O Estado da União de Trump e o discurso da primazia
por Tatiana Teixeira
Em seu discurso sobre o Estado da União (SOTU, na sigla em inglês) em 30 de janeiro de 2018, o presidente Donald Trump foi, antes de tudo, coerente. Conhecido pela rotineira impulsividade e pela pouca afeição por protocolos diplomáticos e da figura presidencial, o empresário nova-iorquino fez um discurso previsível e condizente com os principais pronunciamentos, medidas e atos do primeiro ano de sua administração. Elevando o tom em áreas como imigração e Política Externa e Defesa, ateve-se às linhas gerais do que se sabe até agora a respeito de sua agenda America First. Não foi um discurso que surpreendeu e, em boa parte dele, teve um alvo específico na elite política americana: os falcões de Washington.
Tradição prevista na Constituição
Previsto na Seção 3 do Artigo II da Constituição americana, o Discurso do Estado da União é o momento, a cada início de ano, em que o presidente informa o Congresso dos avanços obtidos nos últimos 12 meses, recorrendo ao autoelogio e a números que, muitas vezes, não resistem a uma fact-check. É quando apresenta suas prioridades para dali em diante. No caso de muitas delas, o Executivo faz pedidos expressos de apoio aos membros do Legislativo. O Estado da União também funciona como uma prestação de contas para congressistas e, por extensão, para a sociedade. Embora não possa ser considerado isoladamente, é um evento acompanhado por governos de todo mundo, que esperam ver nele indícios dos rumos que serão tomados pela (ainda) principal potência do planeta – uma América “segura”, “forte”, “orgulhosa”, “destemida” e “determinada”, nas palavras de Trump. Segundo o presidente, no ano que passou e que teve como missão “tornar a América grande de novo para todos os americanos”, o governo fez um “progresso incrível” e teve um “sucesso extraordinário”. Nestes termos.
Temas ausentes
Se o discurso de Trump retoma pendências (e algumas obsessões) – como a reforma migratória, o plano nacional de infraestrutura e a questão nuclear –, também expõe o que não está no radar do governo, nem deve aparecer até o final do presente mandato. Discursos valem tanto pelo que dizem quanto pelo que não dizem, com as ausências funcionando como um importante indicativo de direção. Não devem ser ignoradas, portanto. Assim, o último Estado da União também deve ser entendido por suas lacunas.
Muito rapidamente, o presidente abordou, por exemplo, a questão energética (“o fim da guerra contra o lindo carvão limpo”), mas não tocou na questão ambiental. Trump também falou dos tiroteios que abalaram o país em 2017 – como o episódio em Las Vegas, ou quando o representante Steve Scalise (R-LA) foi baleado na Virgínia –, pediu união a republicanos e democratas nesse sentido, mas não mencionou a polêmica reforma sobre posse e porte de armas. Tampouco se referiu a qualquer um desses casos como terrorismo doméstico, excessos da extrema direita, ou aludiu à violência sofrida por cidadãos negros. O ano de 2017 – lembra-se – foi marcado por uma onda de protestos em várias cidades americanas contra os excessos por parte da força policial, especialmente no caso da população mais pobre e negra. O principal escândalo que assombra seu governo – o Russiagate – e sua tumultuada relação com o FBI (a Polícia Federal americana) também foram deixados de lado.
A força da economia
A área econômica foi uma das principais vitrines expostas pelo governo Trump. De acordo com o presidente, foram criados 2,4 milhões de empregos no país no último ano, os salários estão subindo, e o índice de desemprego entre afro-americanos e entre americanos de origem hispânica (ambos os grupos são considerados minorias nos EUA) atingiu pisos históricos. O magnata republicano coloca em sua conta a expansão dessas vagas em solo americano, assim como as novas unidades anunciadas pela indústria automotiva (Chrysler, Toyota e Mazda, por exemplo), ou pelo setor de tecnologia (Apple). Outro ponto celebrado é o aumento da confiança entre pequenos, médios e grandes empresários, assim como no mercado financeiro, com a Bolsa de Wall Street tendo batido um recorde após o outro.
Trump comemorou ainda a aprovação da reforma tributária, destacando a redução de impostos para pequenos negócios e para a classe média (sem citar que esse corte vale apenas até 2025), assim como para o big business. Já o Obamacare – a reforma do sistema de Saúde aprovada no governo Barack Obama e que ainda é uma pedra enorme no sapato dos republicanos – aparece muito rapidamente. Em seu primeiro discurso ao Congresso, em fevereiro de 2017, seu pedido de “revogar e substituir” este plano havia ganhado bem mais espaço. Naquele mesmo pronunciamento, Trump já havia solicitado ao Legislativo a aprovação do investimento de US$ 1 trilhão para o plano de infraestrutura nacional, o qual tem como norte os princípios Buy American & Hire American. No Sotu 2018, o pedido foi renovado, agora em US$ 1,5 trilhão.
Reforma migratória
Ainda na cena doméstica, além do plano de infraestrutura, outra prioridade para o governo é a aprovação da reforma migratória. Além da extinção do programa Ação Diferida para Chegadas na Infância (Daca, na sigla em inglês), por exemplo, a Casa Branca de Trump espera conseguir a melhoria do sistema de concessão de green cards e a adoção de um sistema baseado em pontos, priorizando a alta qualificação profissional e uma formação de excelência dos candidatos, em detrimento do critério de parentesco.
Em uma frase já usada por Obama nesse mesmo tema, Trump ressaltou que “ninguém vai conseguir tudo que quer”, ao se referir ao rascunho de proposta bipartidária que circula pelo Congresso. No discurso, o presidente relembra os quatro pilares que guiam o plano que ele espera ver aprovado: um caminho rumo à cidadania para os imigrantes em situação ilegal que chegaram ao país ainda crianças, desde que dentro do sistema por mérito; reforço da segurança na fronteira, por meio da construção de um muro, do aumento do número de agentes e do fim da política de “prender e soltar”; fim do sorteio de vistos; e prioridade para o núcleo familiar central para pôr fim ao que o governo chama de “cadeia migratória”.
No discurso, em “tempos de terrorismo”, Trump defende a reforma como sendo “vital” para “nossa economia”, “nossa segurança” e para “o futuro da América”. E, do mesmo modo que já havia feito em seu pronunciamento ao Congresso no ano passado, fica visível o aspecto de criminalização da imigração adotado pelo governo.
A retomada do discurso de primazia
Em Política Externa, Trump pareceu remontar a um passado ainda recente, cujas consequências e impacto continuam bastante vivos para os americanos e para a comunidade internacional.
“Ao mesmo tempo em que reconstruímos a força e a confiança da América em casa, também estamos restaurando nossa força e posição no exterior”, afirmou o presidente, advertindo que os Estados Unidos enfrentam “regimes malfeitores” (ou rogue regimes, uma já conhecida classificação), “grupos terroristas” (como Estado Islâmico e Al-Qaeda), “rivais como China e Rússia, que desafiam nossos interesses, nossa economia, nossos valores”, a “ditadura cruel e depravada” da Coreia do Norte, as “ditaduras comunista e socialista de Cuba e Venezuela” e o “terrível acordo nuclear com o Irã”.
Diante disso, em especial da grande “ameaça nuclear” representada por Teerã e por Pyongyang, Trump reforçou seu pedido por um amplo aumento do orçamento da Defesa e das capacidades militares dos EUA. “Precisamos modernizar e reconstruir nosso arsenal nuclear”, insistiu.
Algo digno de nota, os termos e a agenda apresentada por Trump nessa área ecoam ideias largamente defendidas pelo agora inativo grupo de pressão neoconservador Project for the New American Century. Reconhecidamente influente no governo de George W. Bush, o PNAC foi um dos atores na origem das propostas que levaram às guerras do Iraque e do Afeganistão, assim como à implantação da prisão de Guantánamo. No Sotu, aliás, Trump prometeu que manterá essa instalação militar aberta.