Sobre a vida e a morte no reino dos opioides e do capitalismo

por Paulo Pereira

O mercado multibilionário das drogas ilícitas e lícitas é transnacional e mobiliza atores públicos e privados que operam em escala local, nacional e global. Algumas articulações de atores e drogas, classificadas como ilegais, estão envoltas em espirais de repressão e violência em diferentes cenários de paz formal, de guerra e de reconstrução de Estados. Outras articulações de atores e drogas, classificadas como legais, estão inseridas em dinâmicas de acumulação próprias do capitalismo e protegidas pelos aparelhos de Estado em todo o mundo. Esses dois espaços sociais de circulação das drogas, o ilícito e o lícito, não são totalmente apartados. Eles se conectam de diferentes formas, gerando contradições e dilemas éticos e políticos fundamentais. O contexto atual de consumo de opioides nos Estados Unidos evidencia esse fato com uma clareza surpreendente.

Nos últimos anos, dezenas de milhares de estadunidenses têm morrido por overdoses relacionadas a opioides, substâncias análogas ou derivadas do ópio. Outros milhões de estadunidenses são classificados pelas agências de saúde do país com um uso considerado problemático, fora dos padrões aceitáveis por esses órgãos de controle. Em 2017, o governo passou a qualificar esse contexto de consumo de opioides como uma crise nacional, articulando uma série de ações para enfrentar o problema. No entanto, dados recentemente disponibilizados pelo Centers for Disease Control and Prevention dos Estados Unidos indicam que o número de overdoses fatais relacionadas a substâncias opioides continua a crescer. Na América do Norte, o Canadá já enfrenta uma situação muito parecida e recentes artigos apontam indícios de que essa situação pode se replicar em países latino-americanos ou mesmo ganhar uma dimensão global, impulsionada pela ação de corporações farmacêuticas transnacionais, como a Mundipharma.

Donald Trump, menos de seis meses após ter decretado a crise dos opioides uma “Emergência de Saúde Pública”, tem afirmado que a única maneira de resolver o problema é endurecendo as penas para traficantes de drogas, dentre as quais a mais efetiva seria a imposição da pena de morte. De acordo com Trump, isso já seria uma realidade em outros países, que passaram a ter menos problemas com drogas ilícitas.

Os países a que Trump se refere são a China e as Filipinas, com os quais o presidente, desde sua eleição, tem demonstrado grande empatia no que se refere ao tratamento do tema das drogas. De acordo com um funcionário sênior da administração, Trump teria afirmado: “você sabe que os chineses e os filipinos não têm problemas com drogas. Eles simplesmente os matam [os traficantes]”. De fato, em 2017, em uma conversa telefônica que chegou a público, Trump parabenizou o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, pela condução da sua política de drogas, afirmando “que belo trabalho você está fazendo!”.

Duterte tem conduzido uma política de assassinatos extrajudiciais por meio da Polícia Nacional Filipina como forma de deter o comércio e consumo de drogas no país. Denunciada por diversos grupos de defesa de direitos humanos, estima-se que essa política de combate as drogas já tenha resultado em mais de 12 mil assassinatos. Apesar disso, há fortes indícios de que a estratégia não está funcionando, uma vez que o preço de varejo das principais drogas consumidas no país, como a metanfetamina, tiveram queda nas grandes cidades, como Manila, a capital do país. Isso sugere que houve aumento da disponibilidade da substância no mercado ilegal. A China, por sua vez, tem como prática conduzir julgamentos públicos em estádios, diante de milhares de pessoas. Os acusados de tráfico de drogas, assassinatos e roubos, se condenados, são executados imediatamente. Não há dados disponíveis para que a política seja avaliada por uma agência externa às do governo.

No cenário político mais amplo, a administração republicana estadunidense, liderada pelo Procurador Geral Jeff Sessions, tem pressionado o Congresso a reduzir o limite necessário de drogas para impor sentenças mínimas obrigatórias às pessoas que foram condenadas por comercializar opioides, aumentar a vigilância na internet (um recurso utilizado para a compra de opioides), além de demandar uma postura mais punitiva por parte dos procuradores nos diversos estados e municipalidades por todo o país.

Na dimensão internacional da repressão ao mercado ilícito de opioides, o governo Trump tem investido em políticas direcionadas ao México, um dos países produtores da heroína consumida nos Estados Unidos e rota de trânsito de opioides sintéticos, como o fentanil, advindos da China. No centro desses investimentos, que seguem na esteira da Iniciativa Mérida, lançada em 2008, e que já acumula mais de US$ 2.6 bilhões, está o famigerado muro a ser construído na fronteira sul, o mantra segregacionista que Donald Trump prometeu durante sua eleição. Vale notar que, entre 2007 e 2017, houve um aumento de 16% dos recursos destinados à redução da oferta de drogas, de US$ 13.3 bilhões para US$ 15.4 bilhões. A demanda para 2018 é de US$ 15.6 bilhões, um aumento de mais de US$ 200 milhões.

