Estados Unidos: liderança, primazia, declínio?
por Marco Cepik*
Em junho de 2017, uma pesquisa do Pew Research Center realizada em 37 países já havia verificado que a confiança média na capacidade de o presidente norte-americano liderar o mundo havia caído para 22%, enquanto a desconfiança havia aumentado para 74%. Consequentemente, a média dos entrevistados com uma visão desfavorável sobre o papel dos Estados Unidos no mundo havia subido para 39%. A mesma pesquisa indicou que as cinco políticas mais importantes da ‘agenda’ Trump (romper o acordo nuclear com o Irã, restringir a entrada de muçulmanos nos EUA, retirar-se dos acordos sobre o clima, retirar-se ou renegociar acordos comerciais, e construir um muro entre os Estados Unidos e o México) eram rejeitadas pela maioria dos entrevistados nos 37 países, com taxas de desaprovação variando entre 49% e 76% dependendo do tema.
Mas se trata apenas da opinião pública internacional? Afinal, quando Trump anunciou sua retirada do Acordo do Clima ele declarou que havia sido eleito para representar os cidadãos de Pittsburgh, não os de Paris. Na verdade, em pesquisa realizada pelo jornal Washington Post e pela University of Maryland, divulgada no dia 28 de outubro de 2017, seis em cada dez entrevistados afirmaram que a Presidência Trump estava tornando o sistema político dos Estados Unidos mais disfuncional. Para 71% dos entrevistados, a política e as divisões nos Estados Unidos teriam atingido um baixo nível perigoso. Naquela pesquisa, 63% dos entrevistados desaprovaram Trump como presidente.
Outra pesquisa, também realizada pelo Pew Research Center e divulgada no dia 02 de novembro de 2017, avaliou a confiança dos cidadãos americanos em Trump às vésperas de sua viagem de 12 dias pela região da Ásia-Pacífico. A parcela dos entrevistados que declaravam não confiar em Trump para lidar com crises internacionais em geral (59%), ou com a situação da Coréia do Norte particular (também 59%), aumentou mais de sete pontos percentuais desde abril. A desaprovação média dos entrevistados em relação ao desempenho de Trump como presidente chegou a 59%, mas é ainda maior em grupos demográficos específicos, como as mulheres (65%), os negros (87%), os hispânicos (72%), os jovens (63%) e os mais escolarizados (65% dos que tem ensino superior e 71% dos pós-graduados). Embora os 34% de aprovação popular que Trump ainda tem superem em mais de dez vezes os 3% de aprovação obtidos pelo presidente Temer no Brasil, a confiança e o apoio dos americanos em Trump também vem caindo consistentemente desde a sua posse em janeiro.
Há grande incerteza na conjuntura internacional. Seria mais simples criticar os aspectos mais repugnantes da retórica e do comportamento de Trump (como se prevê que fará inclusive o livro dos ex-presidentes George H. W. Bush e George W. Bush, prestes a ser lançado). Porém, mais relevante é indagar como fica a posição dos Estados Unidos no mundo. Neste sentido, duas tendências persistentes na ação internacional dos sucessivos governos americanos desde o fim da Guerra Fria, tanto democratas quanto republicanos, têm contribuído para aumentar a instabilidade internacional. A primeira é a tentativa de manter o sistema econômico mundial funcionando a favor dos interesses corporativos norte-americanos, ao mesmo tempo em que a capacidade de Washington para prover bens públicos e incentivos seletivos se reduz. A segunda tendência é a chamada política de primazia nuclear, iniciada ainda no governo Clinton e mantida com nuances importantes inclusive no governo Obama. Ambas as tendências são exacerbadas pela agressividade da presidência Trump. E ambas tendem a continuar mesmo com a eventual interrupção precoce do seu mandato.
Da liderança ao caos sistêmico?
