O vaivém da cúpula Trump-Kim
por Tatiana Teixeira
Depois de um período de intensa escalada retórica e de troca de ameaças, inclusive nucleares, tudo parecia caminhar bem pela via diplomática para a realização de uma histórica cúpula entre o presidente Donald Trump e o líder norte-coreano, Kim Jong-un, em 12 de junho, em Singapura. Até a Casa Branca divulgar em 24 de maio uma inesperada carta de Trump, de estilo informal incomum e sem precedentes no protocolo da diplomacia americana. O evento foi cancelado, devido à “enorme raiva e aberta hostilidade” de Kim e à sua ameaça de abandonar as conversas, caso Washington continuasse a insistir na total desnuclearização de Pyongyang. Trump teria se antecipado a Kim, saindo das negociações antes que o “homem-foguete” o fizesse. Segundo fontes do alto escalão, a carta foi totalmente ditada pelo presidente.
Além desse comunicado, de tom ambíguo, que deixou entreaberta a possibilidade de continuar a negociação, o presidente Trump garantiu que a “campanha de pressão máxima” sobre a Coreia do Norte seria mantida. Segundo o secretário de Estado, Mike Pompeo, em declaração ao Comitê de Relações Exteriores do Senado, outra explicação para o cancelamento é que Pyongyang não teria reagido às demandas dos Estados Unidos para a preparação da reunião. E, para tranquilizar o aliado sul-coreano, após o bombástico anúncio de Trump, Pompeo telefonou para o ministro das Relações Exteriores de Seul, Kang Kyung-wha, para lhe garantir que Washington continua comprometido com a desnuclearização da península.
Na verdade, a própria decisão de Trump de aceitar participar de uma cúpula bilateral também foi inesperada, após sugestão feita pelo presidente sul-coreano, Moon Jae-in, em um encontro no dia 8 de março, na Casa Branca.
Política errática e imprevisível
Marcada pelo embate entre as diferentes visões no círculo mais próximo de Trump sobre como lidar com a Coreia, a discussão a respeito da cúpula teria sido entre o presidente; Pompeo; o chefe de gabinete, John Kelly; o vice-presidente, Mike Pence; e o conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, um conhecido defensor da mudança de regime na Coreia do Norte. O secretário da Defesa, Jim Mattis, que não participou dessa reunião, privilegia a solução diplomática.
Enquanto Bolton e Pence são a favor da linha-dura com Pyongyang e contrários à cúpula bilateral, Pompeo tem feito movimentos de aproximação com o rival dos Estados Unidos. Embarcou em uma viagem secreta ao país, pouco antes de assumir a pasta, quando ainda era diretor da CIA, e, na ocasião, encontrou-se com Kim para discutir as bases de uma futura aproximação. Já como secretário de Estado fez nova visita e esteve à frente da gestão pela soltura dos três americanos de origem coreana – Kim Dong-chul, Tony Kim e Kim Hak-song – detidos na Coreia do Norte nos últimos três anos. Sobre eles, pesavam acusações de espionagem, ou de atos hostis, cometidos contra o governo norte-coreano.
Difícil ainda saber até que ponto se trata de amadorismo, capricho ou impulsividade de Trump, de mensagens contraditórias decorrentes do choque de preferências políticas entre seus funcionários, de leitura equivocada sobre o valor da imprevisibilidade para tratar de questões nucleares, ou se há uma estratégia de fato orientando esse vaivém nas discussões com o país asiático.
Reações
O anúncio do cancelamento pegou de surpresa até mesmo a Coreia do Sul, principal mediadora e incentivadora da cúpula. O presidente Moon Jae-in disse ter ficado “muito perplexo” com a decisão “desconcertante e muito lamentável”. Em reunião no mesmo dia com seu Conselho de Segurança Nacional, Moon reforçou que “a desnuclearização da península coreana e a construção de uma paz permanente na península são uma tarefa, da qual não podemos desistir, ou adiar”. Logo no fim de semana seguinte, ele e Kim tiveram uma reunião secreta na Zona Desmilitarizada para tratar do próximo movimento no xadrez político, decidindo dar continuidade às discussões já em curso – apesar da decisão americana.
O porta-voz do Ministério chinês das Relações Exteriores, Lu Kang, também reagiu, pedindo a ambos os lados que “abracem os progressos positivos recentes, permaneçam pacientes, demonstrem boa vontade e voltem à mesa de negociação”. O país é um grande aliado de Pyongyang e tem reforçado seu apoio para não se manter à margem do processo.
Em casa, congressistas republicanos comemoraram o cancelamento do encontro. “Kim Jong-un é um déspota assassino e um mentiroso contumaz. O presidente tomou a decisão certa de cancelar essa cúpula”, afirmou o senador Ben Sasse (R-NE). Opinião esta que foi corroborada pelo líder da maioria republicana no Senado, senador Mitch McConnell (R-KY): “eles fizeram exatamente a coisa certa”. O senador democrata Christopher S. Murphy (D-CT) ironizou a decisão, “tão confusa quanto tudo mais na política externa dessa Casa Branca”. Para o presidente do Comitê de Relações Exteriores da Câmara de Representantes, o também democrata Eliot Engel (D-NY), Trump “alienou nossos amigos, questionou o valor das nossas alianças e minou a credibilidade americana ao redor do mundo”.
Coreia do Norte cede
Mesmo depois do anúncio de Trump, a Coreia do Norte manteve a posição de negociar. De acordo com o primeiro-vice-ministro das Relações Exteriores de Pyongyang, Kim Kye-gwan, o país ainda busca a paz e dará aos EUA mais tempo para reconsiderar o diálogo. “O cancelamento unilateral da cúpula foi inesperado e muito lamentável. O primeiro encontro não resolveria tudo, mas mesmo resolvendo uma coisa de cada vez, por etapas, tornaria as relações melhores, e não piores”, declarou Kim no dia 25, acrescentando que “queremos que o lado americano saiba mais uma vez que temos a intenção de sentar com o lado americano para resolver problemas, independentemente da maneira, a qualquer momento”.
Trump reagiu bem, comemorando a declaração conciliadora de Pyongyang, e voltou a manifestar seu desejo de se reunir com Kim. “Muito boas notícias receber uma declaração acolhedora e produtiva da Coreia do Norte. Em breve veremos aonde isso vai levar. Espero que a uma longa e duradoura paz e prosperidade. Apenas o tempo (e o talento) vão dizer!”, afirmou o presidente, que já fala em uma desnuclearização “por etapas”, e não de uma única vez, como preconizam os falcões do governo.
O fato é que a carta de Trump não encerrou a história, e Washington deu um novo giro. Já no dia seguinte, o presidente americano anunciou que o encontro de 12 de junho ainda poderia acontecer. Uma delegação americana seguiu para Singapura, para lidar com as questões logísticas, enquanto outra viajou para a Coreia do Norte para se reunir com representantes norte-coreanos para as conversas preparatórias e tratar da agenda. Integram esta última o enviado americano para as Filipinas, ex-embaixador na Coreia do Sul e representante especial para Política Norte-Coreana, Sung Kim; o vice-secretário de Defesa para Assuntos de Segurança da Ásia-Pacífico, Randall Schriver; e o diretor de Coreia no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, Allison Hooker.
Uma semana depois, em 1o de junho, Trump confirma que vai-se reunir com Kim, no próximo dia 12, conforme inicialmente programado. O mais recente anúncio (não é bom se arriscar a dizer que será o último) aconteceu depois de uma conversa de cerca de 80 minutos, no Salão Oval da Casa Branca, com o general norte-coreano Kim Yong-chol, que entregou ao presidente americano uma carta pessoal do líder da Coreia do Norte. O general Yong-chol é o representante de mais alto escalão de Pyongyang a visitar a Casa Branca desde 2000, então governo Bill Clinton. Na época, ensaiava-se para a realização da mesma cúpula que se tenta hoje, mas sem sucesso. Se acontecer desta vez, o encontro será o primeiro entre um presidente americano em exercício e um líder norte-coreano.
“Vamos estar no dia 12 de junho. Estaremos em Singapura. Será um começo”, declarou Trump à imprensa, acrescentando que “eu acho que teremos um resultado muito positivo no final”.
