Um livro, um filme, um mundo em comum
por Reginaldo Moraes
O livro é de Larissa Rosa Correa – Disseram que voltei americanizado – Relações sindicais Brasil-Estados Unidos na ditadura militar (Editora Unicamp). O filme, de Fernando Weller – Em nome da América. O mundo da penetração norte-americana na sociedade brasileira.
Resenhei o livro de Larissa para a revista Pesquisa Fapesp. E agora, depois de rever o filme, mais forte ficou a impressão de que precisam ser colocados lado a lado.
O filme de Weller ganhou o Prêmio Petrobrás de melhor documentário brasileiro, na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Você não pode perder. Depois da safra de festivais, vai para circuito de cinemas, no começo do próximo ano.
O livro de Larissa mostra o que os norte-americanos faziam, nos anos da ditadura, para “modelar” o sindicalismo brasileiro. Um papel fundamental é desempenhado pelo Iadesil (Instituto para o Desenvolvimento do Sindicalismo Livre), uma espécie de sonda norte-americana instalada em território brasileiro. Fazia prospecções, recrutava e treinava simpatizantes, difundia comportamentos e ideias. Larissa descreve seus instrumentos e procura medir os obstáculos encontrados, a recepção peculiar da ação externa por parte dos agentes internos, os resultados.
A criação do Instituto é parte de um conjunto de políticas, planos e organizações inventadas pelo governo americano ou por empresários daquele país para influir sobre sindicatos e movimentos populares brasileiros. Daí o seu encontro com o filme de Weller, que comentarei mais adiante. A lista de ações programadas norte-americanas vinha de longe. Já em 1943, o governo Roosevelt criara o programa de “adidos trabalhistas” em embaixadas e consulados americanos. Mas as ações se multiplicaram, evidentemente, depois da Revolução Cubana – a Aliança para o Progresso, a USAID, o Peace Corps, todos criados em 1961, com objetivos bastante parecidos, embora concentrados em áreas diferentes.
As atividades do Iadesil tinham uma direção – os brasileiros selecionados faziam viagens de “instrução e treinamento” nos Estados Unidos. Não tinham apenas salas de aula. Visitavam instituições e eram apresentados às maravilhas do modo americano de viver – alguns se entusiasmam com o telefone sem fio, outros com o metrô. Muitos voltam um pouco americanizados – como a Carmen Miranda sugerida no título. Mas os resultados, diz ela, não foram tão bons quanto pareciam esperar os promotores. Em alguns casos, foram mesmo um tiro no pé, como se evidenciou na trajetória de Clodesmit Riani, sindicalista enviado aos EUA para a doutrinação usual. O mineiro voltou e aliou-se a comunistas para criar o Comando Geral dos Trabalhadores, o CGT. Um mal-agradecido, pois não?
Em certo momento, Larissa registra a fala de um ministro da ditadura, Arnaldo Sussekind, sonhando com a formação de novos líderes sindicais “capazes e honestos, com experiência democrática” e que fossem “nem comunistas nem bonecos dos empregadores” e que não batessem de frente com o ministério. Atirou no que viu, acertou no que não viu, até no que não queria ver. Ironia das ironias, alguns anos depois, surgiria no ABC paulista alguma coisa perto do perfil que sonhava. Só que não. Mais do que um remédio, o achado seria uma dor de cabeça, que até hoje o andar de cima procura curar por via cirúrgica. Não preciso dar mais detalhes.
Steven Spielberg acabou no sertão?
E o filme? Cineasta, pesquisador e professor de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Fernando Weller, começou sua saga de investigador de um modo, terminou de outro. O roteiro começou de modo singular. Sabemos disso porque nosso INCT de Estudos sobre Estados Unidos participou de algum modo desse momento, articulando alguns apoios para a visita de Weller a instituições americanas. O roteiro inicial partia de uma estória estranha, quase lenda, sobre misterioso personagem que vivera no sertão pernambucano. Daí vinha o título inicial: Steven esteve aqui. Dele tudo se dizia, até mesmo que se tratava de Steven Spielberg!
Puxando os fios de uma teia e tecendo com enorme acuidade, Fernando nos traz as vicissitudes do programa Peace Corps, os “voluntários” norte-americanos que viveram ao Nordeste do Brasil para “ajudar” seu povo, nos anos 1960 e 70. Rastreando os personagens, descobrindo suas ligações, suas ambiguidades e suas lembranças, Weller explicitamente se reporta a Eduardo Coutinho e seu método de compor o personagem através de entrevistas que constroem relações, interações com os personagens, sem pré concepções congeladas e prontas para servir. Desse modo, as ambiguidades e incertezas afloram junto com os dados.
