Rússia versus Ocidente: um cenário de guerra e uma nova lógica do confronto
por Ivan Timofeev
Traduzido do Valdai Discussion Club*
Como Moscou pode responder a um possível ataque dos Estados Unidos na Síria? Será forçado a admitir derrota? Sim, a Rússia é uma potência nuclear, mas será que vai optar por um ataque nuclear por causa do impasse com os americanos na Síria, levando em conta que isso teria retaliação? A teoria americana da escolha racional pode falhar nas alternativas se confrontada com a cultura estratégica russa e com sua tradição. Os russos poderiam apertar o botão vermelho.
O agravamento da rivalidade entre a Rússia e o Ocidente nos últimos meses levanta a questão urgente sobre a possível nova escalada de tensões, e suas formas e conseqüências.
As relações políticas entre Moscou e as capitais ocidentais foram além do ponto crítico. A tese batida da falta de confiança pode ser descartada. As coisas estão muito piores. Os lados não querem e não conseguem ouvir um ao outro. Posições e sinais oficiais são percebidos como provocações e ofensas. Qualquer opinião é descrita, desde o princípio, como manipulação, propaganda ou brincadeira. Vozes pragmáticas se perdem no fluxo crescente do populismo. As pequenas ilhas de diálogo sobre questões comuns se estreitam ou desaparecem rapidamente. A histeria na mídia, a hostilidade e a vulgaridade das bravatas ultrapassam muito os níveis da Guerra Fria. Entramos em uma fase nova e muito mais perigosa do conflito, estágio que não existia há algumas semanas.
A situação atual é fundamentalmente diferente da que houve entre o início da crise ucraniana e o caso Skripals. A antiga lógica das relações era obviamente conflitiva. Os lados tinham diferenças acentuadas em questões importantes. Mas eles mantinham o diálogo político que, geralmente, era racional e relativamente previsível. Quaisquer ações hostis entre eles tinham um pretexto específico e mais ou menos verificável. A troca de sanções se baseava em razões compreensíveis. Vários incidentes foram repetida e exaustivamente verificados, e levados com muita cautela. Podemos não gostar das sanções da UE relacionadas à Ucrânia, mas Bruxelas evitou cuidadosamente qualquer escalada de sanções relacionadas com “promover propaganda e enfraquecer a democracia”, uma acusação que é difícil de se verificar, mas fácil de ganhar uma forma provocativa e propensa a conflitos. Podemos não gostar da investigação de Robert Mueller e o próprio pretexto para isso, mas pelo menos ela foi sistemática e relativamente transparente. Era difícil imaginar que a UE e os Estados Unidos levariam a restrições na Rússias às suas próprias exportações de alimentos, mas, embora desagradáveis, as contra-sanções russas tinham uma lógica transparente e compreensível. Ambos os lados se preocupavam com possíveis incidentes no mar ou no ar, mas os militares cooperavam ativamente uns com os outros para evitá-los, apesar das profundas diferenças políticas. Aparentemente, nas atuais condições de confronto, a “dissuasão estável”, um cenário que parecia ser o menos prejudicial, é coisa do passado.
Pelo menos três eventos desencadearam a nova lógica de confronto: o caso Skripal, as novas sanções de Washington e o incidente químico na Síria. O caso Skripal se destaca porque o Ocidente tentou a escalada acentuada sem fatos autênticos e transparentes indicando o envolvimento da Rússia no incidente. Nem um único fato que atenda a esses requisitos foi apresentado ao público até o momento. A teoria do envolvimento da Rússia é baseada em retórica, em referências à sua “má reputação” e em algumas “informações secretas” cujo valor como evidência é igual a zero, a menos que sejam abertamente apresentadas ao público. Ao mesmo tempo, mais e mais questões e discrepâncias estão surgindo, começando com a natureza e a origem do produto químico tóxico, e terminando com os métodos do seu uso. Sintomaticamente, a recuperação dos Skripals se tornou motivo para um número crescente de piadas. No entanto, não é por ser grotesco que não pode abrir precedente. E se uma provocação semelhante for encenada amanhã? E se várias provocações forem encenadas ao mesmo tempo? O que farão nossos parceiros ocidentais e como a Rússia reagirá a isso? Expulsar os diplomatas restantes, incluindo funcionários de segurança? Ou adotar medidas mais duras?
O segundo evento são as novas sanções de Washington contra empresas, políticos e empresários russos. Parece que todo mundo já se acostumou com as sanções. Politicamente, no entanto, hoje elas são como um cowboy nervoso de um faroeste ocidental, que dispara dois revólveres ao mesmo tempo, tendo ou não necessidade. Anteriormente, as sanções eram introduzidas sob um pretexto específico, ao passo que hoje elas se parecem com um bombardeio diário. É claro que prejudicam a economia, os negócios e os cidadãos da Rússia. Mas essa versão da política de sanções só pode enfurecer Moscou e confundir os observadores pela ausência de qualquer estratégia clara. As sanções estão perdendo seu valor como ferramenta da diplomacia e se tornando um instrumento de guerra. Essa abordagem para as sanções serve para o público interno. Provavelmente teria racionalidade própria se não fosse aplicada contra uma potência nuclear que dificilmente poderia ser superestimada, mas que certamente não deveria ser subestimada.
