Alarmes soam: o Tratado INF está prestes a morrer
por Andrei Kulov
Traduzido do Strategic Culture Foundation*
A divisão entre os EUA e o grupo de nações pertencentes ao que é conhecido como o “Ocidente Coletivo” (como ilustrado pela cúpula escandalosa do G7 no Canadá) – somada às crescentes fraturas dentro da OTAN e da UE, às relações tensas entre o Ocidente e a Rússia, à possibilidade de uma guerra entre Israel e o Irã e suas possíveis repercussões, bem como uma série de outros tópicos mais importantes – ganhou as manchetes dos meios de comunicação, deixando na sombra questões de real importância fundamental, como a erosão de políticas de controle de armas.
Perigos significativos surgem por aí. Alguma coisa tem de ser feita. O tempo está se esgotando e o sistema inteiro poderá se desfazer em breve. Se uma corrida armamentista irrestrita começar, todos os problemas que hoje são vistos como prioridades máximas desaparecerão na insignificância. É hora de soar alguns alarmes.
É natural levantar essa questão em junho – o mês em que o Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, em Inglês) celebra o trigésimo aniversário de sua aprovação. Este acordo proibiu todos os mísseis nucleares e convencionais terrestres dos EUA e da Rússia, bem como seus lançadores, com faixas de 500 a 1.000 km ou 310 a 620 milhas (curto alcance) e 1.000 a 5.500 km ou 620 a 3.420 milhas (alcance intermediário). Foi a primeira vez na história que uma classe inteira de armas foi eliminada e uma nova estrutura de verificação de conformidade foi estabelecida.
Os EUA e a Rússia acusam um ao outro pela violação. Como resultado, o tratado, visto na década de 1980 como uma grande conquista que tirou o mundo do abismo da guerra nuclear, está à beira do colapso agora. Imagine o alcance e a seriedade do problema: há oito anos não acontecem negociações para controle de armas entre as duas principais potências nucleares! O New START, outro pilar do regime de controle de armas, foi menosprezado pelo governo dos EUA três anos antes de expirar. Os planos americanos de modernização nuclear podem acabar enterrando o que resta do regime de controle de armas – problema que merece muito mais atenção do que tem recebido.
As acusações dos Estados Unidos se resumem principalmente ao suposto teste da Rússia com o Iskander, um míssil de cruzeiro disparado de plataformas de lançamento, com um alcance que viola as disposições do tratado. Moscou rejeita essa afirmação. Afinal, foi ou não comprovado? É preciso ser imparcial, mas os EUA nunca apresentaram nenhuma evidência, pelo menos nada disponível em fontes abertas que sustente as declarações.
Por sua vez, em várias ocasiões, a Rússia afirmou que os EUA violaram o documento usando mísseis-alvo para testar seus sistemas de defesa de mísseis balísticos, que incluem o primeiro e o segundo estágio do Minuteman II americano, que tem um alcance superior a 1.000 km. Os alvos são movidos por motores de mísseis de alcance intermediário. O Artigo VI do Tratado INF estabelece que nenhuma das partes deverá “produzir ou testar em voo quaisquer mísseis de alcance intermédio ou produzir quaisquer fases de tais mísseis ou lançadores desses mísseis.” Testar veículos aéreos de combate não tripulados, que tecnicamente se qualificam como mísseis de cruzeiro, também é uma violação Os lançadores Mk-41 usados pelo sistema de defesa de mísseis Aegis Ashore, estacionados na Romênia, podem disparar mísseis de médio alcance Tomahawk, como acontece quando o Mk-41 é usado por navios de guerra. Isto é claramente uma violação. Não há como negar isso. Nunca foi dada nenhuma explicação séria a Moscou, exceto as garantias de que, uma vez em terra, os lançadores são transformados em algo bem diferente do que quando instalados em navios! Em outras palavras, os EUA não têm nada a dizer. Vinte e quatro mísseis lançados da Romênia não são um número enorme, mas haverá mais quando outro Aegis Ashore for implantado em algum lugar na Polônia em 2020. Não são os números que importam. Houve uma violação pelos EUA e esse fato é inegável.
A Lei de Autorização de Defesa Nacional de 2018 autoriza o desenvolvimento de mísseis terrestres de alcance intermediário que são proibidos pelo tratado. Em fevereiro, um grupo bipartidário de legisladores submeteu o Ato de Preservação do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário para forçar Moscou a tomar medidas que eles acreditam atender às provisões do tratado. O projeto de lei diz que, entre outras coisas, o New START não deve ser estendido e que o Tratado de Céus Abertos deve ser suspenso até que Moscou aceite as exigências dos EUA. A ideia de vincular um acordo ao outro é fundamentalmente errada. Essa abordagem ameaça todo o regime de controle de armas, ou o que resta dele.
