Panorama EUA

O feitiço do tempo: dez anos desde a crise financeira

Passados dez anos desde a última grande crise financeira, as demandas de alívio regulatório nos Estados Unidos vão sendo atendidas enquanto as instituições financeiras do país crescem ainda mais

por Neusa Maria Pereira Bojikian*

No day after da crise financeira irrompida no Atlântico Norte em 2007-2008, enquanto as autoridades financeiras de vários países ainda assombradas se mobilizavam visando a adensar os fóruns internacionais financeiros, com especial destaque para o G-20 Financeiro (G-20), o Comitê de Basileia para Supervisão Bancária (Comitê de Basileia) e o Conselho de Estabilidade Financeira ou Financial Stability Board (FSB), os Estados Unidos se adiantavam, estabelecendo unilateralmente novos padrões regulatórios em matéria financeira. Muitos desses padrões foram incorporados na Lei Dodd-Frank de Reforma de Wall Street e Proteção ao Consumidor (Lei Dodd-Frank.

A Lei Dodd-Frank, com seus custos de conformidade impostos às instituições financeiras, visava frear em alguma medida os abusos cometidos no chamado mercado, devolvendo aos reguladores parte de sua relevância subtraída desde a década 1980. Desnecessário dizer que tal lei, assim como a emblemática Glass-Steagall Act de 1933 que reservou mercado aos bancos comerciais na prestação de serviços de depósitos bancários segurados, garantindo-lhes financiamento sem custo, e instituiu a Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC – agência garantidora dos depósitos), foi duramente criticada pelos agentes afetados por alterar o suposto equilíbrio na alocação de recursos.

O alívio regulatório vai se consolidando com a ascensão de Trump e com uma providencial ajuda do Congresso

Passado o primeiro momento de estresse e com a ascensão de Donald Trump ao governo dos Estados Unidos, o que se percebe é um movimento que está voltando a girar na órbita do sistema que antecedeu a recente crise. Ou seja, está funcionando de acordo com as ideias que orientavam as tomadas de decisão do próprio Alan Greenspan, então presidente do Federal Reserve (FED) no referido período: as forças do mercado limitariam a alavancagem. Algumas falas de operadores sugerem que se voltou a defender a racionalidade do mercado e a eximir o regulador e sua atuação, ou melhor, a sua falta de atuação, de qualquer culpa nas crises do sistema financeiro. Atente-se para a frase de um ex-executivo do Lehman Brothers e que, vale destacar, continua operando no centro financeiro americano: “No final das contas, a crise foi culpa dos bancos… Você não pode culpar o regulador – só porque uma arma é deixada no balcão, isso não significa que você precisa pegá-la e atirar em alguém.” É baseado em um tipo de proposta filosófica a qual percebe os indivíduos dotados de mecanismos próprios de freios e contrapesos que a Administração Trump propõe modelar um novo “regulamento regulador”, com impacto direto no setor de serviços financeiros. Concretamente, desde a estreia da Administração Trump, foram emitidas diferentes ordens executivas e memorandos que contribuem fortemente para uma inflexão na trajetória de consolidação da própria Lei Dodd-Frank.

A primeira medida tomada pela Administração Trump foi congelar as novas regulações que poderiam impactar o mercado financeiro. Note-se que a ordem de congelamento dada às várias agências federais, especialmente ao Departamento do Tesouro, abarcava até mesmo as regulações que já haviam sido publicadas, mas que ainda não estavam em vigor. A instrução era adiar a data inicial de vigência para se permitir revisões comandadas por autoridades que viriam a ser nomeadas na sequência. Uma das regras alcançadas pela instrução de congelamento refere-se à regra fiduciária sob a Employee Retirement Income Security Act of 1974 (ERISA), emendada no final de 2016 para provisionar a reforma previdenciária, e o Internal Revenue Code of 1986. Desde o início, essa reforma vinha desagradando agentes econômicos que defendiam insistentemente uma revisão substancial dos termos e condições da referida regra.

Uma outra deliberação, também tomada logo no início da nova administração e de impacto reverso na tendência, ainda que tímida, de retomada do espaço regulatório verificada na Administração Obama, determina que cada proposta de nova regulação seja acompanhada por uma proposta de revogação de duas outras existentes. Conforme avaliação dos próprios analistas a serviço do setor financeiro, trata-se de um “programa para regular os reguladores em direção que aponta para menos regulamentação ao longo do tempo.” Os argumentos tentando legitimar esse curso de ação baseiam-se no controle de custos. Diante do tremendo déficit fiscal do país, os analistas defensores da escola de pensamento a favor de se cumprir a meta do déficit fiscal – seja lá por qual motivo –tendem a achar pertinente que as agências reguladoras federais devam obedecer a um orçamento rigoroso, para arcar com os custos decorrentes da regulação.

