Explodir o acordo com o Irã aproxima a Eurásia da integração
por Federico Pieraccini
Traduzido do Strategic-Culture*
A anulação da estrutura do acordo nuclear com o Irã não poderia ser impedida pelas visitas ou súplicas de Merkel, Macron ou May. Donald Trump se recusou a renovar o acordo formalmente conhecido como Plano de Ação Conjunto Abrangente (JCPOA, na sigla em Inglês), retirando os Estados Unidos do compromisso. Na realidade, pouco muda para Washington, uma vez que os Estados Unidos nunca removeram para valer as sanções contra o Irã em 2015, e a confiança mútua nunca subiu acima dos níveis mínimos. A decisão americana, que nunca foi surpreendente, surge de quatro fatores fundamentais, a saber: a ligação (especialmente vis-à-vis financiamento eleitoral) entre o governo Trump e o governo israelense de Netanyahu; o acordo entre Mohammad bin Salman (MbS) com Donald Trump para adquirir centenas de bilhões de dólares em armas e investimentos nos Estados Unidos; atingir diretamente os aliados europeus como Alemanha, França e Reino Unido; e, finalmente, o desejo de agradar aos falcões anti-iranianos com os quais Trump cercou sua administração.
O primeiro-ministro israelense, Netanyahu, e o príncipe saudita, Mohammad bin Salman, estão unidos contra o Irã e cimentam publicamente uma aliança que, até agora, tem sido envolta em sigilo. A reaproximação política entre Arábia Saudita e Israel tem sido constante nos últimos 12 meses, convergindo para interesses anti-iranianos. A inclinação anti-Irã de Trump tem o apoio dos clãs Netanyahu e bin Salman, representando uma mudança de 180 graus na direção da política dos Estados Unidos para longe da que foi forjada através dos acordos nucleares alcançados pelo governo anterior.
O dinheiro saudita e o apoio político de Israel (e a pressão neoconservadora nos Estados Unidos) são fatores importantes para o governo Trump, que é particularmente refém das políticas domésticas e está ocupado com a investigação de Mueller, que gira incomodamente em torno do presidente americano.
A necessidade de Trump de se cercar de pessoas como Pompeo, Haspel e Bolton revela o desejo aquiescente de apaziguar o Estado, ao invés de combatê-lo. Qualquer briga que pudesse existir quando Trump assumiu o cargo deu lugar à colaboração frutífera com o Estado. Donald Trump parece ter chegado à conclusão de que é melhor negociar e fazer acordos com a máquina estatal do que tentar drenar o pântano, como prometera durante sua campanha eleitoral,.
A decisão sobre o JCPOA segue na esteira de outras políticas incendiárias que podem ser rotuladas como anti-Obama, ou pró-Israel e pró-Arábia Saudita, e até anti-europeias. Ao longo de vários anos, Washington vem lutando contra o pensamento estratégico de médio prazo, com decisões tomadas repentinamente, e com base em emoções ou no contexto da constante luta interna entre as elites mais ou menos conflitantes.
O exemplo mais recente diz respeito ao JCPOA, que parece confirmar uma tendência bastante evidente nos últimos dois anos. Washington está começando a pensar nos Estados Unidos em primeiro lugar, concentrando-se mais em questões domésticas do que na preocupação de manter a ordem mundial liberal e sustentar o status quo global. Trump parece não operar de acordo com qualquer lógica ou estratégia específica – renovando as sanções contra a Rússia, impondo tarifas comerciais à China, quebrando o acordo JCPOA, bombardeando a Síria, ou mesmo buscando uma aproximação sem precedentes com a Coreia do Norte. É inútil procurar qualquer linha lógica de pensamento em tudo isso, menos ainda uma grande estratégia que explique os objetivos finais de Washington. Os formuladores de políticas na capital dos Estados Unidos atuam baseados num objetivo de muito curto prazo, a saber: tentar agradar Netanyahu e a sacola de dinheiro que é o príncipe saudita; punir a Rússia; desistir do espectro de uma guerra comercial; pedir aos aliados que paguem mais por defesa (OTAN); ou impedir que empresas europeias trabalhem com parceiros importantes no Irã e até na Rússia (Nord Stream 2).
Tudo isso leva ao desentendimento entre os próprios aliados europeus, com a França e o Reino Unido prontos para bombardear a Síria e ameaçar o Irã, enquanto a Alemanha e a Itália se opõem a essas medidas com base no direito internacional e na necessidade de diplomacia.
Com a destruição do JCPOA e a renovação das sanções contra a Rússia, parece que os países europeus pretendem finalmente afirmar sua própria soberania legislando contra essas ações americanas prejudiciais. O Parlamento Europeu pretende adotar uma nova lei que bloqueia o pagamento de multas às autoridades dos Estados Unidos por qualquer empresa europeia sancionada por suas relações com Teerã. Os Estados Unidos querem forçar seus aliados europeus a escolher entre trabalhar com Teerã ou Washington. É uma chantagem do tipo mafiosa, da qual até mesmo Bruxelas parece estar cansada e contra qual pretende reagir com ações concretas. Uma situação semelhante envolvendo Bruxelas, em 1996, levou Bill Clinton a suspender tais ações destrutivas entre os aliados em favor da diplomacia.
