tropas (…) Eu sou um realista. Não estou tentando levar a democracia para a Coreia do Norte. Não estou tentando unificar a Coreia do Sul e a Coreia do Norte”, declarou Graham.

Exercício tautológico

Apesar de toda confiança demonstrada pelo presidente americano, foram difíceis as negociações diplomáticas de última hora para chegar a uma declaração final minimamente consensual. Talvez por isso o resultado desta “muito abrangente” declaração – segundo Trump – tenha sido um texto genérico, repetitivo, meramente protocolar e econômico em conteúdo. Não há prazos, procedimentos, ou caminhos a serem seguidos para viabilizar qualquer item da pauta. Sem divulgar detalhes, o secretário Pompeo disse apenas que as “garantias de segurança” dadas à Coreia do Norte são diferentes daquelas já oferecidas em negociações durante os governos W. Bush, ou Clinton.

O cerne da vaga declaração é o compromisso “firmado” por Estados Unidos e Coreia do Norte de restabelecerem as relações bilaterais e construírem um regime de paz na península coreana, o qual se dará, sobretudo, pela total desnuclearização nesta região. Não há no texto (e não houve menção a esses aspectos na coletiva de imprensa), porém, nenhuma menção a se, como e quando as armas nucleares serão desmanteladas e removidas, se e quando o programa de enriquecimento de urânio será paralisado, quando os sítios de testes nucleares serão fechados, ou sobre o fim da produção de combustível para a bomba H e de armas químicas e biológicas, por exemplo. Nada está claro até este momento, e a falta de informação sugere pressa, mais espetáculo do que política, imprevisibilidade e (ainda) pouca concretude nas propostas. Também permite questionar o quanto dessa lista será, de fato, levado adiante. Outro ponto é a ausência de informações sobre o que, exatamente, está na mesa de negociação para convencer Kim a abrir mão de ser um dos poucos membros do restrito clube das potências nucleares.

A questão dos direitos humanos se tornou um não-tema nesta cúpula e está ausente da declaração. Apesar da pressão de organizações humanitárias, de políticos americanos e de países como o Japão, a temática não parece ter feito parte da pauta do encontro. Na entrevista coletiva pós-cúpula, o presidente Trump se mostrou evasivo ao comentar, por exemplo, a morte do universitário americano Otto Warmbier, detido por 17 meses na Coreia do Norte e entregue aos EUA em estado de coma. O estudante faleceu alguns dias depois de voltar para casa. “Warmbier não morreu em vão”, desconversou Trump na entrevista coletiva.

De acordo com o relatório de uma comissão da ONU de 2014, na Coreia do Norte, esses crimes “implicam extermínio, assassinato, escravidão, tortura, prisão, estupro, abortos forçados e outros tipos de violência sexual, perseguição política, religiosa, racial e de gênero, transferência forçada de populações, desaparecimento forçado de pessoas e o ato desumano de causar fome prolongada”.

Veja o texto completo da declaração final

“Declaração Conjunta do Presidente Donald J. Trump dos Estados Unidos da América e do chairman Kim Jong-un da República Popular Democrática da Coreia (RPDC) na cúpula de Singapura

O presidente Donald J. Trump dos Estados Unidos da América e o chairman Kim Jong-un da Comissão de Negócios de Estado da República Popular Democrática da Coreia (RPDC) tiveram uma primeira e histórica cúpula, em Singapura, em 12 de junho de 2018.

O presidente Trump e o chairman Kim Jong-un tiveram uma sincera, aprofundada e abrangente troca de opiniões em questões relacionadas ao estabelecimento de novas relações EUA-RPDC e à construção de um duradouro e robusto regime de paz na península coreana. O presidente Trump se comprometeu a dar garantias de segurança à RPDC, e o chairman Kim Jong-un reafirmou seu firme e inabalável compromisso com completar a desnuclearização da península coreana.

Convencidos de que o estabelecimento de novas relações EUA-RPDC vão contribuir para a paz e a prosperidade na península coreana e no mundo, e reconhecendo que a construção da confiança mútua pode promover a desnuclearização da península coreana, o presidente Trump e o chairman Kim Jong-un declaram o seguinte:

Os Estados Unidos e a RPDC se comprometem a estabelecer novas relações EUA-RPDC, em concordância com o desejo dos povos dos dois países pela paz e pela prosperidade.

Os Estados Unidos e a RPDC vão conjugar seus esforços para construir um regime de paz estável e duradouro na península coreana.

Reafirmando a Declaração de Panmunjom, de 27 de abril de 2018, a RPDC se compromete a trabalhar para a completa desnuclearização da península coreana.

Os Estados Unidos e a RPDC se comprometem a recuperar os restos mortais de prisioneiros de guerra e desaparecidos em ação, incluindo a repatriação imediata daqueles já identificados.

Tendo reconhecido que a cúpula EUA-RPDC — a primeira na história — foi um evento épico de grande importância para superar décadas de tensões e de hostilidades entre os dois países e para a abertura para um novo futuro, o presidente Trump e o chairman Kim Jong-un se comprometem a implementar as disposições desta declaração conjunta pronta e plenamente. Os Estados Unidos e a RPDC se comprometem a fazer negociações complementares, lideradas pelo secretário de Estado americano, Mike Pompeo, e por uma importante autoridade de alto nível da RPDC, o quanto antes, para implementar os resultados da cúpula EUA-RPDC.

O presidente Donald J. Trump, dos Estados Unidos da América, e o chairman Kim Jong-un, da Comissão de Negócios de Estado da República Popular Democrática da Coreia (RPDC), comprometeram-se a cooperar para o desenvolvimento de novas relações EUA-RPDC e para a promoção da paz, da prosperidade e da segurança da península coreana e do mundo”.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais