EUA alertam sobre novos imperialismos na América Latina
por Solange Reis
A América Latina não precisa de novas potências imperialistas que pensam só no benefício próprio, disse o diplomata de um importante país americano.
Engana-se quem achar que o autor da frase foi um líder progressista ou um revolucionário de esquerda do passado. Surpreendentemente, as palavras pertencem ao atual secretário de Estado dos Estados Unidos, Rex Tillerson.
Na quinta-feira (1), dias antes de iniciar uma viagem a México, Argentina, Peru, Colômbia e Jamaica, o secretário discursou na Universidade do Texas sobre a influência de países como Rússia e China na região.
Intrusos no quintal
Segundo o secretário, a presença da Rússia é alarmante, principalmente como fornecedor de armas para governos “moralmente repulsivos”.
Ex-presidente da petrolífera Exxon – empresa que vem adotando estratégia comercial agressiva na Guiana e no México -, Tillerson mostrou-se ainda mais preocupado com o preço que os países latinos pagarão por se deixarem atrair para a órbita econômica da China.
Sem dar maiores detalhes, o diplomata parece ir no encontro dos que criticam a diplomacia periférica da China, na qual os investimentos seriam uma armadilha. Atraídos pela oferta de capital chinês – numa época do sistema financeiro internacional em que o crédito se torna mais seletivo -, países periféricos desenvolvem projetos pelos quais não têm condições de pagar. Endividados, acabam entregando os ativos aos bancos chineses tempos depois.
Tillerson reconheceu que o comércio com a China trouxe benefícios, mas também prejudicou setores manufatureiros, causando desemprego e perda salarial. Para que os países latinos protejam suas soberanias da ação potencialmente predatória de atores externos, o diplomata recomenda instituições fortes e governos transparentes.
Telhado de vidro
A crítica às potências rivais cai como uma luva nas próprias práticas dos Estados Unidos em quase duzentos anos de influência direta sobre os vizinhos do sul.
A atenção de Washington para a região não é recente. Remonta a 1823 e à Doutrina Monroe, da América para os americanos e não para os imperialistas europeus. Foi assim também contra o comunismo soviético na Guerra Fria.
Considerando a interferência dos governos norte-americanos em países latino-americanos e do Caribe ao longo da história, bem como na política regional, a declaração é de grande hipocrisia. Porém, não deixa de ser um lembrete oportuno.
O recado do secretário de Estado embute muitas mensagens que se pode ler nas entrelinhas, mas expõe uma verdade logo de saída. Os países latinos continuam a mercê dos grandes jogos da política internacional. Não há como contar a história econômica, política e social de cada um sem situá-la nas disputas por hegemonia.
Acumulação paciente de vantagens
Já não tão debutante nesses tabuleiros, a China desenvolve na região o que o ex-secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, chamou no livro “Sobre a China” de acumulação paciente de vantagens.
De 15 anos para cá, principalmente no último quinquênio, o governo chinês destinou mais de US$ 100 bilhões em investimentos diretos (IED) para a região. Quando comparado aos US$ 900 milhões aplicados pelo país globalmente, sobretudo nos países industrializados, o valor pode parecer pequeno. Mas a ideia da China é aumentar significativamente esses números, elevando em 150% a quantidade de IED até 2019, enquanto espera-se que as transações comerciais passem de US$ 500 bilhões no mesmo período.
A aproximação gradativa da China caminha nesse sentido. Na semana anterior à declaração de Tillerson, Pequim fechou um acordo de entendimento com membros da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC).
Foi a segunda vez em que o país asiático participou do encontro na CELAC, organização dos Estados americanos que exclui Estados Unidos e Canadá. A primeira vez, em 2015, resultou num plano de cooperação.
Embora poucos detalhes tenham sido divulgados, sabe-se que o acordo de 2018 terá um enquadramento 1+3+6. Fundamenta-se no plano de cooperação, estrutura-se no tripé economia-investimento-finança, e prioriza seis campos de cooperação: energia e recursos minerais, infraestrutura, agricultura, manufatura, inovação científica e tecnologia da informação.
Como parte do projeto, o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, também convidou os países da região a participar da iniciativa chinesa conhecida como One Belt, One Road, ou Belt and Road Initiative (BRI). De forma bastante sucinta, pode-se dizer que essa estratégia abrange uma parceria de longo prazo entre Ásia, Europa e África, com mais de US$ 1 trilhão de investimentos projetados para desenvolvimento de infraestrutura.
Em resposta a Tillerson, o ministro Yi disse que a cooperação entre China e países latino-americanos é baseada em igualdade, reciprocidade, abertura e inclusividade. Yi espera que países relevantes abandonem a concepção de soma zero e vejam o desenvolvimento dessas relações de uma forma inclusiva e aberta.
Diplomacia periférica
Para além dos interesses econômicos e a necessidade de escoar capacidade excedente chinesa, a iniciativa chinesa visa ganhos geopolíticos nas zonas onde os Estados Unidos perdem influência. Tem sido assim na África e na Europa; não será diferente na América Latina.
O avanço chinês na periferia do sul reflete algumas conjunturas internacionais. Uma delas é o esmaecimento da presença dos Estados Unidos. Atribuída ao suposto isolacionismo e protecionismo do governo Trump, a bem da verdade, é preciso admitir que o distanciamento foi evidente com Barack Obama. O ex-presidente, como ficou claro na política do Pivot Asiático e nos esforços para aprovar a Parceria Transpacífico (TPP), concentrou esforços na Ásia e na Europa.
Outro vetor mais recente dos interesses financeiros chineses é a retórica de guerra comercial do atual governo republicano. Receosos sobre as incertezas na política doméstica e econômica dos Estados Unidos, os chineses vêm redirecionando os IEDs.
Cingapura, por exemplo, ultrapassou os Estados Unidos como o principal destino de IEDs chineses em 2017, como parte da BRI. Hong Kong, Malásia e Austrália ficaram em terceiro, quarto e quinto lugares, respectivamente. A análise foi feita pela The Economist Intelligence Unit, no estudo China Going Global Investment Index, e considerou os setores automotivos e hospitalares, bens de consumo e serviços financeiros de energia.
E o Brasil com tudo isso?
No governo do PT, a CELAC teve função estratégica. No encontro de cúpula, em 2014, Dilma Rousseff também destacou a importância do diálogo com potências emergentes como China e Rússia.
Com o impeachment de Rousseff, os organismos regionais passaram a segundo plano, como foi possível observar no caso do Mercosul.
Houve quem visse nisso uma janela de oportunidade para o Brasil reformar a arquitetura regional e desenvolver novo consenso. Outros afirmaram que a região se tornaria, novamente, o quintal dos Estados Unidos.
Essas avaliações otimistas e pessimistas não levaram em conta a chegada de Donald Trump ao poder, que aumentaria ainda mais o desinteresse dos Estados Unidos pela América Latina e o Caribe.
Tampouco consideraram o fator China como contrapeso à influência norte-americana e à eventual retomada da projeção regional brasileira. É verdade que os investimentos chineses na América Latina contrariam os Estados Unidos em sua tradicional área de influência, mas não deixam de ser uma barreira à integração regional e à liderança brasileira no teatro regional.
Ironicamente, Tillerson não deixa de ter razão.