Trump parece se preocupar pouco com os efeitos de médio e longo prazo de suas ações, nem ter qualquer interesse em harmonizar as relações com os aliados, especialmente a Alemanha de Merkel, com quem Washington tem uma balança comercial negativa, só perdendo para a com Pequim. O único ponto de continuidade entre Obama e Trump diz respeito à objeção ao Nord Stream 2 (o gasoduto que conecta a Rússia e a Alemanha). Se o pensamento estratégico por parte de Trump é inexistente, e diz respeito apenas aos objetivos de curto prazo ligados à imagem que ele gosta de projetar (de um sujeito durão que mantém suas promessas eleitorais, como o que diz respeito ao acordo iraniano), o efeito prático é uma estratégia que faz pouco sentido do ponto de vista americano. Os formuladores de políticas nos think tanks americanos semearam muitas das ações de Trump, e a culpa pelos últimos quinze anos de políticas fracassadas pode ser colocada na conta deles. Eles são os verdadeiros, ainda que involuntários, arquitetos do mundo multipolar emergente, e, inadvertidamente, serviram para acelerar o fim do momento unipolar americano. Mais uma vez, esses propositores de políticas se iludem pensando que as ações de Trump – sanções à Rússia, presença e atitude revigoradas e belicosas no Oriente Médio, e rompimento do JCPOA – são uma grande oportunidade para atingir alguns objetivos estratégicos perdidos nos últimos anos. O cálculo desses estrategistas está errado e as consequências são bem diferentes das pretendidas. Mas esses autoproclamados especialistas, cegos pelo dinheiro de dezenas de lobbies (os lobistas baseados em Israel, por exemplo), se tornam vítimas de sua própria propaganda, insistindo em muitas estratégias que prejudicam diretamente os interesses dos Estados Unidos globalmente e, particularmente, na região do Oriente Médio. Os formuladores de políticas ligados a esses think tanks, como o Brookings Institute ou o Center for Strategic and International Estudos (CSIS), estão mais do que convencidos de que uma forte pressão sobre o Irã impedirá a expansão do Crescente Xiita no Oriente Médio e a influência geral iraniana na região (de Teerã a Beirute via Bagdá e Damasco). As sanções contra a Rússia e o Irã servem, na opinião deles, para bloquear a independência energética europeia, que, do contrário, seria alcançada pela cooperação com ambos os países. A belicosidade redescoberta na região tende a combater a presença russa, mesmo que apenas psicologicamente, e a reafirmar a disposição de Washington para manter o comprometimento com a região e defender seus interesses (a ditadura saudita, sobretudo, graças ao preço do petróleo em dólares norte-americanos).
Este último ponto é de enorme importância em termos de estratégia global, sendo a Arábia Saudita um parceiro fundamental nesse sentido. A presença americana na região, juntamente com políticas anti-iranianas, serve para preservar o valioso aliado saudita, cada vez mais cortejado por Pequim com seu petroyuan convertível em ouro.
Washington se encontra cada vez mais isolado em suas políticas econômicas e militares. A visita de Merkel à Rússia reafirma o desejo de criar um eixo alternativo ao de Bruxelas e Washington. A vitória na Itália de dois partidos fortemente contrários às novas guerras e à anulação do JCPOA, e especialmente as sanções contra a Rússia, servem para formar uma nova aliança, acentuando as divisões internas dentro da Europa. Macron, Merkel e May lidam com com forte crise de popularidade em casa, o que não os ajuda na tomada de decisões.
Os mesmos problemas afetam MbS, Trump e Netanyahu em seus respectivos países. Esses líderes veem-se adotando políticas agressivas para aliviar problemas internos. Também lutam para encontrar uma estratégia comum, exibindo, muitas vezes, um comportamento esquizofrênico que desmente o fato de que foram feitos para estar do mesmo lado das barricadas em termos da ordem mundial desejada.
Em contraste direto, China, Rússia, Irã, e agora a Índia, tentam responder à loucura ocidental de maneira racional, moderada e mutuamente benéfica. E como resultado, os europeus talvez possam começar a entender que o futuro não está em pegar carona com Israel, Arábia Saudita e Estados Unidos. Trump parece ter criado a ocasião perfeita para os líderes europeus afirmarem sua soberania e começarem a se afastar de sua servidão tradicional em relação a Washington. Embora seja difícil imaginar um cisma acontecendo da noite para o dia, as chances de as capitais da Europa se chocarem com Washington não são mais tão remotas, para deleite de Moscou e Pequim, que pretendem incorporar a Europa em seu projeto mega-eurasiano como o quarto maior componente depois da Ásia, da União Euroasiática e do Oriente Médio/Golfo Pérsico.
Tradução por Solange Reis
* Artigo originalmente publicado em 25/05/2018, em https://www.strategic-culture.org/news/2018/05/27/blowing-up-iran-deal-brings-eurasia-closer-integration.html