Contudo, mais do que preocupados com a questão fiscal, para a Administração Trump as prioridades regulatórias relativas ao sistema financeiro devem se orientar pelo mercado, pela autonomia dos consumidores e pela suposta racionalização dos processos. O objetivo seria fundamentalmente aliviar as restrições impostas aos operadores de mercado e promover a competitividade das instituições financeiras americanas diante das concorrentes estrangeiras nos mercados doméstico e internacional. Uma das ordens executivas emitidas pelo presidente determina o cumprimento da agenda de reforma regulatória designando o estabelecimento de forças-tarefas em cada agência federal para avaliar os regulamentos existentes e recomendar mudanças, substituições e revogações.

Note-se que agências reguladoras do setor financeiro, como o FED, a FDIC e o Office of the Comptroller of the Currency (OCC) e as agências que controlam os mercados, como a Securities and Exchange Commision (SEC) e a Commodity Futures Trading Commission (CFTC), a princípio gozam de independência e, portanto, não estão condicionadas às ordens executivas. Entretanto, conforme acreditam alguns agentes econômicos, o suposto caráter meticuloso do processo de revisão, pautado pelo princípio da funcionalidade no avanço da regulação prevalecente na atual administração, deve transbordar para os diferentes domínios.

Enquanto isso os congressistas americanos também se ocupam de revisar o marco regulatório financeiro do país. Em 14 de março último, foi aprovado no Senado o projeto de lei S.2155, nomeado Economic Growth, Regulatory Relief, and Consumer Protection Act ou Lei de Crescimento Econômico, Alívio da Regulamentação e Proteção ao Consumidor. Tal projeto envolve mudar provisões importantes da Lei Dodd-Frank, como a famosa Regra Volcker, aprovada em 2013 pelos então reguladores, determinando que os bancos não poderiam utilizar dinheiro garantido pelo Estado na assunção de posições arriscadas ou para empreender operações especulativas que pudessem ameaçar o sistema financeiro como um todo.  As alterações propostas em tal projeto de lei, abrangendo pelo menos quatro segmentos – empréstimo hipotecário; alívio regulatório para bancos “comunitários”; relatórios de crédito; e alívio regulatório para grandes bancos –, implicam, sobretudo, em alívio e isenções aos operadores financeiros de alavancar suas transações sem capital suficiente para contornar as crises de liquidez e as ainda mais temerosas crises de solvência.

Assim, os bancos com ativos contabilizados abaixo de US $ 10 bi ficariam isentos das obrigações previstas na Regra Volcker e de requisitos de razão de capital e de alavancagem, desde que atendam um “Nível de Alavancagem de Bancos Comunitários”. Bancos com menos de US $ 5 bi estariam sujeitos a exigências ainda mais flexíveis.  O limite de quantidade de ativos no qual os bancos passam a ser menos monitorados e o limite em que as holdings bancárias ficam isentas dos mesmos requisitos de capital que as subsidiárias depositárias (conhecidas como “Collins Amendment”) aumentariam de US $ 1 bi para US $ 3 bi. Em relação às agências de informação de históricos de crédito dos consumidores, as propostas de mudanças preveem, entre outras coisas, que elas deixem de informar inadimplência relativa a empréstimos estudantis privados e dívidas médicas dos veteranos, problemas que se agravaram muito no país desde a crise, mas que não têm sido abordados de forma sustentável. Os empréstimos estudantis inclusive já foram objeto de paralelismos com a bolha imobiliária que estourou há uma década.

Por fim, haveria mudanças relativas aos critérios usados para determinar quais bancos estão sujeitos a uma regulamentação prudencial mais rigorosa, liberando alguns desse tipo de regime. Os bancos designados como bancos sistemicamente importantes e bancos com mais de US $ 250 bi em ativos permaneceriam sujeitos à regulamentação reforçada. Enquanto isso, bancos com ativos entre US $ 100 bi e US $ 250 bi estariam sujeitos apenas a testes de estresse de supervisão e a algumas provisões particulares estabelecidas pelo FED. De outro modo, bancos com ativos entre US $ 50 bi e US $ 100 bi não estariam mais sujeitos à chamada regulamentação aprimorada, exceto pelas determinações do comitê de risco. Além disso, os requisitos de alavancagem seriam flexíveis para grandes bancos de custódia, e certos títulos seriam autorizados a contar para as exigências de liquidez dos grandes bancos.