O terceiro evento é mais um ataque químico na Síria. Este evento era esperado, mas nem por isso é menos perigoso. Qualquer investigação objetiva é altamente improvável nessas circunstâncias. Os lados vão considerar falsa qualquer versão dos fatos, com a ameaça da força emergindo como único argumento. E é aí que mora o principal perigo. Hoje, a Síria é o lugar onde existe o maior risco do confronto entre a Rússia e o Ocidente se transformar em um conflito armado aberto. Tal cenário é fácil de se visualizar.
Suponha-se que outro “químico” ou algum outro incidente ocorra na Síria. O gatilho “químico” parece mais provável. Este tema é bem coberto pela mídia e é um pretexto sério. Suponha-se que Washington decida usar a força, não apenas num ataque cosmético com dez ou vinte Tomahawks, mas num ataque massivo à infraestrutura civil e militar que resta ao governo sírio. Esta é a primeira bifurcação do cenário ou a razão para o envolvimento da Rússia. Suas bases podem permanecer intactas. Mas se Moscou usar suas forças (como prometeram seus militares), haverá um ataque contra Khmeimim e Tartus. Tecnicamente, é possível lançar um ataque desse tipo e destruir ambas as bases e seus militares, especialmente se tropas dos Estados Unidos morrerem num ataque contra Bashar al-Assad.
Este curso de eventos pode não ser intencional, mas também pode ser planejado. Os russos fizeram um trabalho excelente na luta contra os terroristas na Síria, mas ficariam vulneráveis em caso de confronto com os americanos. O teatro de operações está localizado em local remoto, sendo difícil para fornecimento de suprimentos. Os americanos têm uma vantagem no que diz respeito à concentração e ao apoio de sua força de ataque. Existe grande risco de haver uma derrota absolutamente dura, contundente e humilhante da Rússia como resultado de um ataque relâmpago. Seria como uma nova guerra da Criméia do século 19, embora extremamente comprimida no tempo e no espaço.
Esse cenário pode parecer extremamente arriscado (se não louco), mas, com uma análise mais detalhada, tem sua lógica própria. E aqui vem a próxima bifurcação. O que Moscou fará se isso acontecer? A primeira opção (que seria a mais desejável para Washington): a Rússia teria que se curvar e admitir a derrota. Sim, a Rússia é uma potência nuclear, mas vai disparar um ataque nuclear por causa de um confronto com os americanos na Síria, sabendo que isso resultaria em retaliação? Em outras palavras, as apostas aqui são na esperança de que Moscou não aperte o botão porque isso significaria suicídio. Nesse cenário, a vitória seria indiscutivelmente de Washington. Mostraria que é possível e necessário diminuir e enquadrar um adversário que cruzou a linha. Seria um sinal poderoso para o resto, enquanto os Estados Unidos e Trump, pessoalmente, ganhariam a reputação de jogador intransigente e duro.
Mas também há uma segunda opção. É difícil analisá-la com base na teoria da escolha racional. Pode simplesmente não funcionar dentro da cultura e tradição estratégica da Rússia. Os russos podem apertar o botão. Moscou não está confinado à opção da Destruição Mútua Garantida (MAD, Mutually Assured Destruction). Também pode oferecer uma resposta limitada, embora muito dolorosa. Tecnicamente, isso também é possível e perigoso à sua maneira. Se, digamos, um porta-aviões ou um grande navio de guerra for afundado, é Washington que vai se curvar. Mas isso também não está na tradição dos Estados Unidos. Como resultado, as tensões vão aumentar, elevando consideravelmente o risco de MAD.
Esse cenário pode parecer excessivamente alarmista. A consciência das pessoas que viveram em meio à estabilidade da Guerra Fria e aos subsequentes 30 anos pacíficos naturalmente a rejeitam como irrealista. No entanto, a história mostra que os desastres fogem aos padrões usuais e são implacáveis com seus criadores.
É possível evitar o desastre de duas maneiras: iniciando negociações e encontrando um ponto comum, ou fortalecendo alianças e mantendo um equilíbrio de poder. As realidades atuais tornam a segunda opção mais provável. Muito possivelmente Moscou continuará rumo à reaproximação com a China e com outros atores, e um novo modelo de bipolaridade se formará no mundo. No entanto, fazer previsões nas relações internacionais é uma tarefa ingrata. A história seguirá seu próprio caminho, um caminho que só ela poderá dizer.
* Ivan Timofeev é diretor de programas da RIAC, membro da RIAC e chefe do programa “Contemporary State” do Valdai Discussion Club.
Tradução por Solange Reis
Artigo originalmente publicado em 13 de abril de 2018, em http://valdaiclub.com/a/highlights/russia-vs-the-west-a-war-scenario-and-a-new-logic/