Segundo Giovanni Arrighi e Beverly Silver (2001, p. 281), a globalização do sistema capitalista ao longo dos últimos quinhentos anos se deu sempre por meio de rupturas e crises nos padrões estabelecidos de governo, acumulação e vida social. A expansão financeira sinaliza o início de uma crise de hegemonia, a qual tende a avançar para situações de aumento da conflitividade entre grupos sociais, setores empresariais e estados. Eventualmente, dependendo da maneira como são processados os conflitos e incertezas inerentes à crise, surgem novos equilíbrios sociais, econômicos, políticos e ecológicos característicos de uma nova fase de expansão material e cultural. A liderança econômica global dos Estados Unidos tem sido dificultada pela financeirização do capitalismo, pelo aumento da desigualdade e pela emergência de novos atores que buscam soluções alternativas ou complementares ao sistema centrado no dólar e nas instituições de Bretton Woods.
Os serviços financeiros representavam cerca de 16,9% (13,1 trilhões de dólares) do PIB mundial em 2014 (77,6 trilhões de dólares). No mesmo ano de 2014, os ativos financeiros globais chegaram a valer 294 trilhões de dólares, bem acima dos níveis anteriores ao início da crise global (178 trilhões em 2005). Em comparação com 2016, o valor dos ativos financeiros globais em 2017 aumentou 7,1%. Segundo o Banco Mundial, o PIB mundial cresceu 2,4% em 2016. No relatório sobre a estabilidade financeira global publicado em abril de 2017, o Fundo Monetário Internacional destaca como problemas estruturais o baixo crescimento da produtividade, a crescente desigualdade de renda, a baixa capacidade de cooperação entre os países capitalistas centrais e a escalada protecionista (sem mencionar Trump e o Brexit). Mesmo a desregulamentação financeira (tentativa de repelir a lei Dodd–Frank, como é conhecido o Wall Street Reform and Consumer Protection Act promulgado depois da crise de 2008), ou ainda as anunciadas reduções fiscais para empresas, notícias que impulsionaram os ganhos na bolsa de valores e reforçaram a confiança dos investidores e o próprio nível de emprego nos últimos meses nos Estados Unidos, são vistas com receio pelo FMI devido ao risco para a estabilidade do sistema como um todo.
Além disso, como explicou Alex Callinicos em 2009, tais instabilidades recorrentes são causadas também pelo declínio da massa salarial como parcela do PIB, bem como pelo aumento das desigualdades entre os países e dentro de cada país. A parcela ajustada da renda nacional representada pelos salários declinou quase 5% nos países do G20 entre 1980 e 2000. Entre 2000 e 2005 nos Estados Unidos, por exemplo, a produtividade das empresas aumentou 17% e o valor médio da hora de trabalho aumentou apenas 3%. Mesmo assim, a taxa média de lucro das empresas aumentou apenas 0,09% entre 2000 e 2007. Ou seja, mesmo aumentando a exploração dos trabalhadores, o grau de concentração econômica e a financeirização tornam cada vez mais difícil para as autoridades econômicas eliminarem capitais ineficientes durante as crises, como atestam os gigantescos socorros para os bancos e as grandes empresas nos Estados Unidos e na Europa depois de 2008.
Os ressentimentos e divisões sociais resultantes da instabilidade e da precarização tem produzido respostas xenófobas e reacionárias em diversos países ao redor do planeta, inclusive nos Estados Unidos com Trump. Neste sentido, embora a globalização alternativa proposta pela China tenha menor apelo ideológico para as elites globais do que o liberalismo da era de ouro da hegemonia norte-americana, ela responde de maneira progressista a uma demanda (e a uma tendência) de redistribuição de riqueza e poder no sistema. As centenas de milhões de pessoas que saíram da pobreza extrema na Ásia e no restante da periferia do sistema nas últimas décadas indicam uma possibilidade de solução não violenta para o caos sistêmico.