E os dados são fascinantes. O filme traz documentos inéditos dos serviços de inteligência de lá e de cá, depoimentos dos “ex-jovens” voluntários, recolhidos em diversas cidades americanas, com o calor das lembranças e da “inefável saudade”, como diz uma delas. Cenas de reportagens de época refrescam a memória, como o discurso de Kennedy no primeiro aniversário do Peace Corps, quando o presidente adverte que “aqueles que impedem revoluções pacíficas tornam inevitáveis revoluções violentas”. Desnecessário dizer que os tambores da revolução cubana batiam ao fundo, como trilha sonora.
Os americanos tinham uma dor de cabeça para tratar no nordeste, as Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião. Para combatê-las organizaram um contra-movimento bem financiado e orientado, uma aliança com a igreja católica para criar cooperativas e sindicatos dóceis, “construtivos”. E esterilizar o que fosse necessário, claro, em colaboração com as estimadas forças repressivas locais.
Assim, o Voluntários da Paz trouxe milhares de jovens norte-americanos para atuarem em trabalhos comunitários e agrícolas no Brasil e, particularmente, em pequenas cidades no interior do Nordeste.
Alguns dos personagens do filme são visivelmente angustiados pelo reconhecimento posterior do que, de fato, estavam fazendo em Pernambuco. Outros, visivelmente, tergiversam, tentam driblar sua história e as perguntas do repórter-cineasta. Meu colega Felipe Loureiro, historiador da USP, chamou-nos atenção para um deles, Tim Hoghen. Felipe observou como o “gringo”, com toda a certeza um quadro da “inteligência”, evita o contato visual, desvia o olhar da câmara ou do entrevistador. Esquiva-se – o que parece uma pista para intuir que ele era mais do que um inocente útil. Aliado ao fato de que comprovadamente manuseava bom volume de recursos para operações no campo, temos tudo para imaginar seus vínculos com os patrões do programa – o governo e as corporações americanas que o financiavam. O lobo não perde o vício: ao receber seu entrevistador, ele o apressa, mal humorado, dizendo que “isto não é o Brasil, aqui o tempo anda mais rápido”. No tom e no conteúdo da frase percebemos como estamos diante de alguém especialmente dotado para nos domesticar e trazer ao ritmo de sua “civilização”.
Nem tudo que se passou é passado
Ah, malhas que o império tece, dizia Fernando Pessoa. Produzem lembranças amargas e até algumas nostalgicamente simpáticas, como a do voluntário que, emocionado, toca ao violão uma canção de Chico Buarque. Só Carolina não viu, diz ele. Muita gente não viu. Como muita gente talvez não veja, hoje, reprises dessa estória-história. Os roteiros e personagens são certamente diferentes, no cenário atual, mas os produtores do espetáculo, quem sabe, não tenham mudado muito. O governo americano, sua “inteligência para uso externo” e as corporações (com sua inteligência, também), ainda operam como produtores de espetáculos como esse – aqui, na Venezuela, no Egito, na Ucrânia e em várias partes do mundo. Quando o golpe militar fez 50 anos tivemos vários eventos acadêmicos mostrando a forte presença americana naquela conjuntura. Talvez tenhamos que esperar outros 50 anos para olhar para o dia de hoje. E outro “Em nome da América”. Oxalá tenhamos Larissas e Fernandos para abreviar esse caminho.
Em suma, filme e livro mostram muita coisa do passado. Mas ajudam bastante a iluminar o presente. É um convite a estudos mais demorados sobre o que temos como passivo norte-americano na nossa história. Algo assim como um balanço da penetração do Brasil pela presença americana – na economia, na política, na cultura e em tantos outros aspectos.
Pode-se dizer – e gostaria que assim fosse – que temos aqui um convite para estudiosos brasileiros – aprofundar o exame dessa americanização. Posso garantir que é um convite de nosso instituto, o INCT-Ineu, a nossos estudiosos. Que tal empreender um balanço dessa americanização do mundo – e, em especial, da americanização do Brasil? Numerosos brasileiros avançaram trabalhos relevantes nessa direção. Evito citar de memória para não cometer esquecimentos injustos. Que tal cruzar e consolidar tais estudos? O INCT-Ineu abre as portas para essas iniciativas.
Originalmente publicado em: http://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/reginaldo-correa-de-moraes/um-livro-um-filme-um-mundo-em-comum, em 17/11/2017.