Auf Wiedersehen, ordem liberal
por Solange Reis
Agora é a hora do conservadorismo político na Europa. Foi o que disse o novo embaixador dos Estados Unidos na Alemanha, Richard Grenell. A ideia foi exposta no domingo (3), em entrevista para o Breitbart News, site ultraconservador de direita.
“Quero muito fortalecer outros conservadores na Europa toda” ou “acho que há uma onda de políticas conservadoras de prontidão devido às políticas fracassadas da esquerda” foram algumas frases usadas pelo diplomata.
Como exemplo de político que gostaria de promover, citou o primeiro-ministro da Áustria, Sebastian Kurz. O austríaco é membro do Die neue Volkspartei, partido conservador que formou coalizão de governo com o Freiheitliche Partei Österreichs, partido de extrema-direita fundado por ex-nazistas nos anos 1950.
O diplomata já trabalhou como porta-voz de outros republicanos conservadores, a exemplo de George W. Bush e Mitt Romney. Dono da Capitol Media Partners, consultoria de mídia e relações públicas, Grenell atuava até recentemente como comentarista na Fox News.
Agora, assume não apenas a bem localizada embaixada americana em Berlim, como parece integrar um projeto arriscado para a ordem liberal do pós-1945.
Reações na Alemanha
A declaração provocou diversas reações negativas em Berlim. Mantendo o tom diplomático, a chanceler Angela Merkel pediu esclarecimentos. Já o social-democrata Martin Schulz, hoje membro do governo de coalizão, chamou Grenell de “funcionário colonialista de extrema-direita”.
Rolf Muetzenich, vice-líder dos sociais-democratas no Parlamento, disse que Grenell vê a si mesmo como uma “extensão do movimento mundial conservador de extrema-direita”. Na sua opinião, o embaixador viola a Convenção de Viena de 1961, que estabelece a não interferência de diplomatas em assuntos domésticos de outros países.
Para o partido alemão mais à esquerda, Die Linke, a mensagem esconde o desejo e o ensejo por mudança de regime. Por essas e outras, vários políticos no Bundestag (Parlamento Alemão) pediram a expulsão de Grenell.
O embaixador refutou as críticas e as acusações, dizendo que não pretende apoiar partidos políticos. Disse ter se referido ao “despertar da maioria silenciosa que rejeita as elites e suas bolhas”, assim como aconteceu nos Estados Unidos sob a liderança de Trump.
Nova roupagem, velha carcaça dos anos 1930, que foram o ponto de ebulição do totalitarismo na Europa.
Não foi a primeira vez, e certamente não será a última, em que o diplomata lançou uma bomba retórica. Ao assumir o posto no início de maio, ele sugeriu que empresas alemãs no Irã interrompam as atividades imediatamente para não serem punidas por sanções.
Auf Wiedersehen, ordem liberal
A Convenção de Genebra pode discordar, mas diplomacia acaba sendo parte do jogo político. Nela são esperados blefes, simulações, influências e conchavos. Raramente, porém, os jogadores expõem as cartas como Grenell o fez.
Declarações super sinceras são incomuns no meio diplomático, e o problema desta vez vai muito além da mera inadequação da linguagem. Grenell é parte da engrenagem do atual governo americano para exportar uma visão de mundo diferente da ordem liberal desenhada pelos Estados Unidos em parceria com a Europa no pós-1945.
Não que as potências transatlânticas tenham sempre se comportado para construir uma sociedade de Estados justa para todos. A dita ordem liberal tem hierarquias e é melhor entendida pelos desequilíbrios entre os centros, semiperiferias e periferias. E justamente porque a ordem liberal favoreceu os Estados Unidos e os países europeus mais ricos, é difícil entender o plano de Trump para desmontá-la.
Para promover a chamada direita alternativa europeia não basta achincalhar a esquerda e manter a onda conservadora nos países do Leste Europeu. Pretende-se atrair os eleitores do “centrão” onde radicais de direita ainda não tomaram o poder central.
Além disso, é preciso quebrar a espinha dorsal da União Europeia: França e Alemanha, e suas respectivas lideranças centristas, Emmanuel Macron e Merkel. Na melhor das hipóteses, como diz Thomas Wright, do Brookings, manter neutralidade quanto à integração.
Outros especialistas, como Martin Gak, são mais incisivos e consideram a embaixada dos Estados Unidos sob a direção de Grenell a voz anti-União Europeia mais gabaritada em solo europeu.
Parceria em desconcerto
O fato de Grenell ter sido nomeado para o posto em Berlim, e não em Bruxelas ou outra capital relevante na Europa, também diz muito sobre o futuro das relações transatlânticas centradas na parceria entre Alemanha e Estados Unidos.
Qual seria o momento mais adequado para convencer os descontentes do que no ano em que Merkel se vira do avesso para formar uma débil coalizão com os socialistas, tendo como principal oposição no Parlamento o AfD, partido de extrema-direita?
A gestão Trump sabe que desacreditar o status quo em Berlim teria efeito dominó na Europa.
Pensando assim, as tarifas sobre aço e alumínio aos aliados europeus têm objetivos que não são só comerciais. Um dos propósitos é aumentar o dissenso a respeito de uma das poucas áreas nas quais a União Europeia tem, de fato, conseguido atuar como bloco.
Ao defender a não construção do gasoduto Nordstream 2 entre Alemanha e Rússia, Trump atinge em cheio os interesses alemães sobre segurança energética, a fim de favorecer as exportações de gás liquefeito americano e atender às demandas geopolíticas ou econômicas de países como Polônia, Hungria e Ucrânia.