Do equilíbrio à incerteza nuclear
Depois de 1945, a Guerra Fria entre Estados Unidos e a União Soviética passou a caracterizar o centro do sistema internacional, enquanto guerras convencionais e civis passaram a caracterizar a periferia global. Mesmo depois de 1991, a Rússia reteve capacidades nucleares dissuasórias suficientes para limitar eventuais comportamentos mais extremos por parte dos vencedores. De todo modo, até 2001 a estratégia dos Estados Unidos ainda combinava o uso da força militar com a reiteração de alianças e iniciativas multilaterais compatíveis com o objetivo de prolongar a hegemonia estadunidense. Desde a invasão do Iraque em 2003, porém, o uso do poder militar e a estratégia de cercamento da Rússia (desestabilização da Ucrânia e da Síria) e da China (aliança com a Índia e Japão) tem se dado em termos cada vez mais crus.
É verdade que o governo Obama adotou uma postura internacional mais equilibrada, em parte por representar interesses menos elitistas dentro dos Estados Unidos, em parte por estar constrangido pelo recuo nas condições materiais herdadas da grande crise de 2008. Vale lembrar, porém, que a redução das tensões estratégicas com a Rússia (New START) e com o Irã (Acordo Nuclear Compreensivo) também diminuiu custos relativos para Washington, sem alterar profundamente sua postura revisionista em relação ao equilíbrio de forças global. Na Europa, na América Latina, na África e na Ásia, o governo Obama foi hábil em reduzir tensões diplomáticas mesmo quando implementou estratégias de divide et impera e de desestabilização contra potências regionais. Daí o grande contraste com o atual governo Trump, que tem sido mais isolacionista no atacado, mas muito mais agressivo na retórica e no manejo de crises potencialmente catastróficas no Oriente Médio e no Leste da Ásia.
Segundo Gregory Koblentz (2014), a atual instabilidade estratégica decorre de três fatores principais. O primeiro é o chamado “trilema de segurança”, quando as ações tomadas por um ator para aumentar a sua segurança contra uma ameaça percebida têm o efeito de produzir insegurança num terceiro ator. Tal dinâmica seria mais intensa na Ásia, onde cinco potências nucleares (China, Índia, Paquistão, Rússia e Coréia do Norte) interagem com os Estados Unidos e também entre si. O segundo fator é o desenvolvimento de novos sistemas de armas e vetores de entrega por parte dos Estados Unidos, os quais eventualmente serão capazes de neutralizar um dissuasor nuclear, seja no curto (Escudo Antimísseis), médio (armas anti-satélite e ataques convencionais de grande precisão) ou no longo prazo (guerra cibernética). O terceiro fator é a precariedade dos regimes políticos do Paquistão e da Coréia do Norte. Os três fatores ensejam respostas assimétricas também desestabilizadoras por parte da Rússia e mesmo da China.
Há, portanto, razões estruturais e conjunturais para se preocupar com a viagem de Trump para a Ásia-Pacífico em novembro de 2017. Os Estados Unidos possuem atualmente três porta-aviões (USS Ronald Reagan, Nimitz e Theodore Roosevelt) operando na área da 7a Frota, além dos respectivos navios de superfície, do submarino nuclear USS Michigan e de mais doze caças F-35 A enviados para Okinawa. Desde 02 de setembro, quando a Coréia do Norte pode ter testado uma bomba de hidrogênio, a escalada retórica entre Trump e Kim Jong-un tem sido acompanhada de mobilização militar própria e de terceiros (no caso dos Estados Unidos, principalmente o Japão e a Coréia do Sul). Em particular para a China, as implicações de uma solução militar na disputa entre Pyongyang e Washington seriam altamente indesejadas. Diante da dimensão estratégica global da iniciativa chinesa Belt and Road (BIR) e da forte liderança exercida por Xi Jinping, os tuítes de Trump podem contribuir perigosamente para aumentar o isolamento e o declínio relativo dos Estados Unidos.
* Texto preparado para os assinantes do Clliping Concursos e publicado originalmente em 06/11/2017.