Todas essas mudanças são muito bem recebidas pelos operadores do setor financeiro, que se sentem tolhidos do direito de exercer suas atividades econômicas ou incapazes de enquadrar seus tradicionais manejos cotidianos no sistema estabelecido no pós-crise. Segundo avaliação do FED e da FDIC, cinco dos maiores bancos, nomeadamente JPMorgan, Bank of America, Wells Fargo, State Street e Bank of New York Mellon, “não eram críveis ou não facilitariam uma resolução ordenada conforme estabelece o Código de Falências dos EUA”. O JPMorgan Chase & Co., simplesmente o maior entre os maiores, falhou nos critérios exigidos pelos reguladores para superar crises. Com base no plano de resolução de 2015 submetido pelo banco aos reguladores de acordo com a Lei Dodd-Frank, deficiências foram notadas em pelo menos quatro dimensões: (1) falta de modelos e processos para estimar e manter liquidez suficiente ou prontamente disponível para atender entidades relevantes durante o período de crise; (2) deficiência nos critérios relativos à estrutura de entidades jurídicas de modo a alinhar tal estrutura e as linhas de negócios para promover a resolubilidade da empresa e facilitar a recapitalização de entidades relevantes; (3) deficiência na capacidade de estimar os recursos financeiros necessários para suportar uma desativação da carteira de contratos de derivativos em caso de oscilação dos ratings de grau de investimento relativos às entidades com as quais mantém operações; (4) mecanismos de governança inadequados ou não devidamente calibrados para recapitalização oportuna e bem-sucedida das principais subsidiárias operacionais antes de uma falência, garantindo que não haja contágio falimentar da matriz para as demais. Ou seja, os reguladores identificaram uma deficiência em relação à estrutura de governança necessária para facilitar a execução oportuna do financiamento subsidiado e das recapitalizações.

As instituições financeiras que já eram grandes tornam-se ainda maiores

O problema é que o mercado financeiro se tornou ainda mais complexo do que era há uma década. Conforme se viu no contexto da crise, a constituição do sistema de crédito em prática permite um patamar de acumulação inimaginável, ou seja, permite uma enorme alavancagem. E o sistema financeiro per se é gerador de inovação, a qual se configura em sistemas que extrapolam a dimensão do financiamento da produção e dos investimentos relacionados à economia real e se instalam na dimensão da especulação.

Muitas das instituições financeiras que foram consideradas grandes demais para fracassar, conforme o conceito adotado na Lei Dodd-Frank, tornaram-se ainda maiores, graças a fusões, aquisições e crescimentos orgânicos. Os atuais três maiores bancos dos Estados Unidos – JPMorgan Chase & Co. (total de ativos: US$2,5 tri), Bank of America Corp (total de ativos: US$ 2,28 tri) e Wells Fargo & Co. (total de ativos: US$1,95 tri) – adicionaram mais de US $ 2,4 tri em depósitos domésticos na última década, correspondendo a um aumento de 180%. Esse montante excede a soma dos depósitos contabilizados pelos oito principais bancos em 2007. No final de 2007, esses três bancos detinham 20% dos depósitos do país. No final de 2017, esse percentual aumentou para 32% ou US $ 3,8 tri.

De um modo geral, os investidores são impelidos a prospectar novos mercados e novas formas de rendimento e com isso acabam produzindo bolhas de ativos por toda parte. Se eles não encontram limites, como as exigências de capital, restrições sobre certos investimentos especulativos e sobre envolvimentos em alguns tipos de negociações proprietárias, eles são tentados a se arriscar excessivamente expondo toda a sociedade às suas operações comerciais privadas. Além disso, as condições verificadas anteriormente à crise se instalam novamente com a abundância de investimentos que fluem para os mercados, graças à Quantitative Easing (QE).

Todos que acompanharam mais de perto sabem que desde a crise, o FED comprou títulos hipotecários problemáticos e injetou dinheiro no sistema em verdadeiros “surtos” de (QE), cujos efeitos preocupam alguns analistas. Essa prática contribuiu para elevar a dívida global, que atingiu US$ 233 tri no terceiro trimestre de 2017. No final de 2007, essa dívida era aproximadamente US$142 tri. Do total da dívida, US$ 68 tri foram tomados por empresas não financeiras; US$ 63 tri, por governos; US$ 58 tri, por instituições financeiras; e US$ 44 tri, por famílias. Conforme apontado acima, os próprios reguladores notaram deficiências na capacidade de resposta de grandes bancos americanos diante de eventuais colapsos financeiros, portanto o crescimento dessas dívidas gera preocupação. E isso não é diferente em outros centros, onde bancos grandes também estruturam seus balanços com muita dívida e não com capital acionário.  Como diriam os céticos sobre a desregulamentação: cada crise tem seu próprio perfil, mas os elementos fundamentais quase nunca se alteram.

O mais angustiante é testemunhar o quanto alguns operadores do mercado financeiro podem ser arrogantes e parecem estar condenados a ficar presos em uma espécie de túnel do tempo, revivendo indefinidamente o mesmo dia até que mudem suas atitudes.

 

* Pesquisadora e Pós-doutoranda do INCT-INEU com apoio CAPES. Doutora e mestre pelo PPGRI-Unesp-Unicamp-PUC-SP. Autora do livro Acordos comerciais internacionais: o Brasil nas negociações do setor de serviços financeiros (2009, Unesp) e Coorganizadora do livro Negociações econômicas internacionais: abordagens, atores e perspectivas desde o Brasil (2011, Unesp).

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