Na antessala da cúpula, dois movimentos foram feitos pela Coreia do Norte. O primeiro, no mesmo dia do cancelamento da reunião por parte dos EUA, foi a destruição de um sítio de testes nucleares na presença de jornalistas estrangeiros. O outro foi a libertação dos três americanos detidos. Além disso, Pyongyang também chegou a se comprometer a interromper seus testes nucleares e de mísseis.
O modelo líbio
O gatilho da nova escalada retórica norte-coreana – a qual teria levado à carta abrupta de Trump – está em declarações públicas recentes de John Bolton e de Mike Pence. Ambos ameaçaram Kim com uma mudança de regime, no “modelo líbio”, caso ele não aceite os termos de Washington para se livrar de suas armas nucleares. O primeiro a falar foi Bolton, no final de abril, ao se referir à Líbia como um exemplo a ser considerado para tratar do caso norte-coreano.
“Houve alguma conversa sobre o modelo líbio. Como o presidente deixou claro, isso vai apenas terminar como o modelo líbio terminou, se Kim Jong-un não fizer um acordo”, afirmou Pence, algum tempo depois, ao comentar a declaração de Bolton, em uma entrevista à Fox News.
Com a ajuda dos EUA, o então presidente líbio, Muammar Kadhafi, foi deposto, mesmo depois de abrir mão de seu programa nuclear, em 2003, de forma voluntária, unilateral e sem incentivos em troca. Ele acabou morto por rebeldes líbios, em 2011, durante as revoltas da chamada “Primavera Árabe”, com o apoio da campanha de bombardeios aéreos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Aconselhado pela então secretária de Estado, Hillary Clinton, o presidente Barack Obama autorizou a participação dos EUA na intervenção líbia, junto com seus aliados europeus. Desde então, esse episódio é sempre lembrado pela Coreia do Norte e usado como um dos argumentos para não abrir mão de seu programa nuclear, de modo a manter sua segurança e fortalecer seu poder de barganha.
Ambos irritaram Trump e o governo norte-coreano. Enquanto Trump rejeitou a comparação líbia feita por Pence, chegando a garantir a segurança de Kim, Pyongyang reagiu duramente. A vice-ministra das Relações Exteriores da Coreia do Norte, Choe Son-hui, chamou o vice-presidente Mike Pence de “idiota político” e garantiu que seu governo está preparado para infligir uma “terrível tragédia” aos EUA. Segundo ela, o programa líbio ainda estava no início quando o país decidiu sentar à mesa para negociar, enquanto a Coreia do Norte está “há anos” desenvolvendo suas armas nucleares. “Não vamos nem implorar aos EUA por diálogo, nem nos darmos ao trabalho de convencê-los, se não quiserem sentar conosco”, frisou.
Uma carta ‘100% Trump’
Confira a curiosa carta na íntegra:
“Caro sr. presidente:
Apreciamos enormemente seu tempo, paciência e esforço em relação às nossas recentes negociações e discussões sobre uma cúpula tão longamente desejada por ambas as partes, que foi programada para acontecer em 12 de junho, em Singapura. Fomos informados de que o encontro foi solicitado pela Coreia do Norte, mas, para nós, isso é totalmente irrelevante. Eu estava muito ansioso para estar aí com você. Infelizmente, com base na enorme raiva e aberta hostilidade exibidas em sua mais recente declaração, sinto que é inapropriado, nesse momento, ter esse tão longamente planejado encontro. Então, que essa carta sirva para informar que a cúpula de Singapura, para o bem de ambas as partes, mas em detrimento do mundo, não vai acontecer. Você fala sobre capacidades nucleares, mas as nossas são tão maciças e poderosas que eu peço a Deus que nunca precisem ser usadas.
Sinto que um diálogo maravilhoso estava sendo construído entre nós e, em última análise, é apenas o diálogo que importa. Algum dia, espero ansiosamente encontrá-lo. Nesse meio-tempo, que lhe agradecer pela entrega dos reféns que agora estão em casa com suas famílias. Foi um bonito gesto e foi muito apreciado.
Se você mudar de ideia em relação a essa muito importante cúpula, por favor, não hesite em me ligar, ou escrever. O mundo, a Coreia do Norte em particular, perderam uma grande oportunidade para uma paz duradoura e grande prosperidade e riqueza. Essa oportunidade perdida é um momento realmente triste na história.
Sinceramente,
Donald J. Trump
Presidente dos Estados Unidos da América”