Quando saiu do acordo com o Irã, mandou um sinal bastante claro de que os principais países europeus são atores coadjuvantes na política internacional.
Adulando o populismo nacionalista no Leste Europeu, Washington capacita os eurocéticos, assim chamados por defenderem o desmonte do bloco europeu. Trump e seus ideólogos consideram a União Europeia uma plataforma econômica para a Alemanha, concorrente comercial dos Estados Unidos em bens de alto valor agregado.
Quem ficar surpreso com a deterioração das relações é porque não prestou atenção aos sinais desde a posse de Trump. A primeira visita oficial do presidente ao velho continente não foi a Londres, Paris, Berlim ou Bruxelas. O destino foi Varsóvia, com seu governo populista de ultradireita. Lá, com motes do tipo “pela família, pela liberdade, pela pátria e por Deus”, Trump fez um discurso escatológico sobre choque de civilizações.
Desde então, não perdeu a oportunidade de criticar o governo alemão pelo acolhimento a refugiados, pelo superávit na balança comercial com os Estados Unidos e pelos baixos gastos com defesa.
A França também é alvo de críticas, mas está longe de representar o mal encarnado pela Alemanha para a Casa Branca. Mas isso também dependerá de como Macron reagirá ao evidente fracasso de sua tentativa como mediador entre Trump, o velho continente e o mundo.
Trump não é um berlinense
É fato que, já algum tempo, as relações entre os dois países não são mais as mesmas do tempo em que John Kennedy se declarou um berlinense ao criticar “in loco”, em 1963, a construção do Muro de Berlim pelos soviéticos e garantir apoio americano a uma Alemanha liberal.
Porém, muita coisa mudou nos últimos 50 anos. A Guerra Fria acabou e, com ela, a razão de ser da parceria assimétrica entre os dois países. Com a reunificação da Alemanha, parte da classe política e intelectual alemã advogou por uma política externa autônoma. Falava-se em normalização, no sentido de colocar os interesses nacionais acima de tudo, e até em hipervalorização de imagem, algo que à la Trump se traduziria como “Germany First” ou “Make Germany Great Again”.
A ideia da Alemanha reunificada, no leme econômico-financeiro da União Europeia e com pretensões ambiciosas causava calafrios generalizados. Ainda que sob o disfarce do humanitarismo, houve algum ensaio nessa direção. Foi o caso da participação militar alemã no Kosovo, em 1999, a primeira ação do tipo desde o fim da Segunda Guerra.
De forma geral, a Alemanha manteve o discurso do multilateralismo e rejeitou os apelos para se tornar um país normal no sentido realista do termo.
Trump não foi o primeiro a atirar no multilateralismo e na cooperação com os países europeus centrais. George W. Bush já tinha enfraquecido o elo com a França e a Alemanha quando decidiu, unilateralmente, invadir o Iraque, recebendo de ambos aliados uma “negativa” ao apelo por apoio.
Ainda como candidato em 2008, Barack Obama avançou algumas casas na reconquista da simpatia alemã com um discurso histórico em Berlim sobre ordem liberal, multilateralismo e democracia. Não obstante, anos depois, o governo alemão notou que havia chegado o fim de uma era. Foi sob as ordens do democrata que a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA, na sigla em Inglês) grampeou a comunicação da chanceler Merkel. Também foi decisão dele fechar várias bases militares americanas na Europa, principalmente na Alemanha, e voltar a estratégia de segurança dos Estados Unidos para a Ásia.
A eleição de Trump chuta para escanteio o “transatlanticismo” que, na maior parte do tempo, norteou as políticas externas nos dois lados do Atlântico desde a Segunda Guerra Mundial. Pois o republicano nunca escondeu a insatisfação com o que o considera a avareza da Europa para pagar por sua própria defesa e segurança. Já em 1987, um artigo do The New York Times explicou que anúncios pagos por Trump na época indicavam o que seria a sua política externa numa eventual presidência. Entre as propostas, os Estados Unidos deviam parar de custear a defesa de países financeiramente capazes.
Sozinhos e ressentidos
No discurso em Berlim, o então candidato Barack Obama disse aos alemães, “Conforme vocês avançam, podem ter certeza de que os Estados Unidos, seu maior aliado e amigo, ficarão ao seu lado, ombro a ombro, hoje e para sempre. Porque uma Europa unida continua sendo a esperança de muitos e a necessidade de todos nós”.
O grupo atualmente no poder em Washington discorda e promete fazer o que estiver ao seu alcance para desconstruir as alianças políticas que garantiram aos países centrais no Ocidente o controle das regras do xadrez global.
A posição hostil pode ter um efeito bumerangue. Se Trump quer que a Europa divida a conta da segurança regional e internacional, é preciso que o pilar França-Alemanha se mantenha firme.
Sem o apoio da Alemanha, os Estados Unidos perdem capacidade de influência institucional na Europa e no mundo.
A imprensa mundial força a dicotomia entre Ocidente e Oriente, com Estados Unidos e Europa de um lado, e Rússia e China do outro. Desconsideram que a estratégia chinesa “Um Cinturão, Uma Estrada” pretende estreitar os mercados asiáticos e europeu. Tarefa difícil do ponto de vista geográfico, político, econômico-financeiro e cultural, mas certamente facilitada pelo enfraquecimento das relações transatlânticas.
Ao final de tudo, Trump poderá ter de trocar o lema “América em primeiro lugar” para “América sozinha e ressentida”.