A conformidade com o INF também é um problema europeu. Os aliados americanos da OTAN se tornariam alvos dos ataques de retaliação da Rússia, caso esse acordo não fosse mais vinculante. Até agora, nenhum membro europeu da aliança pediu aos EUA que usem armas de alcance intermediário em seu solo. É claro que a influência dos EUA na Europa seria ampliada enormemente se os Estados Unidos usassem o bicho-papão nuclear russo como desculpa para fornecer aos aliados os meios de dissuasão dos quais viriam a depender. Isso tornaria os europeus muito mais dóceis em relação às tarifas comerciais e a outras questões divisivas, como demonstrou a recente cúpula do G7 no Canadá. É verdade que a Rússia e os EUA têm problemas com o tratado. As tentativas de resolver essas diferenças no âmbito da Comissão Especial de Verificação (SVC, em Inglês) falharam até o momento. A reunião em dezembro foi reduzida a acusações e negações. Mas se houver vontade, haverá caminho. Inspeções no local feitas sem aviso com muita antecedência ajudariam muito para o fortalecimento de medidas de construção de confiança. Por exemplo, as equipes de inspeção russas poderiam ver com os próprios olhos que o Standards-3 ou o Tomahawk estão instalados nos lançadores Mk-41 do Aegis Ashore na Romênia ou na Polônia. Se os dados transmitidos via satélite mostrassem algo suspeito, as equipes de inspeção deveriam ter o direito de verificar sem aviso prévio para dissipar as suspeitas.
Os tubos dos lançadores Mk-41 poderiam ser modificados para impossibilitar a instalação de Tomahawks. Isto pode ser facilmente verificado por inspeções no local. Um acordo sobre troca de dados de telemetria seria outro passo para acalmar preocupações. Grupos de trabalho poderiam elaborar propostas detalhadas.
Nas dezenas de anos de cooperação para o controle de armas, a Rússia e os EUA ganharam ampla experiência com medidas de verificação. Não é preciso ser um especialista no campo para perceber que os problemas relacionados à conformidade com o Tratado INF têm solução. Não estamos num beco sem saída, mas o ambiente não é propício para se avançar. Nem o Congresso dos EUA, nem os militares estão interessados em fazer progressos para preservar um acordo que custou tanto esforço. O mesmo se aplica ao New START. As esperanças de sua extensão em 2021 estão desaparecendo, mas o tratado pode e deve ser preservado, caso contrário, não haverá restrições à corrida armamentista nuclear. Isso terá consequências terríveis. Lembra da crise dos mísseis cubanos?
O que ambas as partes precisam é de um diálogo estratégico restrito, e o Tratado INF precisa fazer parte disso. Há muitas camadas de desconfiança que obscurecem o relacionamento, mas questões urgentes de controle de armas devem ser tratadas imediatamente, não importa o que esteja acontecendo no mundo ou em outros aspectos desse relacionamento bilateral. Os chefes de equipe dos dois países se reúnem regularmente – isso é base para um diálogo ampliado. Poderia ser complementado com contatos entre órgãos legislativos e outros especialistas. Os sistemas de defesa de mísseis balísticos e as armas convencionais de longo alcance poderiam ser incluídas em futuras conversas sobre segurança. É uma pena que essa questão não tenha recebido a devida atenção na reunião do Conselho OTAN-Rússia de 31 de maio.
Este artigo não pretende ser sobre a situação lamentável do relacionamento Rússia-EUA ou os problemas que a envolvem. Não se trata de determinar quem está certo e errado, mas sim uma tentativa de destacar a urgência de abordar essa questão de importância vital para todos. Uma série de opções e ângulos deve ser explorada para se encontrar uma solução para a mais séria crise nos 55 anos de história do controle de armas nucleares desde o Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares, em 1963. Nos encontramos numa bifurcação na estrada, e o tempo que resta para se fazer uma escolha final está se esgotando.
Nos anos 80, as duas superpotências nucleares conseguiram grandes progressos, porque mísseis de alcance intermediário, armas ofensivas estratégicas e armas espaciais foram abordadas como questões separadas. Como resultado, o Tratado INF e o START I se concretizaram e o armamento sideral (Guerra nas Estrelas) foi evitado. A Rússia e os EUA poderiam aproveitar essa experiência hoje isolando as questões da Síria, o acordo com o Irã, o caso Skripal, a suposta interferência eleitoral, e todas as outras polêmicas preocupações – não importa o quão polêmicas sejam – das conversas sobre o INF e o New START, que estão sendo conduzidas separadamente. Eles devem pegar o touro pelos chifre e fazer a coisa certa – salvar o mundo da devastação nuclear.
Tradução por Solange Reis
* Artigo originalmente publicado em 12/06/2018, em https://www.strategic-culture.org/news/2018/06/12/the-inf-treaty-about-give-up-ghost-alarm-bells-ringing.html