Os valores destinados à repressão das drogas são impressionantes, mas é tão mais assustador o fato do Government Accountability Office (GAO), a principal instituição de auditoria do governo estadunidense, ter avaliado que, entre 2007 e 2017, as agências federais de controle de drogas não alcançaram completamente nenhum dos objetivos da Estratégia associados à redução do consumo de drogas ilícitas no país. Ainda assim, essa tática repressiva em relação aos opioides – que já tem sido qualificada como um novo ciclo da guerra às drogas – continua a fazer avançar o poder de agencias estatais sobre a vida e a morte dos cidadãos.

Mas essa mão violenta que busca atingir os operadores mais vulneráveis desse mercado ilícito se mostra suave com os operadores do mercado lícito. Capitaneada por diversas corporações farmacêuticas transnacionais e sob a chancela da Food and Drug Administration (FDA), agência federal responsável pela autorização da comercialização de medicamentos no país, a evolução desse mercado é identificada por diversas pesquisas como fundamental para a estruturação do uso problemático em massa de opioides nos Estados Unidos. Mesmo Jeff Sessions, que conduz a blitz repressiva contra o mercado ilícito, reconheceu, por ocasião da cúpula dos opioides na Casa Branca, que “cerca de 80% dos adictos (sic) hoje começaram com drogas prescritas”.

Um olhar mais detalhado sobre os dados dessa crise reforça essa interpretação. De acordo com o National Institute on Drug Abuse, entre 21% e 29% dos pacientes que tiveram opioides prescritos para dor crônica utilizam tal medicamento fora das indicações médicas; entre 8% e 12% desses mesmos pacientes desenvolvem algum tipo de uso problemático do medicamento opioide; e entre 4% e 6% dos que desenvolvem uso problemático passam a utilizar heroína. Ainda, de acordo com o Department of Health and Human Services, 40% das pouco mais de 42 mil mortes por overdose de opioides em 2016 envolveu um opioide prescrito.

Assim, o brado de Trump por uma “sociedade livre das drogas”, repetida ad nauseam em discursos pelo país, parece contradição, mas cumpre o papel de  justificar a manutenção do status quo do mercado lícito de opioides. Ela não diz respeito às drogas em si, mas à maneira pela qual elas são produzidas e comercializadas. O objetivo de Trump, similar a todos os governos, não é uma sociedade sem opioides, mas, sim, uma sociedade na qual os opioides utilizados sejam somente aqueles definidos pelo Estado como lícitos, ou seja, aqueles que estão integrados à dinâmica de acumulação capitalista via corporações farmacêuticas transnacionais.

Isso permite compreender, por exemplo, o fato do governo definir, como uma das principais políticas para a “solução” da chamada “crise dos opioides”, o estabelecimento de parcerias público-privadas com as corporações farmacêuticas para desenvolver propostas que garantam a ampliação do mercado de medicamentos, dentre as quais a invenção da panaceia dos “analgésicos não-adictivos”, para o qual pretende-se gastar “muito dinheiro”. No caso, dinheiro público.

Nesse sentido, a reafirmação, por parte do Estado, de que as corporações farmacêuticas são as legítimas comerciantes de drogas opioides tem como reflexo o reforço da criminalização dos grupos que ficam de fora desse circuito legal que articula, de maneira muito específica, capital e poder. Nesse jogo de política e dinheiro, no qual o ilícito é o subproduto do lícito, o foco da proteção estatal são as corporações capitalistas farmacêuticas. Já o foco da violência do Estado é distribuído pelo espaço doméstico e internacional, entre indivíduos localizados em um extenso dégradé, que vai daquele mais ou menos envolvido com o mercado ilícito de opioides, passando por aqueles sem qualquer envolvimento, mas que, indiretamente, sentem o peso da força do Estado.

Os mais afetados têm sido os grupos latino-americanos dentro e fora dos Estados Unidos, particularmente os mexicanos e os dominicanos identificados pela Agência Federal Antidrogas estadunidense, a DEA, como responsáveis pela operação desse mercado ilícito. Assim, esses grupos, que estão na mira da guerra às drogas há décadas, sentem o reforço dessa orientação pela crise dos opioides. Na última década morreram no México, no ciclo da guerra às drogas, mais de 175 mil pessoas e junho de 2017 representou o ano mais violento em duas décadas. Domesticamente, os latinos já representam 21.6% das pessoas encarceradas em prisões estaduais e federais nos Estados Unidos, um total de quase 320 mil pessoas, a maioria com acusações relacionadas a drogas ilícitas.

Parece que “há algo de podre no reino da Dinamarca”, ou melhor, no reino capitalista dos opioides, conduzido pelas corporações farmacêuticas sob a chancela do Estado estadunidense. A manutenção desse reino está demandando, agora, a pena de morte.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais